«Trabalhei anos num restaurante e num hotel e hoje estou numa empresa de inteligência artificial. Tenho um grande orgulho na minha carreira» – Entrevista BnR a Idalécio

    Idalécio está há onze anos a morar em Londres. O Bola na Rede teve a oportunidade de conversar com o antigo defesa-central português, que passou por diversas equipas, incluindo Braga, Rio Ave, Farense e Nacional.

    «A estreia nas competições europeias foi gratificante e arrepiante».

    Bola na Rede: Antes de mais, obrigado pela disponibilidade, Idalécio. Como está a ser a experiência em Londres?

    Idalécio: Obrigado pelo convite. É um prazer estarmos aqui à conversa. Já passaram 11 anos, realmente o tempo voa. A experiência tem sido muito positiva. Infelizmente não é dentro do futebol, aquilo que foi durante muitos anos a minha profissão. Acabamos e não há espaço para todos, por isso há que procurar alternativas para o bem-estar da família e a mudança aconteceu. Estamos muito felizes com a mudança e o percurso. Costumo muito dizer que a nossa vida tem sido um puzzle: umas peças encaixam-se noutras em termos de trabalhos e aprendizagens. Tenho saltado um pouco em termos de profissão. Em Inglaterra não querem saber da formação, experiência, idade e dão-nos oportunidade. Depois depende do que possamos fazer e como aprendemos. Tem sido desafiante. Olhando para trás consideramos anos muito positivos. Agora trabalho numa empresa de inteligência artificial e sou o responsável pelo escritório da empresa em Londres.

    Bola na Rede: E pensas em algum dia regressar a Portugal?

    Idalécio: Não está de facto nos nossos horizontes. Não é algo que estejamos a planear. Infelizmente temos visto muitas situações de amigos que estiveram em Inglaterra, juntaram algum dinheiro e vieram para investir em Portugal com o objetivo de melhorar as coisas, mas chegámos a conclusão que não. Por muito que se aprenda em Londres, Portugal está muito além a nível de oportunidades. Não está nos nossos planos.

    Bola na Rede: Falemos um pouco da tua carreira futebolística. Depois de três temporadas no Louletano, o Idalécio foi para o Farense, em 1995/96. Como foi dar um grande salto para jogar na Primeira Liga e inclusive na Taça UEFA?

    Idalécio: Foi um percurso em crescendo. Não era muito fácil dar oportunidade aos jovens. No Louletano, tive um treinador brasileiro que mudou muito a mentalidade e as conquistas e felizmente, com 17 anos, começaram a chamar nos para integrar os treinos. Havia um plantel recheado, era miúdo e nos jogos que consegui fazer procurei cumprir. O Farense sofreu uma razia, havia salários em atraso, muitos jogadores rescindiram e foram para outros clubes. Houve falta de muitos jogadores e o meu empresário Manuel Barbosa ajudou me para ir para o Farense. Integrar o Farense foi muito gratificante. Ficaram alguns jogadores de renome no clube, mas muitas posições ficaram afetadas e tive oportunidade de me estrear na jornada inaugural da Liga. As coisas correram bem, fiz vários jogos, marquei golos (3). Fizemos uma época muito irregular, chegamos a uma altura com sete meses de salário em atraso. Foi complicado, de conseguir a manutenção. Também tive a estreia nas competições europeias, foi gratificante e arrepiante.

    Bola na Rede: Estiveste depois seis temporadas no Braga. Como descreves o teu período no Braga?

    Idalécio: Eu estava sempre a pedir ao meu empresário para sair do Farense devido à situação financeira (tinha de ajudar em casa). O Braga também andava com salários atrasos, mas no ano em que cheguei lá mudou a presidência: Sr. João Gomes de Oliveira, uma pessoa que fez muito pelo clube e cumpriu a tempo e horas com tudo o que disse. Depois saiu, ao fim de uns cinco anos, e ficou uma gestão meio à deriva. Perto do final da sexta época, houve rumores de alguns clubes e podia haver a possibilidade (Coventry, Luton e Celtic). Nada se concretizou. Achei que já não havia necessidade e o tempo de renovar com o Braga. Estávamos num impasse. Vim a saber que havia uma cláusula no contrato e, caso enviassem uma carta até uma data, eu teria de ficar. Andei em advogados, porque se falava em indemnizações que não tinha condições para pagar. Atrasou os salários. Tive de abdicar 25 mil euros e houve um acordo e fui para o Nacional. Mas ainda assim, foram seis épocas positivas e de crescimento. Muito orgulhoso por esse percurso.

