«Jogar a Conference League mudou a minha forma de ver o futebol» – Entrevista BnR com Henrique Gomes

    De Barcelos a Viseu vão cerca de 150 quilómetros e muitas memórias na vida de Henrique Gomes, lateral esquerdo que seguiu o instinto e trocou o Gil Vicente pelo Académico de Viseu em julho deste ano. Henrique Gomes alinhou nesta viagem e, como quem sobe e desce no corredor esquerdo, falou dos objetivos para esta temporada, de ambições futuras e das experiências do passado. De Vítor Oliveira à emoção de marcar o golo da vitória nos descontos, da experiência na Conference League às travessuras da vida no balneário, Henrique Gomes conversou com o Bola na Rede numa conversa onde o futebol e as histórias no mundo da bola do lateral foram centrais.

    «No Académico de Viseu senti que era desejado e quando me apresentaram o projeto fiquei muito surpreendido»

    Bola na Rede: Trocaste o Gil Vicente FC pelo Académico de Viseu FC no último mercado de transferências. Como é que está a correr a experiência no Académico de Viseu?

    Henrique Gomes: Está a ser uma experiência positiva, mais positiva do que esperava. As expectativas eram altas, mas estou a ser surpreendido porque é um clube com gente muito humilde, apesar de ser tudo muito organizado. Nota-se que é um clube em crescendo e isso está-me a deixar muito contente.

    Bola na Rede: É um clube em crescendo com o objetivo de crescer para a primeira divisão já nesta temporada?

    Henrique Gomes: Não sei se será nesta temporada, se será na próxima, mas pelas bases que o clube está a criar acredito que em breve podemos esperar ver o Académico de Viseu na primeira divisão.

    Bola na Rede: Porquê escolher o Académico de Viseu?

    Henrique Gomes: Senti que precisava de uma mudança na minha carreira, estava algo estagnado e precisava de novos estímulos. Tive algumas propostas de clubes da Segunda Liga, tive propostas para fora, mas nunca senti que essas fossem as propostas certas ou os projetos certos para abraçar. Aqui senti que era desejado e quando me apresentaram o projeto fiquei muito surpreendido e foi algo que me cativou.

    Bola na Rede: Desde logo parece-me um projeto diferente pela capacidade de recrutamento. Tem um balneário com várias nacionalidades, como é que se convive com tantos jogadores com origens tão diferentes?

    Henrique Gomes: Vive-se bem. Apesar de tudo, como se costuma dizer, o futebol é uma língua universal e todos nós temos os mesmos objetivos. Nós queremos melhorar a nossa vida a um nível pessoal e isso passa por ajudar muito o Académico de Viseu, porque sabemos que se tivermos em evidência enquanto equipa, o individual vai sobressair normalmente.

    Bola na Rede: À quinta jornada [data da entrevista] nenhuma derrota, quatro empates e uma vitória. Qual o balanço até ao momento, o que falta melhorar e o que já se pode enaltecer por se fazer bem?

    Henrique Gomes: Costumo ver sempre as coisas com o copo meio cheio. Ainda não perdemos na Liga e isso é o lado positivo. Também é verdade que podíamos ter feito melhor em alguns desses jogos, mas penso que o que está a faltar é o detalhe na finalização. Temos conseguido criar oportunidades e penso que a solução está mesmo no detalhe, no último passe que está a sair tarde, na finalização que não está a entrar no sítio certo. Mas são coisas que vão melhorar com o tempo, já passei por essa experiência e sei que mais cedo ou mais tarde tudo vai melhorar.

    Bola na Rede: Habitualmente tens sido suplente e entrado vindo do banco. Como é que se lida com esse papel e qual o balanço dos primeiros meses a nível individual?

    Henrique Gomes: Sabia à partida que não ia começar o campeonato a titular porque não fiz pré-época. Os meus colegas fizeram uma pré-época intensa na Alemanha e eu sabia que, à partida, não ia estar preparado para ser escolha inicial. O meu concorrente direto, o Igor Milioransa tem estado muito bem e tenho de dar o braço a torcer e de lhe dar os meus parabéns. Quando sou chamado a jogo tento dar sempre o meu melhor para ajudar a equipa. Em todos os clubes em que estive nunca fui o jogador de aziar se estivesse no banco, porque sabia que isso só me ia prejudicar. Se estivesse aziado, mentalmente não iria estar bem. Se estiver sempre com boa disposição e preparado para ajudar a equipa mentalmente, sei que fisicamente sou capaz de responder porque tenho treinado bem. Tenho a confiança do mister, porque tenho entrado nos jogos todos e sinto que sou uma arma secreta [risos].

    Bola na Rede: E é uma competição que faz crescer?

    Henrique Gomes: Sim, sem dúvida. A competição interna é algo muito estimulante. A competição de fim-de-semana é uma coisa completamente diferente, mas ter no dia a dia alguém que nos desafia faz-nos exceder e isso é muito importante numa equipa. E não só na minha posição como em todas, nós temos boas soluções para todas as posições. Isso foi um dos motivos que me fez aceitar este projeto, porque há uma profundidade do plantel muito boa e jogadores com muita qualidade que ainda assim estão no banco porque só podem jogar 11.

    Bola na Rede: Disseste à bocado que não fizeste pré-época. Ainda sentes que estás em pré-época, ou sentes que a época finalmente já começou e já estás nos níveis físicos ideais?

    Henrique Gomes: Sinto que já estou nos níveis físicos perto daquilo que posso dar, mas para estar a 100% tenho de jogar com regularidade, porque treinar é uma coisa e jogar é outra completamente diferente. Quem já jogou sabe isso e eu sei que, começando a jogar, posso dar muito mais e produzir muito mais.

    Bola na Rede: Vou fazer uma viagem ao passado para o fim de maio. Escreveste num post de despedida do Gil Vicente “Serei agora mais um de fora a apoiar o nosso clube”. É mais difícil dizer adeus a um clube que te diz tanto?

