«Não ir para o Benfica foi o grande erro desportivo da minha vida, hoje teria forçado as coisas» – Entrevista BnR com Luís Norton de Matos  

    Professor Neca entrevista À BnR

    Luís Norton de Matos nunca se dedicou a seguir uma só coisa, se não a ambição e coleção de experiências. Na carreira desportiva, foi jogador de futebol, diretor desportivo, treinador de vários escalões, selecionador principal e de formação e vários projetos de formação de jovens. Na vida, escreveu um romance, fez cinema, rádio, televisão e jornalismo. À conversa, em volta de várias lições e histórias, foram abordados inúmeros temas como: os tempos de jogador-estudante, a descoberta do novo mundo belga, o arrependimento Benfica, o Meirim e fim de carreira, a lista de grandes jogadores como diretor-desportivo, a ligação africana, uma paixão de formar, a mágoa do Avanca e o clube atual, entre outros.

    – A vida de um jogador-estudante inconformista –

    «A Universidade era a minha meta e quando o Benfica me fez um contrato de três anos e me quis emprestar o primeiro eu disse “Só vou para a Académica”»

    Bola na Rede: Antes de mais, muito obrigado por ter aceite o convite e pela disponibilidade. Qual a memória mais antiga que tem do futebol?

    Luís Norton de Matos: Boa pergunta. Talvez tenha sido o Campeonato do Mundo de 1966, que foi o primeiro Mundial que vi ao vivo. Era miúdo e lembro-me de toda aquela euforia à volta disso. O meu sonho era jogar futebol e um dia pisar um relvado.

    Bola na Rede: Quando andou no S. João de Brito, o seu treinador de colégio, Mário Lino, tentou levá-lo para o Sporting, mas não assinou contrato porque um diretor, Borges Leal, lhe mandou cortar o cabelo e o Luís não quis. Hoje em dia, se pudesse, teria cortado o cabelo e entrado na academia do Sporting?

    Luís Norton de Matos: Não cortaria o cabelo por uma razão: há determinados princípios de liberdade dos quais nunca abdiquei. Fui educado dessa forma. Não sou conformista. Tenho de sentir que há uma lógica para isso e não faria sentido nenhum. Os meus pais nunca se opuseram ao meu cabelo, na altura vivia-se a “Beatlemania”. Essas correntes de maior liberdade e independência chegaram a todo o lado e, portanto, não podia fugir a um contexto, a alguém que não fosse uma educação direta dos meus pais e me obrigasse a cortar o cabelo ou outra coisa. É uma liberdade pessoal que ainda hoje mantenho. Na altura, não fiquei no Sporting e tive pena, porque era muito amigo ao Mário Lino e devo-lhe muito de me ter levado aos treinos do Sporting, daí querem assinar.

    Fonte: FPF

    Bola na Rede: Passou assim a formação no Estoril e depois Benfica.

    Luís Norton de Matos: Sim. Fui muito feliz no Estoril. O meu amigo Manuel Arouca convenceu-me a ir para lá e dormia em casa dele, porque, naquela altura, os transportes eram complicados. Com meia dúzia de jogos, fui para o Benfica. Às vezes, as pessoas dizem-me “recusaste o Sporting”. Não recusei o Sporting, gostava imenso de lá ter jogado. Até ia ver quase todos os jogos deles, embora seja benfiquista desde miúdo, mas acima de tudo sou adepto de futebol.

    Bola na Rede: Faria depois a sua estreia profissional na 1ª Liga pelo Académica – um clube que disse que quase toda a sua família exigia que jogasse. Porquê e como foi chegar ao nível mais alto do futebol nacional com 18 anos?

