«A Kika Nazareth já na formação fazia coisas que muitos homens não conseguem fazer» – Entrevista BnR com Luís Andrade

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    O currículo da Arábia Saudita no desporto tem sido enriquecido com sonantes contratações. Do futebol ao golfe, o país do Médio Oriente tem recrutado mão de obra em todos os cantos do globo que ajuda no projeto de dinamização em curso. Luís Andrade, treinador português de 50 anos, rumou, em setembro de 2023, à equipa feminina do Al-Qadisiyah. Montou um plantel do zero, realizando treinos de captação com atletas que nunca tinham jogado futebol na vida, preparando a estreia do clube num campeonato que está apenas na sua segunda edição e na qual o emblema da cidade de Al Khobar participa pela primeira vez. Valeu a Luís Andrade a experiência acumulada em três épocas no futebol feminino do Benfica (uma como coordenador técnico e duas como treinador principal) e outras três temporadas no Flamengo.

    «[No Al-Qadisiyah,] algumas atletas nunca tinham jogado futebol. Dizer para jogarem no sistema A, B ou C era igual»

    Luís Andrade, treinador de futebol

    Bola na Rede: Dá-se a curiosidade de, no dia em que falamos, fazer dois anos que a seleção nacional feminina da Arábia Saudita realizou o seu primeiro jogo. O futebol feminino no país ainda é um bebé?

    Luís Andrade: É um bebezinho. Está a crescer dia após dia e vê-se uma boa evolução. A liga feminina começou no ano passado. Evoluiu ao nível de patrocinadores e todos os jogos do campeonato e da taça passam na televisão. No ano passado, não era assim. Também há competitividade entre os clubes. No ano passado, o Al Hilal e o Al Nassr disputaram [o campeonato] até ao fim. Este ano, já há mais equilíbrio entre as equipas. O Al Nassr, este ano, está mais forte. Com o tempo de trabalho que tiveram, organizaram-se. De qualquer maneira, o campeonato está mais competitivo e, passo a passo, a evolução vai sendo feita. O masculino será sempre o masculino, obterá receitas completamente diferentes. A Arábia Saudita quer receber o Mundial [feminino] em 2035. Para isso, tem que haver evolução, tem que haver trabalho para evoluir a jogadora saudita.

    Bola na Rede: Falou da organização do Al Nassr de um ano para o outro. A equipa que treina, o Al-Qadisiyah, teve que começar o projeto pela raiz este ano. Quais foram os desafios de alavancar uma equipa a partir do zero?

    Luís Andrade: Isto foi uma aventura, mas pelo lado positivo. É um desafio muito aliciante vir trabalhar para o futebol feminino da Arábia Saudita, ainda para mais para um projeto iniciado do zero. Quando cheguei aqui, no dia 7 de setembro [de 2023], tínhamos sensivelmente 14 atletas. Tivemos um mês para preparar a equipa para a liga. 

    Bola na Rede: Já tinham noção de futebol organizado ou ainda estavam na fase inicial das carreiras?

    Luís Andrade: Deixe-me dizer que algumas nunca tinham jogado futebol, destas 14. Portanto, como deve calcular, dizer para jogarem no sistema A, B ou C ou na posição de defesa, médio ou atacante era igual. O que elas sabiam é que se tinha que jogar com uma bola. O que nós fizemos foi trabalho de base para que elas aprendessem não só a técnica, mas também a tática. Principalmente, estarem posicionadas dentro do campo. Podemos ter sete jogadoras estrangeiras, só podem começar de início quatro. Além de quererem um novo desafio, também vieram ajudar as jogadoras locais. Estas jogadoras estrangeiras vieram-me ajudar muito, não só no campo, mas fora do campo. Por isso, é que estou na posição em que estou, graças a um grande envolvimento entre as jogadoras estrangeiras e as jogadoras locais. 

    Bola na Rede: Acredito que desde o dia em que começou a trabalhar até agora a evolução tenha sido tremenda…

    Luís Andrade: Sem dúvida. Toda a gente comenta o que éramos há seis meses e o que somos neste momento. Disputámos as meias-finais da taça quando ao início nos pediam para termos cuidado, para não perdermos por cinco ou seis. Neste momento, as pessoas mudaram o chip e só pensam que o próximo jogo é para ganhar. Vejo a mudança de pensamento das pessoas que estiveram desde o início do projeto para agora. A evolução é estrondosa e estou muito feliz, não só pelo nosso trabalho ao nível do staff e direção, mas também ao nível da qualidade das jogadoras. Posso dizer que, em seis meses, as jogadoras evoluíram muito também graças ao trabalho, no qual nós insistimos todos os dias, de técnica, de força, daquilo que têm que fazer dentro do campo para saberem jogar sem bola.