    Henrique Gomes: Foi de facto difícil. Para o bem da minha carreira juntamente com o meu empresário, decidi que estava na hora de sair. Não fiquei de relações cortadas com ninguém, antes pelo contrário. Mantenho contacto com jogadores e dirigentes, enviam-me mensagens e o contacto é permanente. Mas senti que estava na hora de mudar porque estava numa zona de conforto que estava a ser prejudicial para mim. Tinha o melhor dos dois mundos pois estava em casa e a jogar Primeira Liga, mas este estímulo extra é muito benéfico. É complicado deixar o clube da terra, muitos dos adeptos, além de adeptos eram meus amigos e foi difícil, mas é uma decisão que teve de ser tomada.

    «O Vítor Oliveira dizia que nós não tínhamos perfume, mas tínhamos muito cheiro a suor»

    Fonte: Bola na Rede

    Bola na Rede: É um sonho ou um objetivo voltar?

    Henrique Gomes: Talvez. Já tive mais esse sonho, quando ainda não tinha jogado Primeira Liga e quando sai do Gil Vicente muito novo, mas neste momento não. Vejo a minha carreira com outros olhos, talvez a ir para fora. Neste momento tenho 27 anos, a minha carreira está a começar a entrar numa fase mais decisiva, porque as boas escolhas têm de ser tomadas agora para não me arrepender no futuro, por isso é que tomei esta decisão. Sobre voltar ao Gil, obviamente que as portas não estão fechadas, mas não é algo que eu persiga com obsessão, estou muito bem no Académico de Viseu.

    Bola na Rede: Falaste agora no estrangeiro, tens algum campeonato predileto onde gostasses de jogar?

    Henrique Gomes: Sim, gostava de jogar no campeonato espanhol. Tive propostas de ligas inferiores em Espanha, mas não era nada de fascinante. Não sou muito esquisito a nível de campeonatos, acho que sou um jogador que se consegue encaixar facilmente em vários campeonatos.

    Bola na Rede: Encaixaste também muito bem na Primeira Divisão quando depois de teres passado na formação e por alguns empréstimos regressaste ao Gil Vicente em 2019/20, na temporada em que o clube regressou à Primeira Liga. Como é que recebeste esse convite para regressar ao Gil Vicente numa época tão importante?

    Henrique Gomes: O convite foi-me feito pelo Dito que era o diretor geral no Gil Vicente na altura e que tinha sido meu treinador no SC Covilhã uns meses antes. O Dito ligou-me a falar muito por alto e a perguntar se eu eventualmente estaria preparado em relação a um projeto de Primeira Liga e eu disse que sim. Passados uns tempos, o presidente do Covilhã disse-me que queria renovar comigo e eu liguei ao Dito a dizer que tinha a hipótese de renovar e a querer saber o que se passava. Aí o Dito abriu o jogo, disse que ia assumir funções de diretor geral no Gil Vicente e que gostava de contar comigo e que tinha as portas abertas para mim. O convite foi logo aceite, logicamente, além de ser um clube de Primeira Liga era o clube da minha terra. Quando cheguei lá deparei-me com uma equipa em que não conhecia ninguém, só o treinador e um ou outro jogador que tinha jogado contra mim no ano anterior, mas revelou-se um coletivo forte e com jogadores que pouca gente conhecia. Tínhamos [Bozhidar] Kraev que nunca ninguém tinha ouvido falar e que no final da época era muito cobiçado, o Sandro [Lima] contra quem já tinha jogado, o Alex [Pinto], o Fernando [Fonseca] e criámos um grupo muito interessante. Era uma equipa muito boa, muito por obra do Vítor Oliveira que era um treinador que não nos dava descanso. Era sempre tudo no limite, fosse em que treino fosse, mesmo no último treino antes do jogo igual e isso levou-nos a um patamar que poucas equipas conseguiriam. Como ele dizia, nós não tínhamos perfume, mas tínhamos muito cheiro a suor, eramos muito trabalhadores. Jogámos contra o SC Braga e o [Ricardo] Esgaio disse “Vocês não param de correr isso é incrível, aguentem um bocadinho” porque o andamento era muito. Durante a semana trabalhávamos como não me lembro de ter trabalhado em lado nenhum.

    Bola na Rede: Vítor Oliveira que é um dos treinadores mais históricos do futebol português. Que memórias guardas de um treinador tão especial?

    Henrique Gomes: Guardo excelentes memórias. Era uma pessoa muito divertida e muito engraçada que nos fazia sempre trabalhar. Ele dizia: “trabalho é trabalho, conhaque é conhaque”. Antes do treino podíamos brincar, mas no treino não havia espaço para brincadeiras em momento algum e ele levava-nos ao limite. Eu costumo dizer aos meus colegas que com o Vítor Oliveira sentia-me muito mais relaxado nos jogos do que nos treinos. Nos jogos estava como se nada fosse, super tranquilo, até podia ser assobiado ou insultado. Como nos treinos a pressão era imensa, isso preparou-nos para o campeonato que fizemos.

    Bola na Rede: Mostrou que é possível conjugar a personalidade divertida com a exigência?

    Henrique Gomes: Sem dúvida. Era uma pessoa com quem nós podíamos contar e que nos cobrava muito. Nos momentos bons estava sempre lá para nós e nos momentos maus era a mesma pessoa. Era capaz de cobrar mais de nós nos momentos bons do que nos momentos maus porque ele sabia que quando estávamos mal precisávamos de algum carinho e ele sabia dar esse equilíbrio. Tenho a certeza de que o segredo para o sucesso dele foi não só o conhecimento tático que ele tinha, que era muito bom, mas a sinceridade que tinha com os jogadores. Se eu fizesse um mau jogo, eu sabia que tinha feito um mau jogo, mas ele vinha à minha beira e dizia “Tens de ter vergonha do que fizeste”, era mesmo muito frontal. Acho que a chave para o sucesso foi o equilíbrio, porque ele sabia quando dar o bombom aos jogadores e quando dar uma dura.