    Luís Norton de Matos: A Académica era uma equipa única em Portugal e para quem estudasse era a referência. Eu via os jogos todos da Académica e tinham uma coisa interessantíssima: uma posse de bola muito grande no meio-campo, como hoje vemos muito isso. Faziam muitas vezes um espetáculo dentro de um espetáculo. Na minha família, tenho muitos advogados, engenheiros e diversas áreas. Ter um curso superior era quase uma obrigação familiar na altura – a chamada inchada da vida. A Académica era o clube que me podia oferecer os estudos e sempre tive o sonho de ir para Coimbra. A Universidade era a minha meta e, quando o Benfica me fez um contrato de três anos e me quis emprestar o primeiro ano, eu disse “Só vou para a Académica”. Foi uma alegria enorme e fui atrás de todas as tradições, como a de levar um pontapé no rabo no meio de uma fila. Fez-me crescer como Homem, ainda hoje tenho amigos em Coimbra e sigo a Académica. Foi uma equipa que me marcou muito.

    Bola na Rede: Na altura, pelo que sei, jogava futebol e estudava Educação Física ao mesmo tempo. Aos 24 anos, já tinha o curso de treinador. Como foi conciliar a educação superior e o desporto profissional? Sempre soube que seria treinador?

    Luís Norton de Matos: Uma das coisas que tenho e sempre tive foi analisar o porquê do jogo. Falava-se muito de tática de uma forma diferente. Era no fundo o modo como as equipas conseguiam contornar as dificuldades do adversário. Eu sempre fui um pouco treinador desde miúdo no colégio, o futebol de rua deu-me esses mecanismos.

    Inicialmente, não ia estudar Educação Física. Chumbei na aptidão à Faculdade de Direito. Não era o que queria, era mais o peso da família de ser um advogado. Eu sempre quis estar ligado ao desporto e, embora esse chumbo me tenha humilhado um pouco como estudante, vi aí uma oportunidade de sair. Na altura, com o 25 de abril, a Académica acabou e passou a Clube Académico de Coimbra e muita coisa mudou. Não quis entrar nessas condições e fui para o Estoril jogar e estudar no INEF (agora Faculdade de Motricidade Humana). Em relação à conciliação, tive a sorte de poder dar prioridade à educação, ao me terem dado tempo para estudar. Podia faltar treinos se tivesse exames e tive pessoas extraordinárias que compreenderam isso.

    Bola na Rede: Como, por exemplo, o José Caraballo que facilitou nesse processo?

    Luís Norton de Matos: Há três treinadores que tenho de agradecer muito. O Caraballo no Atlético. Dispensava-me quase sempre segunda e terça, porque eram dias complicados. Às vezes, ia treinar atrasado ou sozinho. Depois tive o António Medeiros que foi fabuloso comigo numa exigência maior (Belenenses) e facilitou-me imenso os estudos. E tive também um antigo jogador do Benfica – o Artur Santos – que me ajudou imenso. Todos eles tiveram uma preocupação e cooperação grande. E não foi por isso, fiz praticamente todos os jogos (todos no Atlético).

    – O céu, o inferno e a porta “errada” –

    «Via o dinamismo do Benfica de Eriksson que me identificava muito e entrei num estado emocional complicado, sobretudo quando vejo o Benfica a chegar à final da Taça UEFA com o Anderletch. O meu mundo caiu.»

    Bola na Rede: Em 1978, troca o Belenenses pelo Standard Liège. Acredita que esta transferência tenha sido das mais importantes da sua carreira como jogador e, depois, treinador devido ao amadurecimento, expansão de horizontes e relação/aprendizagem com Ersnt Happel?

    Luís Norton de Matos: Sem dúvida. Foi um crescimento muito importante para mim como Homem e profissional. Portugal estava num contexto muito empobrecido e fechado ao mundo, depois do 25 de abril. Costumo dizer – saí de um país a preto e branco e entrei num país a cores. Na Bélgica, fiquei deslumbrado com a realidade. Foi uma revolução na minha cabeça. Música, cultura, desporto. Tinha um armazém de botas de futebol e levava muitas para Portugal, porque era difícil. A Bélgica estava também muito à frente na metodologia do treino, organização, infraestruturas. Havia uma diferença muito grande com futebol português (não a elite Benfica, Porto e Sporting que sempre foram bons).

