Quando o dérbi entre Benfica e Sporting foi ainda mais polémico

O defeso tem a bonita particularidade de remeter os fracassos lá para o fundo. A interrupção sinaliza-nos um evidente antes e depois, e ajuda a digerir o que nos cai mal. Ora, num ano sem Verão, e atafulhado com mais uma competição encaixada no único slot temporal possível, aos benfiquistas restaram duas semanitas para recuperar fôlego de 11 meses conturbados, finalizados por caricata sucessão de tragédias, que se amontoaram na consciência colectiva como um balão – que inchou e em nenhum momento esvaziou por completo, por nunca a equipa ter verdadeiramente parado.

O período de férias passou a correr, o pisão na cabeça continuou na agenda mediática, a discussão sobre data de realização do próximo dérbi veio por arrasto e ainda agora, na conferência de antevisão, perguntaram a Bruno Lage se colocou a hipótese de ir a jogo com a equipa B. O treinador, que no regresso aos trabalhos rejeitou no treino as bolas que se utilizarão na final desta Quinta-feira para preferir as da… Champions, motivando até sorrisos do capitão Otamendi, foi taxativo – que o maior adversário «é o tempo». Ou a falta dele.

Bruno Lage
Fonte: Carlos Silva / Bola na Rede

Dérbi envolto em polémica é ementa anual, mas dérbi tão em perigo de não ser concretizado – ou, pelo menos, de ser tão desvalorizado por um dos intervenientes… – não surge imediatamente na memória. Mesmo aqueles jogados em pleno Guadiana eram encarados como provas de fogo. Só mesmo os mais experimentados se lembrarão do último dérbi eterno, tão embrulhado em casos que até a FIFA entrou ao barulho, acabando a situação por perder toda a graça e solenidade para se tornar num verdadeiro jogo a feijões.

ERA UMA VEZ…

Recuemos trinta anos. O Benfica, que trocara o campeoníssimo Toni por Artur Jorge, e que substituíra as estrelas Rui Costa e Schwarz por um senhor chamado Caniggia, andou aos trambolhões o ano todo, ainda mais que agora. À chegada à trigésima jornada, o Benfica já nem pensava em título, tão pouco em Taça – que havia sido eliminado no Bonfim a meio da semana, num jogo que o treinador teve de voltar a Lisboa de… táxi, para fugir ao confronto com os adeptos – mas queria ainda puxar da honra, ter brio pelo menos. Afinal de contas, o próximo visitante da Luz era o rival de sempre, ainda treinado por Queiroz.

Os 6-3 eram coisa muito recente e pela cabeça de alguns devem ter passado sensações de vingança: pois, ao décimo-primeiro minuto, já o Sporting vencia por dois. O Sporting não ganhava na Luz há oito anos, desde 1987, e o céu caía sobre a cabeça dos poucos irredutíveis e fieis adeptos que conseguiram arranjar coragem para ir à Luz apoiar a equipa. Apanhando-se a perder daquela maneira, a frustração começou a passar para dentro de campo, e mesmo com Dimas a reduzir aos vinte e poucos minutos o jogo foi aquecendo. Ainda por cima o árbitro, Jorge Coroado, nunca se inibia em cenários deste género.

Para ajudar, já tinha havido molho na primeira volta, com tanto caso grave na arbitragem de António Marçal que despoletou acirrada guerra de palavras, inclusive pondo frente a frente os dois presidentes, Manuel Damásio contra Sousa Cintra. Nesse jogo, Caniggia agredira Emílio Peixe. Marçal, se viu, não passou cartão.

A novela prolongou-se até 30 de Abril. Por isso, já Coroado chegava escaldado, seria sempre difícil manter a ordem. Não correndo bem para os da casa, ainda pior. O Benfica nunca conseguiu discutir o resultado e, já perto do fim, quando já todos tinham percebido para quem ia pender o placard, há escaramuça ali à entrada da área dos Leões. Sá Pinto e Caniggia, irreverentes na mesma quantia com e sem bola, envolvem-se num amontoado de outros duelos, Coroado não tem mãos a medir e escorregam-lhe, seguramente, quando começa a disparar cartões.

Caniggia era uma estrela. Companheiro de Maradona no Mundial de 1990, com dois golos na meia-final, chegara à Roma em 1992 para meter a Loba na luta pelo Scudetto. Ninguém admitiria era que os narcóticos problemas explodissem na capital romana – e no início de 1993, pumba!, treze meses de suspensão. Uma época sem jogar.