    Bola na Rede: Foi esta a temporada que acabaste lesionado de forma algo grave. Quais os contornos da lesão e como é que se reage a uma temporada que estava a ser tão regular e que é travada por um acontecimento externo?

    Henrique Gomes: Foi muito difícil. Foi num treino a quatro dias do jogo contra o Sporting CP em Alvalade. Lesionei-me sozinho, fui fazer um carrinho e ao levantar-me senti um estalo grande na perna. Tive uma rotura da sindesmose, mas na altura pensava-se que era uma entorse porque fiz exames que não revelaram nada de especial. O mister disse que queria que eu jogasse e dois dias antes do jogo disse para ligar o pé, treinar e ver como me sentia. Comecei a correr e senti muitas dores, era impossível. Em exames posteriores revelou-se essa rotura na sindesmose e fiquei parado cerca de seis meses. A dificuldade foi mais psicológica, porque na altura tinha propostas absurdas para sair a nível salarial e mesmo a nível competitivo.

    Bola na Rede: Podes revelar algumas das propostas?

    Henrique Gomes: Sim, posso revelar. Tinha propostas da França, da Turquia e da Grécia. Já em janeiro na altura tinha recebido duas propostas da Grécia e foi algo que me foi travado. Quando nós vemos a galinha dos ovos de ouro a fugir é sempre difícil.

    Bola na Rede: Depois da lesão como é que correu o regresso, a reintegração e o voltares aos índices físicos anteriores? Como é que se lida com esse processo que, se calhar, é ainda mais doloroso do que a lesão em sim?

    Henrique Gomes: É um processo muito doloroso, sem dúvida, essa é a palavra certa. Nós quase voltamos aos tempos de escolinha com seis meses sem tocar na bola e sem correr. Sentimos nos primeiros treinos que nós desaprendemos de jogar, que já não sabemos jogar e aí entra a fase mental que é muito importante porque nunca podemos duvidar do nosso valor. Durante as épocas temos altos e baixos, mas não havendo lesões sabemos que vamos voltar aos nossos níveis. Com uma lesão já não sabemos e é muito difícil. Além disso temos dores constantes que o pós-operatório traz. Quando voltamos aos treinos queremos fazer tudo da melhor maneira e temos dores que nos limitam imenso. É essa a parte mais complicada da carreira de um jogador. Eu já vivi isso duas vezes e sei que é muito difícil. Sempre que tenho um colega lesionado tento dar-lhe muito apoio porque sei o que é passar por isso e é terrível.

    Bola na Rede: Sentes que acabaste por regressar ao nível que tinhas antes da lesão?

    Henrique Gomes: Sinto que sim, voltei àquilo que era. Com menos oportunidades, mas sempre que fui chamado voltei ao que era. Fui chamado contra o FC Vizela e fui o homem do jogo, em Braga entrei e fiz o golo decisivo. Sempre fiz boas exibições quando fui chamado à equipa por isso acho que a lesão nunca me atrapalhou muito, apesar das dores que volta e meia tenho.

    Bola na Rede: A lesão coincidiu também com um período em que o Gil Vicente cresceu muito e, já depois disso, chegou mesmo a disputar competições europeias. Como foi fazer parte desse processo?

    Henrique Gomes: Eu costumo dizer que nem nos meus melhores sonhos pensei em jogar competições europeias com o Gil Vicente. Na altura fizemos apostas lá no clube que não foram cumpridas por razões óbvias, porque a lei não o permite.

    Bola na Rede: Quais eram?

    Henrique Gomes: Eu disse que se nós fossemos à Conference League que corria todo nu por Barcelos [risos]. Isso realizou-se – o facto de irmos à Conference League –, a outra parte não. Mas viver aquilo por dentro foi fenomenal, foi arrepiante. A preparação dos jogos, o viajar, o fazer o treino de adaptação nos grandes estádios. No fundo aquilo que víamos Porto, Benfica e Sporting fazer. Vivemos isso e só me caiu a ficha quando fomos jogar com o AZ Alkmaar. Foi muito bom apesar do resultado não ter sido nada bom.

    «Foi fenomenal sentir a cidade de Barcelos a vibrar com uma vitória europeia pela primeira vez»

    Fonte: Instagram Henrique Gomes

    Bola na Rede: Queria fazer contigo uma viagem pelo percurso do Gil Vicente na Conference League. Depois do empate em Riga, um 4-0 em casa diante dos próprios adeptos onde foste titular. Como é que se vive lá de dentro um dos jogos mais importantes da história do Gil Vicente?

    Henrique Gomes: Foi uma explosão de alegria imensa e um alívio porque eu estava com muito medo de perder esse jogo. Eu vivia muito o Gil Vicente como um adepto e, principalmente nos jogos em que ia para o banco, entrava muito nervoso. Se jogasse não estava nervoso porque sabia aquilo que podia dar à equipa e dependia de mim, mas depender dos outros é sempre mais difícil. Naquele jogo eu entrei tranquilo, mas quando marcámos o primeiro golo saiu-me um peso de cima porque sabia que a partir daí o jogo ia desbloquear e nós íamos conseguir. Ao intervalo já estávamos a ganhar 3-0 e foi fenomenal sentir a cidade de Barcelos a vibrar com uma vitória europeia pela primeira vez. Estar dentro do campo a viver isso foi espetacular. Inclusivamente, nas semanas que se seguiram a isso fomos, e eu principalmente porque sou da cidade e conheço imensa gente, muito abordados na rua. Quando ia buscar as minhas filhas à escola ouvia muita gente a falar sobre isso.

    Bola na Rede: Foram mais especiais os 90 minutos ou o clima de festa que se viveu a seguir?