    Em Portugal, os treinos eram muito compartimentados/divididos em vertente e, muitas vezes, na pré-época havia 15 dias de treino físico. Estava com receio de como seria na Bélgica. Se quando eles (equipas belgas) jogam contra nós, eram muito fortes e corriam muito, pensei que trabalhassem o dobro ou o triplo. Mas não. Na Bélgica, todos os treinos eram em espaços reduzidos (5×5, 4×4 e 3×3) e fazíamos tudo numa unidade de treino: físico, técnico, tático e mental. Foi incrível. Aprendi muito com o Ernst Happel. É a minha referência como treinador e foi um pouco a minha bíblia de desporto de trabalho. Era um treinador muito à frente.

    Bola na Rede: Em 1981, regressa ao país para o Portimonense e faz talvez a melhor época da sua carreira, ao marcar 13 golos na Liga, ir à Seleção e ganhar o prémio de melhor jogador em Portugal pelos três jornais desportivos. Ao respeitar a sua palavra com o clube, acabou por não assinar pelo Benfica, arrepender-se e ver o seu rendimento baixar. Hoje em dia, teria feito algo diferente?

    Luís Norton de Matos: Tinha. Foi o grande erro da minha vida a nível desportivo. Em termos humanos respeitei uma palavra porque, na minha família, um aperto de mão é como assinar um papel. Eu tive uma proposta do FC Porto, pelo Pinto da Costa, de uma forma muito correta. Tinha as condições acordadas e ia para o clube, caso não conseguissem trazer a referência Fernando Gomes de volta, porque não havia dinheiro para os dois. Conseguiram trazê-lo e agradeceram-me, sendo muito corretos. Entretanto, aparece uma proposta mais baixa do Benfica e, embora não me movesse por números, era importante e estava muito feliz em Portimão. Na altura, ofereceram também o mesmo ao Delgado, guarda-redes da minha equipa. Não havia segredos, éramos amigos. E pensei que devia ter um pouco de orgulho próprio. Acabava de fazer uma época extraordinária, era titular da Seleção (o Delgado não e era guarda-redes), eu era avançado e ia para ser titular do Benfica, ao contrário do Delgado.

    Falei da oferta do FC Porto e achava que o Benfica conseguia pagar isso. O Presidente do Benfica, Fernando Martins, era muito intransigente. Disse-lhe: eu quero ir para o Benfica e se até dia 15 quiser, eu vou nas condições que pedi. Se não, eu apresento-me para treinar e já não saio. Foi o que aconteceu e no dia 16 o meu pai liga-me para vir para Lisboa para o Benfica e eu disse que não. Depois a época não me correu tão bem e tive uma lesão. Via o dinamismo do Benfica de Eriksson que me identificava muito e entrei num estado emocional complicado, sobretudo quando vejo o Benfica a chegar à final da Taça UEFA com o Anderletch. O meu mundo caiu. Hoje teria feito com diplomacia e forçado as coisas para sair, porque a minha carreira teria sido muito mais rica como jogador e, talvez, treinador.

    Bola na Rede: Perto do final da sua carreira, cruzou caminhos com uma das figuras mais mediáticas do futebol português – Joaquim Meirim. Uma vez disse: “acabei a carreira um bocadinho por causa dele”. Gostaria de perguntar porquê.

    Luís Norton de Matos: Encontrei-o no Estrela da Amadora quando fomos jogar a Liguilha e não me identificava muito com o seu estilo de trabalho. Meirim tinha muitas peripécias do género “Norton, é pena as nossas carreiras não nos terem cruzado mais cedo. És um jogador fabuloso, és um exemplo, gosto muito de te ver jogar, etc..” e depois punha-me no banco. A gota de água foi quando o Meirim trouxe um adjunto militar que veio impor regras. A primeira que nós teríamos de estar os 15 dias de Liguilha fechados em estágio. Disse logo que não me identificava, porque há família e nunca tínhamos feito isso. Estar fechado 15 dias num final de época fez-me refletir bastante e emocionalmente foi terrível, ainda por cima quando os resultados não apareciam.