    Bola na Rede: As jogadoras estão abertas a isso?

    Luís Andrade: Nem todas as jogadoras são profissionais, temos jogadoras que trabalham. Uma das coisas que nos motiva é o reparar que a jogadora árabe quer aprender a jogar, quer aprender a ser alguém no futebol e isso também nos motiva como staff a fazermos exercícios mais específicos para a evolução da atleta. Exercícios de um para um, de dois para um, fazem com que a jogadora se desenvolva mais. Recentemente, tivemos uma jogadora do Al-Qadisiyah convocada para a seleção nacional. Somos a única equipa que surgiu este ano a ter uma jogadora na seleção e podemos, eventualmente, até ter mais. 

    «Ao início pediam-nos para termos cuidado, para não perdermos por cinco ou seis. Neste momento, as pessoas só pensam que o próximo jogo é para ganhar»

    Luís Andrade, treinador de futebol

    Bola na Rede: Na fase inicial realizou alguns treinos de captação. Esse recrutamento foi feito a nível regional ou conseguiu juntar jogadoras vindas de outras partes do país?

    Luís Andrade: Os treinos que fizemos eram abertos a jogadoras que queriam ter a experiência e a oportunidade de jogar futebol. O treino foi aberto a toda a gente e, dentro disso, fomos fazendo algumas escolhas. Apareceram bastantes. Depois, escolhemos as tais jogadoras para completarmos o nosso livro. Tínhamos que ter atletas suficientes para participarmos no campeonato. 

    Bola na Rede: Só as jogadoras estrangeiras é que são profissionais?

    Luís Andrade: Não, as jogadoras locais também são profissionais. Só não são profissionais as que trabalham e têm os seus empregos. Nós treinamos à noite. As jogadoras estrangeiras fazem dois treinos por dia, um treino de ginásio de manhã e um treino de campo. As jogadoras que trabalham só fazem treino de campo. Vamos parar cinco semanas por causa da data FIFA e vamos fazer um estágio ao Qatar. Para estarem todas juntas, teve que haver uma autorização dos locais de emprego para as jogadoras serem dispensadas para poderem estar connosco em estágio. 

    Bola na Rede: Foi fácil esse processo?

    Luís Andrade: Pelo feedback que me deram, não foi difícil as jogadoras que trabalham estarem presentes no estágio. 

    Bola na Rede: Como é que avaliaria o nível geral de um campeonato que só tem oito equipas?

    Luís Andrade: Assisti a alguns jogos o ano passado. Vejo que houve uma grande evolução. A competitividade dos jogos já é bastante elevada. Claro que há equipas que estão mais preparadas do que outras, porque já têm mais tempo de trabalho, mas vejo um equilíbrio muito grande. Ninguém diria que o Al-Qadisiyah, neste momento, podia estar em segundo lugar. O primeiro lugar, este ano, está muito mais definido do que no ano passado. O Al Nassr ainda não perdeu nenhum jogo e será muito complicado perder o campeonato, mas, por exemplo, na taça, já foram eliminadas nos quartos de final.

    Bola na Rede: Logo a seguir ao Mundial feminino, uma jogadora internacional pela Nigéria, a Ashleigh Plumptre, assinou pelo Al-Ittihad e chamou a atenção para o que a Arábia Saudita estava a fazer também no feminino. A breve prazo, podemos ver mais jogadoras da primeira linha do futebol a rumarem aí?

    Luís Andrade: Sem dúvida. Esse é um grande objetivo das pessoas: ter mais qualidade no futebol árabe. Aquilo que estão a fazer com o masculino é o que querem fazer com o feminino. Temos já, neste momento, no campeonato feminino, jogadoras de um perfil muito elevado, jogadoras de seleção da Nigéria, dos Camarões, da Costa do Marfim… 

    Bola na Rede: Não acha que a questão política pode impedir esse desenvolvimento? [A Arábia Saudita tentou patrocinar o último Mundial feminino e a FIFA impediu que isso acontecesse após o protesto de algumas jogadoras devido ao facto do país não garantir os direitos das mulheres, se opor à comunidade LGBT e manter a pena de morte]

    Luís Andrade: Não sei… não sei… não sei… Ao nível dessas questões não me vou pronunciar.