    Henrique Gomes: O clima de efusão e de festa durou muito pouco porque tínhamos de preparar o jogo seguinte, então tivemos pouco tempo para assimilar aquela vitória. Mas jogar 90 minutos da Conference League em Barcelos foi algo que nunca imaginei viver.

    Bola na Rede: O sorteio colocou-vos no caminho do AZ Alkmaar, um clube com uma tradição e estatuto diferentes. Foi um sorteio em que ficaram com pena por ter calhado uma equipa tão grande, ou ficaram felizes por ter a possibilidade de defrontar uma das melhores equipas lá fora.

    Henrique Gomes: Foi um misto dos dois, mas mais a alegria porque sabíamos que o AZ é um clube com muita tradição europeia e nós sabíamos que pela primeira vez podíamos ir a uma fase de grupos. Só tínhamos a ganhar nesse jogo, porque se o Gil Vicente perdesse diriam “é normal, é o AZ Alkmaar, uma grande equipa europeia”, mas se o Gil Vicente ganhasse seria algo histórico e nós encarámos esse jogo com muita vontade de vencer. Até nos fomos aguentando, a primeira parte terminou 1-0 e críamos uma ou outra oportunidade, mas depois eles mostraram o colosso que são. Começaram a meter mais ritmo e nós começámos a perder energia e descambou.

    Bola na Rede: Foram uns 20 minutos difíceis, mas passado mais de um ano como é que se olha para esse jogo e se põe tudo em perspetiva?

    Henrique Gomes: Olho para esse jogo com orgulho. Tirando aqueles 20 minutos foi jogado taco a taco. Entrámos a saber que não éramos favoritos, mas não me lembro de ter tanta vontade de jogar um jogo como aquele. Era de facto, além de histórico, um jogo motivante, porque nos estávamos a pôr à prova contra um grande europeu que confirmou isso mesmo com a campanha que fizeram na Conference League. Foi um jogo em que olho para trás e posso dizer que tenho muito orgulho naquilo que fizemos.

    Bola na Rede: Nesse AZ Alkmaar jogavam, entre outros o Tijjani Reijnders, que hoje joga no AC Milan, o Milos Kerkez que está no AFC Bournemouth ou o Vangelis Pavlidis, que mais ano menos ano dará o salto. Como é que se entra em campo sabendo que do outro lado estão jogadores com tanta qualidade?

    Henrique Gomes: Entra-se em campo com respeito, mas quando a bola começa a rolar é cada um por si. Além da qualidade, porque a qualidade só por si não ganha jogos, que tem mais vontade pode fazer frente. Um jogador que tenha muita vontade, mesmo que tecnicamente não seja nada de especial, pode fazer frente a um Neymar que queira ir beber um caneco de cerveja [risos]. Foi assim que nós encarámos o jogo, a saber que tínhamos de dar o nosso máximo e a esperar por um dia menos inspirado deles.

    Bola na Rede: Acabou por não ser e na segunda mão estavam virtualmente eliminados, porque um 4-0 é um resultado quase impossível de dar a volta. Como é que se preparou o jogo sabendo-se dessa desvantagem?

    Henrique Gomes: Foi uma preparação difícil porque nós sabíamos que ia ser muito difícil. Claro que nos nossos sonhos queríamos alimentar que seria possível, mas tínhamos consciência que era praticamente impossível. Inclusivamente o mister rodou muito a equipa nesse jogo porque nem ele próprio acreditava. Foi um jogo preparado com tranquilidade, o chamado jogo “vamos ver no que dá”.

    Bola na Rede: Como foi jogar em casa sabendo disso, qual a reação dos adeptos? Sentiram-se acolhidos mesmo em desvantagem?

    Henrique Gomes: Sim, a massa adepta do Gil Vicente é muito diferente do habitual porque eles apoiam-nos mesmo nos maus momentos. São incríveis aqueles adeptos. Lembro-me, na altura com o Vítor Oliveira, de perdermos um jogo por 5-1 contra o Moreirense e de sairmos aplaudidos do estádio. Acho que houve vitórias em que não nos aplaudiram tanto e ouvia-se muito das bancadas: “vamos, levantem a cabeça, nós somos capazes e conseguimos”. É claro que são adeptos exigentes, mas sabem que nós demos o nosso máximo. Os adeptos sempre reconheceram isso.

    Bola na Rede: O que levas da experiência europeia? Foi a tua melhor experiência enquanto futebolista?

    Henrique Gomes: Foi, sem dúvida. Os ambientes que se criam nos estádios… fomos jogar à Letónia e fomos jogar à Holanda os estádios estavam cheios, os ambientes foram muito bons. Quando fizemos o golo do empate em Riga sentimos o que é jogar Conference League e eu posso dizer que essa experiência mudou a minha forma de ver o futebol.

    Bola na Rede: Voltando agora um bocadinho para trás, ao longo de quatro anos no Gil Vicente jogaste com o Vítor Carvalho, médio do SC Braga que chegou à Champions, Fran Navarro, avançado do FC Porto, Samuel Lino que tem sido frequentemente elogiado por Diego Simeone no Club Atlético de Madrid. Esperavas tanto sucesso de alguns colegas que partilharam balneário contigo?

    Henrique Gomes: Sem dúvida, e esperava de mais alguns até. O Samu [Samuel Lino], desde que veio que sabia que ia ser um fenómeno. Ele tinha coisas que não lembravam a ninguém, ele era mesmo muito bom e nós no balneário comentávamos que, para jogar a Liga Portuguesa, tinha de ser dos três grandes. O Vítor [Carvalho] teve um período muito difícil aqui e só começou a jogar quando o João Afonso se lesionou. A partir daí nós vimos quem realmente era o Vítor e vimos que tem uma qualidade tremenda. Ele corre 15 quilómetros por jogo, é uma coisa surreal, recupera muitas bolas, é muito bom a construir. O Fran [Navarro] é um matador que me surpreendeu porque nunca pensei que marcasse tantos golos. É um trabalhador incrível e deu para ver logo nos primeiros jogos do campeonato que ele ia dar cartas porque além de um matador ele é incansável.