    Comecei depois a ver muitíssimos pequenos detalhes que depois fazem uma grande diferença e já tinha pensado em deixar o futebol no final da época. Não estava feliz. Como por exemplo, um dia, houve um treino físico pelo militar às 9 da manhã e quando lá cheguei, disse que precisava de comer porque não comia desde o jantar das 20:30, mas o militar disse “o pequeno-almoço é depois”. Então disse que não treinava, não me sentia bem para fazer um trabalho de forças. Depois o Meirim falou comigo, ele percebeu. Houve um dia que fiz a minha mala, cheguei lá e disse ao Meirim: “venho agradecer e vou-me embora, acabou o meu futebol”. Nada contra ele, foi uma decisão aproveitada naquele contexto.

    – A Multiface fora de campo e a Mágoa em Aveiro –

    «Quando era diretor desportivo, apresentei uma lista de jogadores ao Presidente do Sporting e ele não conhecia ninguém. Nessa lista, estava o Sebastian Verón , Hermán Crespo, Zanetti, Gallardo, Ortega, etc…»

    Bola na Rede: Em 1987, voltou ao Atlético CP – o seu primeiro trabalho como treinador. Como surgiu a oportunidade?

    Luís Norton de Matos: Penso que foi o António Carraça, jogador, a falar no meu nome à presidência do clube. Até entrei de uma forma curiosa. Na altura, o Atlético não tinha muito dinheiro para uma equipa técnica. Tinha dinheiro para mim, mas não para o adjunto. Então fiz uma proposta curiosa. Eu tinha a Revista Foot onde eu me habituei à rentabilidade da publicidade. Então eles pagavam ao adjunto e eu receberia uma percentagem da publicidade que pudesse arranjar para o clube. O Atlético tem uma exposição excelente para os carros, aviões e barcos que passam sobre o Tejo e eu arranjei uns painéis para a publicidade. E fui pago assim.

    Bola na Rede: Depois de alguns trabalhos a treinar, foi diretor desportivo do Sporting – considerado o primeiro diretor desportivo em Portugal nos tempos modernos. Pode-nos contar um pouco mais sobre essa experiência e quais foram as maiores lições que tirou daí para a sua carreira?

    Luís Norton de Matos: Chego ao Sporting pelo Carlos Queiroz que conhecia do INEF. Entro como um diretor desportivo, mas é um trabalho diferente de atualmente. Sentia-me mais um Scout de luxo. Hoje em dia, um diretor desportivo escolhe o treinador e aqui foi ao contrário. No fundo, a minha vida foi muito de ver jogadores, fiz o continente sul-americano imensas vezes e até diziam que eu tinha a “mania” dos sul-americanos. Era mais ligado ao recrutamento e construção de jogadores. Lembro-me de um torneio na Argentina e vim completamente maluco com o que tinha visto. Apresentei uma lista ao Presidente do Sporting, ele não conhecia ninguém e disse que eram todos jogadores do Sporting, Benfica e Porto. Ele ficou sem acreditar. O mais caro era equivalente a 5 milhões e os outros todos um valor pouco inferior, mas era um investimento para ganhar uma fortuna. Nessa lista, estava o Sebastian Verón, Hermán Crespo, Zanetti, Gallardo, Ortega, etc… Não vem nenhum. Foi pena não ter conseguido que alguns desses jogadores viessem.

    O negócio futebol é comprar bom e barato, embora todos se enganem, mas o acertar está ligado ao clube de várias formas. O que devia dar realmente a noção económica de um diretor desportivo e devia ser exposto era quem é que ele trouxe, quanto foi pago e quanto foi vendido. Eu sempre me agarrei a isso e, no Sporting, houve uma mais-valia extraordinária que nunca foi falado. Outra lição que aprendi é que isto dos jogadores serem bons ou não depende muito do treino. Não é linear. Vemos o exemplo do Rafa que já o tinha recomendado ao Benfica quando jogava no Feirense. Se calhar tem de se saber se é uma pessoa tímida e as suas características e de repente chega um estrangeiro ao Benfica e consegue tirar o melhor que o Rafa tem, que sempre mostrou uma qualidade enorme, mas está agora a fazer uma excelente época. Há que saber trabalhar, potenciar e apostar.