    Bola na Rede: Foi fácil para si habituar-se ao contexto social?

    Luís Andrade: Muito fácil. Para mim e para todo o meu staff. Viemos para aqui com o foco de trabalhar e fazer evoluir a jogadora árabe e fazer o nosso melhor. As coisas estão a correr bem. Estamos muito satisfeitos com o que estamos a produzir. Quem pensa que vem para a Arábia e isto é uma mudança radical, engana-se. Vivemos aqui e temos que respeitar a religião do país. 

    Bola na Rede: Não se sentiu de certo modo instrumentalizado por uma estratégia global que serve para o governo poder encobrir outras situações? [A Arábia Saudita está a levar a cabo uma campanha de sportswashing que serve para, através do desporto, fazer subir a reputação que, no caso do país do Médio Oriente, tem sido prejudicada pelas acusações sobre o incumprimento de direitos humanos]

    Luís Andrade: Não vou comentar isso… vamos falar de futebol e deixar o governo para o lado. Para mim foi tranquilo, a proposta que me fizeram, o desafio, isso é o mais aliciante. 

    Bola na rede: Esteve três anos no Flamengo. Também se nota no feminino a dimensão que o clube tem?

    Luís Andrade: O Flamengo tem muitos adeptos, onde quer que vá, tem sempre gente atrás. A pressão é muito grande. Ali, ninguém pensa se é um novo projeto, se não é. Do primeiro ano para o segundo ano, mudei 16 jogadoras, o que é mais de meia equipa. Ninguém está preocupado se nós temos que iniciar o processo novamente. O que se pensa é em vitórias. Ganhar, ganhar, ganhar e ganhar, isso é o que se pensa. Gostei de estar no Flamengo, é um clube em que qualquer um gostaria de trabalhar. 

    Bola na Rede: Mas foi um projeto totalmente diferente…

    Luís Andrade: Sem dúvida. Há quantos anos o Brasil já tem futebol feminino… São jogadoras que já têm um desenvolvimento muito grande em relação à jogadora árabe. É completamente diferente. Estamos a falar de jogadoras que estão a aprender a jogar futebol este ano e jogadoras que já jogam futebol há muitos anos. No Brasil, começam por jogar futsal, o que lhes traz muita qualidade técnica, muita criatividade. Além de ser um país enorme e de ter muita quantidade, há muito mais escolha. A quantidade de equipas que o Brasil tem é uma coisa fantástica. Agora, nem todos os clubes têm um investimento como tem o Flamengo, o Corinthians, o Palmeiras, o Grémio e outras mais. Estamos a falar de um campeonato bastante competitivo ao nível de patrocinadores e de qualidade técnica. No Benfica já tinha trabalhado com muitas jogadoras brasileiras e esse também foi um motivo que me levou a ir para lá. 

    Bola na Rede: No Brasil, esteve num clube e num país onde o futebol feminino já era bastante valorizado. Na Arábia Saudita, começou do zero. No Benfica, foi um ponto intermédio no sentido em que o futebol é algo que está bastante enraizado na nossa cultura, mas a vertente feminina ainda está a dar os primeiros passos. Como foi a experiência de treinar as encarnadas num ano tão importante, após a subida à Primeira Divisão, para cimentar o projeto que ainda não parou de crescer?

    Luís Andrade: Fantástico. É um clube enorme, com um nome muito grande a nível mundial. No ano anterior, era coordenador, fazia a transição entra a formação e o futebol profissional. Já conhecia muitas das atletas da formação que subiram comigo ao profissional. Conseguimos ir a todas as finais. Infelizmente, foi no ano da Covid-19 e tivemos que parar, mas estávamos em todas as frentes. É muito gratificante. Infelizmente, saí e a vida continuou. 

    «O Benfica está a fazer um excelente trabalho. Há que continuar. Outros clubes em Portugal também podem investir mais no futebol feminino»

    Luís Andrade, treinador de futebol

    Bola na Rede: Antes de se abrir a porta para o futebol feminino, teve algumas experiências como treinador de formação e de futebol distrital [masculino]. Alterou alguma coisa nos seus métodos?