    Bola na Rede: Que outros jogadores acrescentarias a essa lista?

    Henrique Gomes: O Pedrinho (atualmente no MKE Ankaragucu). É surreal, com a qualidade que ele tem devia estar num patamar muito superior ao que está. O Aburjania que foi agora para a Turquia (Hatayspor FT) é também muito bom. Estes dois saltaram logo à vista.

    Bola na Rede: Dois médios de eleição também. É mais fácil trabalhar em plantéis com esta qualidade?

    Henrique Gomes: Sim, sem dúvida. Eu costumo dizer que a qualidade se contagia. Quando nós estamos num plantel com tanta qualidade, uns puxam pelos outros e é muito mais fácil. A bola vem melhor e podes dar um passe um pouco mais difícil que vão receber a bola com qualidade. Eu adorava jogar com o Pedrinho porque a bola vinha sempre redondinha e eu sabia que ia conseguir fazer tudo. Conseguia fazer uma tabela e ela ia sair bem, conseguia dar-lhe a bola um pouco mais difícil e ele ia receber bem. E a visão de jogo dele era surreal.

    Bola na Rede: Foi com tanto talento concentrado que, com o Ricardo Soares, conseguiram um futebol muito vistoso e a chegada às competições europeias. Já falámos dessa passagem, mas como é que foi o percurso até lá?

    Henrique Gomes: Nesse ano tivemos um arranque muito bom e ganhámos os três primeiros jogos, mas tivemos uma descida que pouca gente se lembra porque foi apagada pela reta final de campeonato excelente que fizemos. Foi uma descida mesmo muito grande que foi horrível, mas desde que perdemos com o Sporting em dezembro que conseguimos uma série de excelentes resultados. Foi uma época difícil para gerir emoções, porque tínhamos alguns miúdos que se fascinavam como o Samuel Lino. Foi tudo surgindo muito naturalmente porque nunca perseguimos o sonho da Europa. Claro que no balneário ia sendo tema aqui e ali, mas íamos dizendo: “Tirem essa ideia da cabeça, já assegurámos a manutenção, está tudo lindo”. Era um sonho que tinha de ser alimentado, mas controlado para não haver um deslumbre. Com a humildade que tivemos conseguimos atingir esse feito histórico.

    «Virei-me para o adjunto do Ricardo Soares e disse-lhe: “Tenho uma tática para hoje. Mete-me lá para dentro e rebento com eles”»

    Bola na Rede: Nessa campanha há um golo teu contra o SC Braga já nos últimos minutos do jogo e poucos segundos depois de entrares em campo. O treinador Ricardo Soares disse na altura: “Coloquei-o para dar consistência defensiva”.  Que bela consistência defensiva deste.

    Henrique Gomes: [risos] Esse golo tem uma história muito engraçada. Eu tinha uma abertura muito grande com o Ricardo Soares e com a equipa técnica dele, eramos muito brincalhões e o sucesso da equipa também se deve a isso. Nós olhávamos para ele e víamos um amigo e um treinador, com muito respeito, mas também com amizade. Cheguei ao estádio, subi ao relvado para ver o estado do relvado e virei-me para o adjunto dele e disse-lhe: “Tenho uma tática para hoje. Mete-me lá para dentro e rebento com eles”. Ele disse: “Pronto, estás com o peito cheio então diz isso ao mister”. Cheguei lá abaixo, o mister estava a dar aqueles pequenos toques individualmente. Já estava a vestir a camisola de aquecimento e com um grande berro disse-lhe: “Mete-me lá para dentro, se queres ganhar mete-me lá para dentro”. Ele olhou para mim, começou a rir-se e disse-me que estava maluco. O Zé Carlos não podia jogar, porque estava emprestado pelo Braga, e como lateral direito estava a jogar o Hackman que na primeira parte teve cãibras. Eu vi o Ricardo Soares a olhar para o banco e a imaginar-me a jogar a lateral direito, eu acenei que não com a cabeça e ele perdeu essa ideia. Na segunda parte o Hackman voltou a ter cãibras e ele disse-me: “Vai lá mexer um bocadinho”. Eu fui, fiz o aquecimento, mas já não tinha esperanças que fosse entrar quando, de um momento para o outro ele chama-se. Só pensei “Fogo, não me digas que me vai meter a lateral direito”, mas ele disse-me: “Vais jogar a lateral direito, mas não passas do meio-campo é só cortar umas bolas e defender”. Lá fui eu e, quando estava a entrar, o Tiago Lenho que era o diretor desportivo perguntou-me se ia entrar para lateral direito e eu disse-lhe: “Ó Tiago, eu não me responsabilizo pela merda que vou fazer”. Ele tranquilizou-me, disse-me para ter calma e para jogar seguro que o objetivo era só defender. Eu respondi-lhe: “Até parece que não sabes com quem estás a falar, eu vou entrar, vou fazer uma diagonal e marcar golo” [risos]. O quarto árbitro estava a ouvir e começou a rir-se. Eu entrei e demorou 20 segundos, o que disse que ia acontecer, aconteceu. Fiz a diagonal e marquei golo. Há uma foto em que eu estou a apontar para o quarto árbitro que se está a rir. Teve de dar o braço a torcer. Até parece que era bruxo, na altura.

    Bola na Rede: Era um sinal de confiança?

    Henrique Gomes: Sem dúvida. Uma coisa que nunca me faltou foi confiança, sempre olhei para mim como mais do que era, mas foi isso que me trouxe ao sucesso.

    Bola na Rede: Foi o teu momento mais alto a nível individual?

    Henrique Gomes: Sim. Resolvi um jogo 20 segundos depois de entrar e a um minuto do fim. Acho que o sonho de qualquer jogador é algo deste género.

    Bola na Rede: Disseste que o mister Ricardo Soares te disse só para defender e não passar do meio-campo. O que lhe disseste depois do golo?