    Bola na Rede: Depois do Espinho e Salgueiros, ruma, em 2005, ao Vitória FC, onde dá o salto como treinador para a 1ª Liga e até Taça UEFA (agora, Liga Europa). Como foi chegar ao mais alto nível do futebol português e a uma grande competição internacional, como treinador?

    Luís Norton de Matos: Chego ao Vitória por mérito, mas nas condições mais difíceis que um treinador pode ter. Imagine entrar num clube como o Vitória cheio de tradições e acabado de ganhar a Taça de Portugal, mas que da equipa que jogou a final sairem oito titulares. A equipa ficou dizimada. Foi feito um recrutamento de jogadores, muitos de 2ª Liga Francesa e 2ª Portuguesa como o José Fonte, por exemplo. Mesmo com uma equipa jovem e inexperiente, conseguimos fazer 29 pontos em 13 jogos e éramos a defesa menos batida da Europa. Na Taça UEFA, batemo-nos bem contra a Sampdoria, que era uma das melhores equipas italianas e saímos com uma salva de palmas dos nossos adeptos.

    Depois entrei num mundo de futebol difícil. Havia muitos problemas e salários em atraso, mesmo com uma equipa baratíssima. Todas as semanas, o Presidente falava que o clube ia ser vendido e não havia dinheiro. Estabeleceu-se um clima de desconfiança e eu só consegui levar o clube porque eles acreditavam em mim. Um dia eu disse que, se algum jogador rescindisse contrato, eu sairia do clube e aconteceu. Apresentei a carta de rescisão, mas foi uma mágoa muito grande.

    Bola na Rede: Falemos de África. Foi selecionador da Guiné Bissau, pertenceu a um projeto da Antuérpia em solo africano e ainda esteve 5 anos no Lusitana, onde conseguiu torná-los a primeira e única equipa africana a ganhar a Milk Cup. O que retirou destas experiências num novo Continente e o que do Futebol Africano poderia, para si, trazer utilidades ao Futebol Europeu?

    Luís Norton de Matos: O Futebol Africano sempre foi uma fonte enorme de jogadores para a Europa. Não nos podemos esquecer que a própria Seleção Portuguesa viveu e vive de jogadores africanos. É raro o grande clube que não tenha, são jogadores excecionais. Há dois tipos de atletas africanos: os nascidos na Europa e os em África. Normalmente em África, pelo que conheci nos meus 10 anos lá, são jogadores que morrem pelas pessoas, clube e ideal, no sentido de darem tudo o que têm. É de uma humildade, simplicidade e reconhecimento fantástico. O jogador nascido na Europa já tem mais picos de Europa, mas com imensa qualidade. Acho que o futebol mundial precisa muito. Temos de ver a parte desportiva, mas também a Humana. O que eu noto nestes países há uma vontade enorme de aprendizagem, seguirem e acreditarem na metodologia e grande ambição. Como Homem, aprendi a ver muito daquilo que é o vazio que temos da existência cómoda na Europa. Em África, soube encher com coisas que nos trazem um alimento espiritual fantástico.

    Bola na Rede: Em 2021/22, foi treinar o Avanca, clube da 1ª divisão distrital da AF Aveiro. Pode-nos contar um pouco mais sobre essa experiência?

    Luís Norton de Matos: Como português, estou com uma mágoa enorme. Criei um projeto de raiz o ano passado e arranjei um investimento privado para levar a cabo uma ideia que acredito e gostava muito de fazer: criar riqueza e notoriedade com pouco dinheiro. O clube Avanca abriu-me as portas e conheci um mundo extraordinário. Eu trazia dinheiro que estava associado a oito jogadores congoleses que os treinei quando estava no projeto da Antuérpia no Congo. São jogadores muito bons cerca de 18 anos. A ideia era transportar esses jogadores para um campeonato, jogar, a equipa subir de divisão e valorizar esses jogadores. Era um negócio económico-desportivo e era bom para todos: para os jogadores, para o Avanca e para mim. Divirto-me imenso e estes projetos são a minha paixão: longe dos holofotes, mas com uma incidência grande na parte humana e treino sem grandes ordens de pessoas.