    Idalécio prosseguiu a falar do crescimento do Braga:

    O Braga tinha poucas condições na altura. Se chovia não podíamos usar o relvado, assim como o principal. Às vezes tínhamos de treinar no pelado ou na mata, à volta do Estádio 1.º de Maio, ou íamos para um campo (a rodovia) que não era abandonado (quem quisesse alugar alugava) ou mesmo na praia. E não era para dar mergulhos [risos] ou também na mata do Bom Jesus. Eram treinos físicos muito exigentes, mas acho que nos fizeram bem e fez nos estar preparados para dificuldades. Além de que começámos a ganhar aos grandes nesse percurso de crescimento do Braga. Começou a ser de algum respeito jogar contra o Braga, seja em casa ou fora. Muito orgulho desse percurso.

    Bola na Rede: Saíste do Braga e foste para o Nacional, onde eras treinado por José Peseiro. O que tens a dizer sobre o técnico?

    Idalécio: O José Peseiro fez um trabalho brilhante no Nacional e foi um privilégio ser treinado por ele. Tinha métodos de trabalho inovadores para muitos jogadores. Foi muito bom trabalhar com ele, tendo em conta o seu percurso. Acabei por pedir a direção do Nacional para me ir embora, porque o meu pai tinha uma doença e começou a piorar. A época correu me bem e liguei para alguns treinadores.

    Fonte: Facebiook Idalécio; Braga 1997/1998 com Idalécio Rosa na fotografia

    «Digam ao treinador que se for homenzinho que venha falar comigo ou que pague do bolso dele para ir-me embora»

    Bola na Rede: Passaste pelo Rio Ave e depois o destino foi o Trofense, onde reencontraste o mister António Conceição.

    Idalécio: Sim e as coisas começaram se a complicar para mim. Em termos de frontalidade e honestidade. Ele conhecia-me e acho que não foi honesto e homenzinho. Limitei me a trabalhar. Era um dos capitães e fui sendo afastado da equipa. Em dezembro, houve telefonemas, mas fiz o meu papel e continuei. Houve jogos em que consegui jogar por castigo dos outros. Um dia, o António Conceição chamou-me e disse me que sabia do bom profissional que era, mas que ia continuar a apostar nos outros jogadores que vinham dos castigos. “Não me peça para ficar satisfeito, compreendo. Você é que toma as decisões”, disse. A partir dali a relação ficou muito pior e houve mais telefonemas de outras equipas. Cheguei a ter um desabafo com os diretores “digam ao treinador que se for homenzinho que venha falar comigo ou que pague do bolso dele que eu vou me embora amanhã”. Chamavam me muitas vezes para reuniões a oferecer valores ridículos, do que tinha para receber. Tive de me apresentar à mesma no Trofense. Ainda tive uma reunião e disseram me que o treinador não contava comigo e que até podia treinar à parte. Sempre os diretores a falar. Já estava farto daquilo. Acabei por ir para o Louletano.

    Bola na Rede: Já muito perto do final de carreira, tiveste dois regressos: Louletano e Farense. Como foi ambos os regressos?

    Idalécio: Contactei o Louletano, sempre valorizei o facto de fazer lá a formação e esperava que pensassem o mesmo. Houve também possibilidade de Chipre. Cheguei a um acordo com o Louletano para um contrato só de um ano, apesar de querer um contrato longo naquela altura. O treinador era novamente o Manuel Balela, que tinha estado comigo, e subimos de divisão. No final, disseram me que não fazia parte do projeto para o ano seguinte e depois fui para o Farense, que tinha muitas dificuldades financeiras. Ligou-me o diretor e disse: “Idalécio, temos aqui 500 euros, o Farense é um grande clube, se quiseres aceitar vens” [disse de forma bem-humorada]. Ainda me sentia bem e já não era uma questão de dinheiro, mas sim de me manter ativo. Queria ajudar o percurso e fui e subimos de divisão. No final da época, comecei também a trabalhar no ramo imobiliário a vender casas. Podia ser difícil para ir a alguns treinos se tivesse visitas e às vezes ficavam chateados por chegar atrasado a treinos por questões de trabalho. Vou depois para o Quarteirense e fico como coordenador da academia de formação.