    Henrique Gomes: No final do jogo ele chegou à minha beira e a rir disse: “Também sabes rematar”. Eu respondi: “Estou aqui, só não me metes se não quiseres”.

    Bola na Rede: Pediste para bater livres?

    Henrique Gomes: Pedi, pedi [risos]. Já andava a treinar há uns tempos.

    Bola na Rede: São estes os momentos de que te vais lembrar daqui a uns anos?

    Henrique Gomes: São sim, as boas lembranças são o que fica do futebol. Felizmente tenho muitas, posso orgulhar-me disso.

    Bola na Rede: No ano em que o Gil Vicente participou na Liga Conferência o Gil Vicente chegou a estar a lutar pela manutenção. Disseste no fim da época que houve mais altos que baixos. Porquê?

    Henrique Gomes: É matemática. Fizemos mais pontos que os clubes que desceram, então os momentos foram mais altos que baixos. Tivemos uma época sobressaltada. Começámos com o mister Ivo Vieira, infelizmente as coisas não correram bem, mas quando entrou o mister Daniel Sousa começámos a jogar melhor, ganhámos um balão de oxigénio e saímos da linha de água. Depois voltámos a cair novamente e foi preciso outra vez muita luta. Foi precisa a garra que o clube tem e conseguimos passar esses momentos. Nesse sentido foram mais os momentos altos que os baixos.

    Bola na Rede: Há explicação para essas oscilações?

    Henrique Gomes: Não consigo arranjar nenhuma. Tanto havia jogos em que estávamos bem, como contra o Casa Pia quando ganhámos 3-0 ou 3-1, como no jogo seguinte sofríamos imenso. E estamos a falar de um Casa Pia que fez uma temporada muito boa, não consigo mesmo arranjar uma explicação.

    «Teve de comer a sopa por uma palhinha e alguém esteve a dar-lhe de comer à boca, porque toda a gente entrou na história»

    Fonte: Bola na Rede

    Bola na Rede: A nível sénior jogaste no Santa Maria FC, no Vilaverdense, no SC Covilhã, no Gil Vicente e no Académico de Viseu. O que se leva de tantos locais, de tantas pessoas, de tantos colegas?

    Henrique Gomes: Muito boas amizades e muito boas recordações. Devido à minha personalidade nunca saí a mal de clube nenhum e deixei sempre bons amigos. Fui ver um jogo do Covilhã há pouco tempo, mal consiga vou ver do Gil Vicente, vejo regularmente o Vilaverdense. O que fica são as amizades que deixamos, porque nós podemos sair, mas as pessoas continuam lá. Sempre acompanhei os clubes que deixei, porque fica sempre um bocadinho do clube em nós.

    Bola na Rede: Ainda te sentes um bocadinho adepto desses clubes?

    Henrique Gomes: Sim, sem dúvida. Principalmente do Vilaverdense, do Gil Vicente porque é o meu clube de sempre e do Covilhã que me abriu as portas ao futebol profissional.

    Bola na Rede: Como é que vês os encontros com o Vilaverdense na Segunda Liga?

    Henrique Gomes: O primeiro foi logo na primeira jornada e foi um misto de emoções. No início do jogo estive com muita gente que esteve lá comigo, inclusivamente o presidente que foi meu colega de equipa, o treinador que foi meu treinador lá e o técnico de equipamentos que é um mito, o Armando. Tivemos lá alguns bons momentos e tivemos a reavivá-los antes e depois do jogo.

    Bola na Rede: Num Gil Vicente X LANK Vilaverdense quem apoiarias?

    Henrique Gomes: [risos] É difícil, muito difícil. Diria: “Sejam felizes e que ganhe o melhor.

    Bola na Rede: Diz-me muitas vezes “Que percam os dois”. Dirias antes “Que ganhem os dois”?

    Henrique Gomes: Que ganhassem os dois, exato. Ali só desejo bem aos dois.

    Bola na Rede: Falaste dos vários clubes onde passaste. Que histórias tens desses clubes que continuam vivas na tua memória?

    Henrique Gomes: Do Gil Vicente tenho milhares e milhares de histórias. Tenho uma que é muito engraçada. Sempre que alguém fazia anos, nós gostávamos de fazer uma partidinha. Uma das pessoas de quem eu mais gostava e que era o meu saco de boxe, digamos assim, era o Brian [Araújo], o guarda-redes. No ano anterior nós tínhamos-lhe enchido o carro com aquelas bolinhas de esferovite. Foi engraçado, mas não queria repetir, eu queria sempre uma coisa nova e só me lembrei à última hora. Eramos eu, o Pedrinho, o Bouba [Boubacar Hanne], o Hackman, o Lucas [Cunha] e o Ziga [Frelih] que preparávamos essas coisas. Dissemos ao Brian que tínhamos uma coisa para fazer e que se ele quisesse colaborar que o tínhamos de amarrar à força. Ele disse que colaborava, nós amarrámo-lo com película de filme e levámo-lo para o estúdio para gravar um vídeo com o pretexto de que tinha sido amarrado. Ele não sabia, pensava que era só o vídeo e nós aproveitámos para o amarrar ainda mais. Vendámos-lhe os olhos metemo-lo dentro do carro com um papel colado a ele a dizer: “Faço anos, não mexer”. Depois arrancámos para o centro da cidade de Barcelos, porque íamos almoçar lá, e deixámos o Brian sozinho na cidade [risos]. Largámo-lo lá, ele desatou aos berros porque não sabia onde estava, mas ninguém lhe mexia por causa do papel a dizer que fazia anos. Foi muito engraçado. Depois fomos ter com ele e fomos para o restaurante com ele todo maluco. Teve de comer a sopa por uma palhinha e alguém esteve a dar-lhe de comer à boca, porque toda a gente entrou na história.

    Bola na Rede: E ele vingou-se ou não?

    Henrique Gomes: Não, não tinha hipótese [risos].