    Eu sou português, sou internacional, o meu nome é conhecido, sabem os anos que passei em África, fiz tantas digressões pela Europa com o Lusitana, movimentei mais de 250 jogadores sem fugir um, recebi louvores das embaixadas de Inglaterra, Espanha, França e Portugal e todos sabem que estou ligado ao futebol africano. Encontrei-me com o cônsul do Congo, ele adorou o projeto e dá-me o ok político da embaixada ligado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e depois esbarro-me na “Guerra do SEF”, que é o Ministério da Administração Interna. Não consegui falar com o Ministro Cabrita nem com o que dirigia o SEF. Chumbaram-me o projeto sem saberem o que era, quando houve brasileiros, chines e argentinos que trouxeram magotes de jogadores e deixaram-nos à fome no COVID. Mas eu dava uma garantia bancária, tínhamos tudo montado e esses oito jogadores vinham à procura de uma melhor vida e dariam dinheiro ao estado português. Negaram-me completamente, nem me atenderam telefone nem responderam. Bati à porta em Coimbra, região centro, e Aveiro. Neste momento, o Avanca caiu, não tem muitas hipóteses de subir desportivamente e eu fiquei agarrado a um compromisso com pessoas que investiram. E eu como português, não há credibilidade? Isso afetou-me, este assunto foi das coisas que me deu mais mágoa no futebol.

    – O seu Mundo atual –

    “Para os jogos, tenho de fazer a equipa não em função da qualidade, mas sim das regras, porque tenho de apresentar oito jogadores titulares com 3 anos formados no Seraing. Tenho de meter muitas vezes no banco jogadores titulares porque não podem jogar”

    Bola na Rede: Ao longo da sua carreira, formar e orientar jovens tem tido um grande peso na sua carreira, seja no Lille B, Benfica B, India Sub-17 e Sub19, Seraing Sub-23, etc… Esta vertente do futebol é a sua maior paixão neste desporto?

    Luís Norton de Matos: A minha paixão é o futebol. Não há primeiras, segundas e terceiras ligas, jovens ou adultos, mas há um processo que tenho muito prazer em fazê-lo: o percurso de acompanhamento de jogadores e a sua progressão. É muito mais fácil impor as ideias aos jovens mais ávidos de aprender. Adoraria treinar uma equipa de maioria jovem durante cinco anos, evoluirmos juntos e depois vê-los todos formados com grande potencial a jogarem em diversos clubes. Quando eu vejo o João Cancelo, André Gomes e esses jogadores que se estrearam comigo e vê-los onde estão hoje, é fabuloso. Hoje treinando uma equipa sénior, vou sempre querer vários jogadores abaixo dos 20 anos. O trabalho de formação é fundamental. Para mim, ver jogadores como o Ibrahima  Mbaye, que veio tímido de um bairro de pé descalço onde o apanhei, evoluir connosco, ir para a Itália, ser considerado a melhor promessa italiana e conseguir comprar uma casa à mãe, irmã e pai. Isto são medalhas para a minha alma. São coisas extraordinárias de ser vividas.

    Bola na Rede: Falemos do seu clube: RFC Seraing Sub-23. Deparou-se com algumas dificuldades: nos primeiros cinco jogos, não conseguiu ganhar e ocupa agora o 16ª lugar da tabela. Sentiu dificuldades em adaptar-se e acredita que formar e aprender é mais importante que ganhar, isto numa fase inicial?

    Luís Norton de Matos: Sim, o Seraing tem um problema grande: não é um clube de formação, mas sim um clube para o qual os jogadores não estavam preparados. Em Portugal joga-se o sub-19 como juniores. Aqui é sub-18 e quando acabam, ainda são juniores no regulamento europeu, mas têm de jogar como séniores. Este campeonato é muito forte do ponto de vista de experiência (há muitos jogadores que jogaram a 1ª divisão) e depois há um regulamento completamente obsoleto.