    Luís Andrade: Quem é apaixonado por desporto e pelo futebol, como eu sou, não muda nada. O que queremos é simplesmente ter a nossa oportunidade de trabalho e demonstrar as nossas qualidades. O Benfica foi uma aprendizagem. Mudei algumas questões táticas. O futebol feminino é diferente do futebol masculino. O jogo joga-se com uma bola, mas é totalmente diferente. A qualidade técnica, a velocidade, a força, é completamente diferente. Temos que nos adaptar ao jogo das mulheres. Hoje em dia estou adaptado e fico feliz pelo que estou a realizar. 

    Bola na Rede: O crescimento da equipa feminina do Benfica ainda hoje se continua a verificar. Passou a fase de grupos da Liga dos Campeões 23/24 e foi aos quartos de final. No tempo do Luís, jogaram duas vezes contra o Chelsea e não correu tão bem. Imagina o Benfica, projeto que iniciou, a poder atingir o patamar dos grandes clubes europeus e, quem sabe, lutar por uma Liga dos Campeões?

    Luís Andrade: Essa evolução é boa para todos nós. Em 2025, eventualmente, três equipas poderão ir à Liga dos Campeões. O que o Benfica está a fazer é fantástico. A transformação que está a desenvolver no futebol feminino em Portugal é fantástica. Toda a gente está a ganhar com isso. Está a ganhar o país, está a ganhar o clube. É fascinante para toda a gente jogar na Liga dos Campeões. Quando jogámos com o Chelsea, aquela foi a iniciação de muitas jogadoras nas competições mais altas do futebol. Jogadoras de 19/20 anos estavam super nervosas. Toda a gente sabe o poderio que o Chelsea tinha naquela altura, tanto que foi à final da Liga dos Campeões. Hoje em dia, o Benfica está a fazer um excelente trabalho. Há que continuar, não só o Benfica, mas outros clubes em Portugal também podem investir mais no futebol feminino.

    Bola na Rede: Inicialmente, a participação que teve no projeto do Benfica foi encarregar-se da ligação entre a formação e as seniores. Surgiu nessa altura um valor inegável do futebol feminino português chamado Kika Nazareth. O céu é o limite para ela?

    Luís Andrade: Aquilo é um talento. A Kika já na formação era uma coisa impressionante. Aquela menina com a bola nos pés fazia coisas impossíveis, que muitos homens não conseguem fazer. Espero que ela tenha muito sucesso e que consiga dar o pulo, ir para o estrangeiro, jogar noutro patamar. Do meu ponto de vista, gostaria de a ver a jogar em Inglaterra. É um futebol mais rápido, onde se tem que pensar mais rápido. Era o país onde gostava de a ver. Ela é que terá que escolher. 

    Bola na Rede: Acha que já está pronta ou que precisa de mais algum tempo no Benfica?

    Luís Andrade: Depois do que ela já mostrou, quer no clube, quer na seleção, para mim, está pronta para ser uma jogadora de topo. Ela já é uma jogadora de topo, mas sabemos que se jogar numa final da Liga dos Campeões ou num outro patamar, com certeza que poderá lutar por uma Bola de Ouro, porque não?

    Bola na Rede: De entre aquilo que foi a sua carreira como jogador e agora como treinador, o que é que foi o melhor que o futebol já lhe deu e que espera que ainda venha a dar?

    Luís Andrade: Desde pequeno, tive o sonho de ser jogador de futebol. Todas as crianças têm esse sonho, mas, na minha altura, as dificuldades eram muito maiores, porque não havia futebol 7, havia menos equipas. Neste momento, há mais escolinhas para as crianças se desenvolverem. O futebol deu-me uma experiência muito grande. Estou ligado ao futebol desde os nove anos. Esta transição de jogador para treinador deu-me algo que todos nós sonhamos. Qualquer pessoa dentro da sua profissão tem o seu sonho e eu quero ser uma pessoa competente, feliz e que olhem para mim e fiquem satisfeitos com o meu trabalho. Isso é o que nos motiva a sermos melhores dia após dia. 

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    Francisco Grácio Martins
    Francisco Grácio Martinshttp://www.bolanarede.pt
    Em criança, recreava-se com a bola nos pés. Hoje, escreve sobre quem realmente faz magia com ela. Detém um incessante gosto por ouvir os protagonistas e uma grande curiosidade pelas histórias que contam. É licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e frequenta o Mestrado em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social.