    Bola na Rede: Passando agora para um lado um pouco mais técnico e tático, como te definias como jogador?

    Henrique Gomes: Defino-me como um jogador defensivamente forte no duelo 1X1 e no duelo aéreo, e ofensivamente como um jogador assertivo, que dá alguma profundidade à equipa e bom nos cruzamentos, apesar de não os usar muito. São coisas que nos ficam, porque nós com o Ricardo Soares chegávamos à linha e ele dizia para não cruzar. Nós voltávamos para trás, e isso ficou-me. Não sei se é benéfico ou não porque tenho o Clóvis na área, então se calhar convinha começar a meter-lhe umas bolinhas [risos].

    Bola na Rede: Gostas de te aventurar em terrenos interiores?

    Henrique Gomes: Aventuro-me um bocadinho de vez em quando, mas não é algo que faça por sistema. Por terrenos interiores costumo fazer passes, mas não costumo aventurar-me em condução.

    Bola na Rede: Que pormenores é que são importantes no teu jogo?

    Henrique Gomes: O mais importante para mim são os apoios, principalmente a orientação dos apoios. Uma boa orientação dos apoios pode garantir o sucesso, porque se levo com uma bola nas costas com os apoios bem orientados consigo apanhá-la, com os apoios trocados não tenho hipótese. Demoro muito a rodar, o extremo vai na direção da baliza e a culpa é minha. Tanto a correr para trás, como a correr para a frente e em bolas aéreas, acho que a orientação dos apoios é algo fundamental. Foi uma coisa que trabalhámos muito com o Ricardo Soares e foi algo que ficou.

    «O que define o Ricardo Soares é a atenção dele aos pormenores. Eu até dizia que ele é meio psicopata»

    Fonte: Bola na Rede

    Bola na Rede: Foi por esse trabalho específico que resultou tão bem essa equipa?

    Henrique Gomes: Sem dúvida. Eu lembro-me que o primeiro treino que tivemos com o Ricardo Soares foi ele a ensinar-nos a correr. Foi um treino muito tático e muito desgastante. Era o adjunto dele com bola, nós a tirar profundidade e ele a corrigir a forma como corríamos. No início fazia muita confusão, porque nós só pensávamos: “Agora vem este gajo ensinar-nos a correr, tantos anos a jogar futebol e agora vem-nos ensinar a correr”. Mas depois entrou na cabeça e agora não sabemos fazer doutra forma.

    Bola na Rede: Foi diferenciado nesse sentido?

    Henrique Gomes: Sim. O que define o Ricardo Soares é a atenção dele aos pormenores. Eu até dizia que ele é meio psicopata [risos]. Era mesmo ao milímetro e linhas defensivas então era incrível. Se a linha defensiva estava perfeita, ele parava o treino só ouvíamos: “Pipipi, parou. Anda cá, dá-me um abraço”. Era surreal. Havia muitos exercícios para treinar a linha defensiva e a reação à perda e ele ficava maluco. Se houvesse alguém que tinha de estar dez centímetros à esquerda e não estava ele ia aos arames, mas quando dava certo ele parava o treino, apitava e gritava: “Temos uma equipa do c******”.

    Bola na Rede: E foram mais as vezes a dar certo ou a dar errado?

    Henrique Gomes: No início deram muitas vezes errado. O Ricardo Soares é o típico treinador para um clube que queira apostar no futuro, porque se for para o imediato pode não dar muito certo. Mas sei que se ele tiver tempo para trabalhar as formas que ele quiser implementar na equipa, vai dar muito certo. A mensagem dele é difícil de passar, porque envolve muitos pormenores e muitas coisas trabalhadas no momento. Nunca fiz uma pergunta ao Ricardo Soares que ele não me soubesse responder no momento. Podia perguntar-lhe uma coisa a ele e ao adjunto e iam responder a mesma coisa, porque estavam todos ligados no mesmo sentido de jogo. Acho que isso é o fundamental de uma equipa técnica, todos pensarem da mesma forma e darem a mesma imagem porque ajuda a transmitir a mensagem. Acho, e já falei disto com muitos dos meus colegas, que na Primeira Liga não há treinadores fracos. A diferença dos bons treinadores para os maus treinadores é a forma como passam a mensagem. Para chegarem lá têm de ter uma ideia de jogo muito boa, mas a forma como passam a mensagem é o mais importante. O jogador tem de compreender e saber o que cada um tem de fazer em todos os momentos de jogo. Na equipa do Ricardo Soares eu sabia o que o extremo à minha frente, o interior e o ponta de lança iam fazer, estávamos todos ligados.

    Bola na Rede: É um futebol onde o humano se liga ao técnico e ao tático?

    Henrique Gomes: Sem dúvida. É um futebol que é técnico e tático, até, porque acredito que a qualidade facilitou muito o trabalho do Ricardo. A nível tático nós eramos irrepreensíveis, havia jogos em que fazíamos a análise ao jogo e dava gosto ver-nos jogar. Naquela equipa o principal fator do sucesso era a reação à perda. Tínhamos à frente o Fujimoto e o Fran [Navarro] muito fortes a dar o primeiro indicador de pressão.

    Bola na Rede: À bocado falámos dos apoios. Na história que já abordámos, quando entraste a lateral direito contra o SC Braga era esse um dos teus receios?

    Henrique Gomes: Era mesmo. Eu no início estava com os apoios todos trocados e só ouvia: “Concentra-te, concentra-te”. Mas é normal, porque estamos a usar a perna contrária. Normalmente arranco com uma perna e naquele lado arranco com outra, os níveis de confiança a nível defensivo baixaram um pouco e estava com algum receio, mas correu bem.

    Bola na Rede: Ainda resiste aquele mito que diz que o lateral é o jogador que não defende muito bem senão era central e que não ataca muito bem senão era extremo. Queres desmenti-lo?