    Bola na Rede: E depois emigraste.

    Idalécio: Sim. Comecei por trabalhar num Casino e estive lá seis meses. Eram turnos noturnos. Acabei por depois ir para um café-restaurante, que me convidou um homem que agora é meu amigo. Disse que não tinha experiência e que o meu inglês não era suficiente, mas ele convenceu-me. Fiz um trial, que é obrigatório e fiquei. Subi posições. Um dia, surgiu a oportunidade de ir para o Novikov, um restaurante de renome e já tinha ouvido falar, onde foi uma bela passagem. Trabalhei também num hotel Concierge e hoje em dia estou numa empresa de inteligência artificial. Queria só dizer uma coisa [começa a ficar visivelmente emocionado], tenho um enorme orgulho na minha carreira. Não é lamentável e não tenho inveja do percurso dos outros. Tenho um grande orgulho no meu percurso.

    Bola na Rede: Obrigado pelo testemunho. Ficamos felizes por isso. E qual foi, para ti, o melhor momento da carreira (futebol e não só, claro):

    Idalécio: Tenho vários momentos que guardo com carinho, como por exemplo o meu primeiro contrato profissional, a chegada à Primeira Liga – que é algo que muitos sonham e nem todos chegam, portanto foi especial –, a estreia nas competições europeias (estreei-me com o Farense) e logo muito jovem; a vitória ao Benfica nas meias-finais da Taça de Portugal e consequente chegada à final da Taça de Portugal, o apuramento europeu do Braga que foi inédito e com um grupo que fez um trabalho extraordinário. E claro, se me permites, também tive algumas mágoas, como por exemplo a derrota com o Leixões nas meias-finais da Taça de Portugal, que até já havia quem celebrasse a passagem à final da Taça. Foi complicado.

    Idalécio SC
    Fonte: Facebook Idalécio Rosa

    «Guardo uma história de Fábio Paím com carinho»

    Bola na Rede: Partilhaste balneário com personalidades como Fábio Coentrão, Eduardo, Tiago, Quim e até mesmo Fábio Paím. Tens alguma história que nos possas contar?

    Idalécio: O Fábio Paím é sem dúvida uma figura do futebol português e admiro-o muito porque não é fácil sem uma estrutura. As qualidades estavam lá, ele mesmo dizia que no Sporting, tendo em conta as características que tinha em jovem, não havia ninguém que se preocupassem em ensiná-lo a defender. Era atacar, atacar e atacar e isso depois refletiu-se no futebol profissional. Depois também estrutura familiar. Guardo uma história com carinho. Fomos colegas no Trofense e ele decidiu ter um cão. Só que ia de fim-de-semana e deixava o cão fechado no apartamento. Imagina só o cheiro que havia naquele apartamento. Entretanto, o Kaseem Kareem, nigeriano que jogava connosco no Trofense, o miúdo era todo religioso e não se dava tanto com cães. Um dia, o Paím convidou-nos para ir lá comer a casa e sabíamos da história do cão. Dissemos-lhe “Nós vamos lá a tua casa, mas tens de limpar aquilo tudo”. Então ele deu uma limpeza profunda no apartamento e o Kaseem comia e só olhava para o lado com medo que o cão aparecesse. O cão estava fechado lá no quarto e ele não abria a porta, mas estava com um cheiro enquanto comíamos. E depois o Kaseem saia dali e tinha de rezar, não podia estar naqueles ambientes. Foi pena foi o Paím ter passado pela prisão e não deve ter sido nada fácil. Tenho falado e visto que ele dentro do possível vai tentado passar a mensagem aos jovens. Estão a apoiá-lo nisso e desejo lhe o melhor. Fica essa história, mas óbvio que haveria muitas mais por contar.

    Bola na Rede: Qual foi o adversário mais difícil que enfrentaste?

    Idalécio: É uma pergunta comum. Naturalmente, houve vários adversários que enfrentei ao longo da minha carreira futebolística. Mário Jardel era muito bom, lembro-me também do Domingos (ex-FC Porto), mas diria que o mais difícil que enfrentei foi o Liedson, um avançado que dava muito uso à sua mobilidade.

    Bola na Rede: Olhando para a atualidade do futebol, como viste toda a situação à volta da saída de Artur Jorge no Braga, uma vez que foram colegas no Braga?