    Acho bem que se protejam os jogadores locais, mas o Seraing, não tendo uma tradição na formação, é muito difícil de ter jogadores com 3 anos de formação. Para os jogos, tenho de fazer a equipa não em função da qualidade, mas sim das regras, porque tenho de apresentar oito jogadores titulares com 3 anos formados no Seraing. Se tiver 2 anos, contam como estrangeiro. Deviam ser 3 anos de formação no futebol nacional, esse devia ser o critério. Tenho de meter muitas vezes no banco jogadores titulares porque não podem jogar e, metendo tudo em peso, é extremamente difícil de organizar isso. E se estou nas últimas posições, é porque me tiraram 7 pontos da secretaria. Joguei com sete jogadores de formação, mas joguei com 12 ou 13 belgas. E só posso apresentar 5 jogadores estrangeiros e aqui isso inclui os europeus. Só posso fazer quatro substituições e outra das grandes minhas dificuldades é que só posso ter 15 jogadores no banco.

    Outra regra que também não percebo é que a grande maioria das equipas jogam sem guarda-redes suplente, pela limitação de opções. Na carreira toda, talvez só tive um guarda-redes que saiu. No dia que não levei, o nosso guarda-redes teve de ir para o hospital e tive de meter um jogador de campo. A Bélgica tem sido dos meus projetos mais difíceis de ter resultados mais rápidos. Acho que são regras a mais que impedem o desenvolvimento de jogadores e, por isso, esta adaptação está a ser difícil.

    Bola na Rede: Este ano, ganhou 2 jogos, empatou 1 e apenas perdeu 1 um jogo, tendo o melhor ataque dos últimos 5 jogos. Pergunto-lhe se sente que já se começa a adaptar e o trabalho a surtir efeito, havendo expetativas de um bom ano?

    Luís Norton de Matos: Digo-lhe francamente: ficaríamos nos primeiros seis lugares da classificação se pudéssemos usar jogadores livremente. Começamos a apalpar terreno. É um contexto muito difícil pelas várias regras e dificuldades do clube. Fizemos quatro jogos muito bons e depois há detalhes que mudam tudo. Creio que, em condições normais, pudemos não descer, que é importante. Tínhamos mais vitórias, mas tiraram-nos na secretaria. Aumentamos a média de golos e houve uma evolução. Isso é muito bom.

    Bola na Rede: Falou uma vez “Quem só souber falar de futebol, não é um bom treinador de futebol”. Pergunto-lhe se o facto de na sua vida ter muitos interesses (música, cinema, literatura, rádio, etc..), experiências (diretor desportivo, jogador, treinador, coordenador de formação) e ter trabalhado em inúmeros países, se isso tudo lhe dá bagagem para ser melhor pessoa e melhor profissional?

    Luís Norton de Matos: É importante não estarmos só focados no futebol, no sentido de só sabermos falar disso. Como o futebol é praticado por humanos, temos de compreender o humano. Se tiver várias experiências, posso ter muito melhor intervenção nos jogadores e eles funcionam muito pela mente. A motivação é extremamente importante. Não é só no treino, é também a complexidade que se mete no treino, compreensão do jogo, dúvidas no jogo e situações pessoais de todo o tipo, há uma intervenção do humano que é preciso ter em atenção e eu compreendo isso. Se vou para outro país, temos também que nos adaptar à sua história e cultura e aprendemos com isso. Aprendemos também com um livro, um filme, etc… Ganhamos outros valores. Um treinador também é um educador e orientador. Também damos conselhos. Não podemos só exigir que corram e treinem mais, temos de ir mais além. A nossa vida não pode só ser uma coisa, porque se não chegamos ao fim e só fizemos esse percurso. O resto passou-nos ao lado. Se explorarmos essa realidade, acho que somos mais ricos interiormente para podermos estar em qualquer profissão.

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    Diogo Lagos Reis
    Diogo Lagos Reishttp://www.bolanarede.pt
    Desde pequeno que o desporto lhe corre nas veias. Foi jogador de futsal, futebol e mais tarde tornou-se um dos poucos atletas de Futebol Freestyle, alcançando oficialmente o Top 8 de Portugal. Depois de ter estudado na Universidade Católica e tirado mestrado em Barcelona, o Diogo está a seguir uma carreira na área do jornalismo desportivo, sendo o futebol a sua verdadeira paixão.