    Henrique Gomes: Quero [risos]. Acho que é exatamente o contrário. Um bom lateral ataca e defende bem, tanto podia ser extremo como central. Já tive colegas que passaram por essa posição por pouco tempo e que me dizem: “Esquece, lateral não é para mim”. O lateral não é o jogador que corre mais, mas é que percorre mais distância a alta velocidade, o que é muito desgastante. Apesar de não fazermos tantos quilómetros como um médio nós corremos muito a alta intensidade e por isso é tão desgastante. Chegar à linha de fundo e ter o discernimento e a frieza de tirar um bom cruzamento ou servir bem o colega torna-se mais difícil porque já chegamos lá cansados. Lateral completo é bom a atacar e a defender. Mas é engraçado, o Vítor Oliveira dizia que conseguia transformar um pinheiro a lateral [risos].

    Bola na Rede: Como é que reagias?

    Henrique Gomes: Ria-me. Era só para me picar.

    Bola na Rede: Que conselhos darias a um miúdo que quer ser lateral?

    Henrique Gomes: Muita paciência. Quantas vezes nós não passamos nas costas do extremo e ele vai para dentro fazer a vidinha dele [risos]. Concentração defensiva, é determinante porque apesar de tudo somos defesas e acho que uma boa solidez defensiva é muito importante. Se eu estiver sólido defensivamente ganho confiança e essa confiança traduz-se no ataque, para tomar boas decisões. Uma boa solidez defensiva é a chave para um bom lateral, porque se lá atrás toda a gente passar por ele, quando chegar lá à frente vai perder confiança.

    Bola na Rede: E que conselhos darias a ti se pudesses dar conselhos ao Henrique de há dez anos atrás?

    Henrique Gomes: Primeiro dizia-lhe: “No dia X não faças um carrinho no Estádio Cidade de Barcelos para não te lesionares» [risos]. Penso que não daria conselho nenhum. Apesar de não ter feito uma carreira surreal, tenho muito orgulho naquilo que fiz. As decisões que tomei foram certas e os momentos em que as tomei foram os certos, daí ter confiado tanto no instinto que tive para vir para o Académico de Viseu e de ter confiado no instinto que me disse para não continuar no Gil Vicente.

    «O Corona fazia os movimentos dele com o pezito e eu não sabia para onde é que ele ia. Mas atenção, nesse jogo fui o melhor em campo»

    Fonte: Bola na Rede

    Bola na Rede: Para terminar algumas perguntas de respostas rápidas que podes desenvolver, se o quiseres.

    Melhor golo que já marcaste?

    Henrique Gomes: Em Braga, sem dúvida.

    Bola na Rede: Melhor treinador que já tiveste?

    Henrique Gomes: Esta é difícil. O Ricardo Soares.

    Bola na Rede: Melhor jogador com quem já jogaste?

    Henrique Gomes: Samuel Lino. E além dele um mago, uma pessoa que nunca vi fazer aquelas coisas, o Samuel Soares do Vilaverdense.

    Bola na Rede: Agora depende um pouco da perspetiva. O pior ou o melhor adversário que já tiveste pela frente?

    Henrique Gomes: Houve um com quem sofri muito, o Corona. Ainda por cima nesse jogo tinha o Corona pela frente e o Marega também descaía muito, passei tão mal. O Corona fazia os movimentos dele com o pezito e eu não sabia para onde é que ele ia. E o Marega, pela força que tem e pela velocidade, era também muito difícil. Mas atenção, importa ressalvar, nesse jogo fui o melhor em campo.

    Bola na Rede: Podes dizer que tiveste pesadelos com o Corona e não foi com o vírus.

    Henrique Gomes: Exatamente [risos].

    Bola na Rede: Melhor estádio em que já jogaste?

    Henrique Gomes: Estádio da Luz.

    Bola na Rede: Qual a tua principal referência no futebol?

    Henrique Gomes: Eu sou sincero, não vejo futebol. Mas quando era miúdo gostava muito do Roberto Carlos, apesar de não querer ser lateral esquerdo.

    Bola na Rede: Era já a cabeça a prever o futuro.

    Henrique Gomes: Estava predestinado.

    Bola na Rede: Se não fosses lateral esquerdo, qual a posição que serias?

    Henrique Gomes: Guarda-redes. Eu costumo dizer aos meus guarda-redes que se fosse guarda-redes e não tivesse na Premier League teria vergonha [risos].

    Bola na Rede: O melhor onze com quem já jogaste? O lateral esquerdo já sabemos…

    Henrique Gomes: Lógico [risos]. Guarda-redes, o Andrew. Lateral direito, o Zé Carlos. Centrais, o Rúben Fernandes e o Tomás Araújo. Lateral esquerdo, o Henrique, claro. Médio defensivo o Vítor Carvalho e jogava ainda com o Pedrinho e o Rúben Ribeiro a oito. Na frente o Samuel Lino, a ponta de lança o Fran Navarro, e o Fujimoto à esquerda.

    Bola na Rede: Onze para ganhar a Liga?

    Henrique Gomes: Fácil, fácil.

    Bola na Rede: Um clube pelo qual gostasses de jogar?

    Henrique Gomes: Gil Vicente.

    Bola na Rede: E lá fora?

    Henrique Gomes: Real Madrid.

    Bola na Rede: Maior sonho da carreira?

    Henrique Gomes: Já o cumpri. Jogar competições europeias no Gil Vicente. Não era um sonho, descobri que era um sonho quando joguei. Era algo impensável.

    Bola na Rede: Chegar à seleção ou à Champions?

    Henrique Gomes: Chegar à seleção.

    Bola na Rede: Para acabar, o que gostavas de dizer aos teus netos sobre a carreira?

    Henrique Gomes: Vou dizer que tive muito orgulho na carreira que tive, apesar das dificuldades. Fiz uma carreira muito aceitável e ainda não acabou, por isso o melhor ainda não aconteceu. Gostava de lhes contar que subi de divisão no Académico de Viseu.

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