Numa altura em que a Parmalat era entidade activa e reactiva no mundo de transferências, a empresa italiana comprara o passe de El Pájaro por 700 mil contos – o Sporting tinha vendido Paulo Sousa à Juventus por 800 e a Fiorentina só levara Rui Costa por um milhão e 200 – e decidira metê-lo no… Benfica, de quem era patrocinadora. A imprensa dizia que vinha receber 20 mil contos por mês, numa altura em que o mais bem pago em Portugal, João Vieira Pinto, recebia 135 mil por… época. Estatisticamente, nunca confirmou pergaminhos.

Naquela noite, aparentemente, Caniggia não teve mesmo culpa nenhuma. Depois de se intrometer entre os dois, Coroado mostrou-lhe um amarelo e imediatamente a seguir um vermelho. Os próprios comentadores televisivos ficaram pasmados – mas ele tinha sequer recebido o primeiro? O que se passou?

O Benfica disparou. A campanha contra Coroado tomou proporções incontroláveis. Na semana seguinte, o Benfica vai ao Bessa ganhar (1-3) mas ninguém quer minimamente saber disso: estava ainda tudo de cabeça no dérbi. Abílio Rodrigues, vice-presidente para o futebol, disparava: primeiro, dizia que Coroado andava «a brincar com o Benfica». Exigia-se que o árbitro admitisse o erro e alterasse o relatório, pois só assim o clube retirava todos os processos já instaurados nas instâncias superiores. Ameaçava-se, inclusive, com «a pena máxima jamais aplicada a um árbitro em Portugal: a irradiação».

ENTRETANTO…

E tudo isto convergia em gravidade com derivada história, acontecida logo a seguir ao dérbi. Caniggia, sentindo-se agravado na sua dignidade e completamente injustiçado, fora supostamente jantar com amigos a Sintra, para espairecer. Na simpática vila, numa das enviesadas e estreitas ruelas, surge-lhe adiante grupo de arruaceiros. Em primeira pessoa: «Eram mais de 20 pessoas, seguramente afectas ao Sporting, que me bateram no carro, e, entre elas, houve um cobarde que me atirou uma pedra à cabeça. Fui brutalmente agredido. Havia dois polícias por perto, mas disseram-me que não podiam fazer nada. Não conseguiram identificar ninguém. Assim não vale a pena apresentar queixa».

Como se por compaixão profissional, responsabilidade hierárquica e brio diplomático, veio a terreiro o Intendente da 3.ª divisão da PSP de Lisboa, que à altura dava pelo nome de senhor Levy Correia. Dizia ele, em alto em bom som, deixando alguma coisa nas entrelinhas: «Isso do Caniggia é uma história muito mal contada. Os dirigentes do Benfica sabem muito bem o que aconteceu. Vamos deixar que apresente queixa, se é que o vai fazer, para se confrontarem as versões. Há testemunhas. Mas não foi correcto ele vir acusar adeptos do Sporting de o terem agredido…».

A verdade ficou-se pela bruma do tempo. Servindo de triste ponto final à carreira portuguesa do astro, só acalorou a fúria encarnada. A pressão aumentava sobre a Federação.

Coroado argumentava que tinha sido vilipendiado, ofendido até à quinta vida. Dos gabinetes responderam-lhe taxativamente que o erro técnico era grave. O parecer foi favorável ao Benfica, o jogo seria… repetido! E já depois do final do campeonato, a 14 de Junho. A distância pontual a separar segundo e terceiro classificados, Sporting e Benfica, evitava que o jogo tivesse qualquer importância – e por isso falou-se em “jogo-fantasma”.

Carlos Xavier, craque verde, dizia depois que «isto hoje» tivera sido um treino, sentimento natural quando o próprio clube havia seriamente colocado a hipótese de falta comparência. Quase sem público e jogado no Restelo, a coisa foi um espectáculo triste do caos do ‘Tugão’, desse mítico conceito que não se extingue, apenas avança aos repelões tempo afora. O resultado, só para acabar: 2-0 para o Benfica, golos de Edilson, o craque superlativo a quem no seu Brasil o chamaram Capetinha e foi, pouco tempo depois, Bola de Ouro do Brasileirão, e que assim se despediu de Portugal.

A melhor? Também pouco tempo depois, a FIFA mandou a Federação passear, desconsiderou a decisão e anulou o jogo extra.

Pedro Cantoneiro
Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, de opinião que o futebol é a arte suprema.

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