    Idalécio: Não estou dentro dos bastidores e não falei pessoalmente com o Artur, mas acho que o Artur Jorge acreditava que não iria continuar no Braga. Fez um trabalho belíssimo, tendo inclusive ganho a Taça da Liga nesta temporada. O António Salvador, que não cheguei a trabalhar, mas respeito, criticou o Artur pela sua saída para o Botafogo e disse que tinha sido uma atitude inaceitável. No entanto, queria fazer exatamente o mesmo. Anunciou Daniel Sousa e queria-o neste final de temporada, mas não queria pagar. Como é que pode criticar o Artur? O Artur Jorge fez bem em sair e desejo-lhe toda a sorte para esta aventura no Botafogo.

    Idalécio Rosa Braga
    Fonte: Facebook Idalécio Rosa

    Bola na Rede: Acompanhas a Liga Portuguesa e tens algum defesa-central da Liga que lhe agrade muito hoje em dia?

    Idalécio: O Pepe, apesar da idade que tem, é sem dúvida um profissional e um atleta para a posição de defesa-central que nós admiramos. Não é que me reveja em termos das suas qualidade e capacidades, mas é sem dúvida um excelente defesa-central. O António Silva, numa fase de crescendo. Mas também no Sporting, os jovens defesas-centrais Diomande, Gonçalo Inácio e Eduardo Quaresma, que tem jogado com maior regularidade e com boas exibições. Acho que no tempo em que jogava havia centrais de muita qualidade e por vezes, via-se melhor futebol antigamente do que agora. É algo que nos espanta. No nosso tempo, com menos condições, tínhamos outros valores. Também é uma questão de mentalidade, que hoje em dia é diferente. Havia muito mais respeito pelo treinador. O jovem, mesmo na formação, já tem a mania que sabem tudo e ninguém lhes vai ensinar nada. Perdeu-se também um pouco o imprevisível e a criatividade.

    Bola na Rede: Qual é o teu prognóstico para este fim de campeonato, especialmente na luta entre Braga, FC Porto e mesmo o Vitória SC?

    Idalécio: Faremos um balanço. O Sporting está muito perto de ser campeão e vai ser merecidamente. O Benfica é o que se tem visto, há coisas muito estranhas a acontecer para ali. O FC Porto esta temporada não tem estado tão bem e tem o Braga e, também, o Vitória SC ali perto. Se me perguntares quem gostaria que ficasse em terceiro lugar, claro que era o Braga.  

    Bola na Rede: E prognóstico para Portugal no Euro 2024?

    Idalécio: Portugal mexe sempre com todos nós. Temos enormes jogadores em todas as posições, espalhados pelas melhores Ligas de futebol. Na teoria, o grupo do Euro é acessível, mas há que encarar com humildade. Temos muitas expetativas. É sempre uma honra vestir a camisola portuguesa e queremos sempre o máximo de empenho e dedicação. Não estão sempre juntos e isso pode ter influência nas rotinas, pois às vezes o trabalho em estágio pode ser curto e não chegar. Mas claro que espero que Portugal ganhe e que chegue pelo menos à final do Euro.

    Bola na Rede: Por fim, pensas em regressar ao mundo do futebol e em Portugal?

    Idalécio: Estão sempre a surgir contactos de empresários porque acham que tenho o perfil e que posso ser importante para eles em termos de empresas, mas muitos desses contactos, por vezes, é na base do “se acontecer alguma coisa, vamos pagar”. E eu não tenho tempo para “ses”. Agora surgiu de facto um agente FIFA, um rapaz com quem me identifico e formou uma empresa em 2019: Eleven Stars, de Braga. Convidou-me para tentarmos para fazer alguma coisa e os nossos caminhos cruzaram-se. Às vezes achamos que não é por coincidência. Estávamos no Dubai (estava a visitar a minha filha que está a viver e a trabalhar e ele em trabalho), tivemos a oportunidade de jantar e conversámos. Dentro das suas possibilidades, levou-me a Portugal e fui a alguns clubes, onde ainda estão algumas pessoas, tivemos várias reuniões para tentar perceber os projetos. Dizer aos diretores dos clubes que queríamos desenvolver um trabalho de agenciamento. Não tínhamos ainda os jogadores para o futebol profissionais, mas com parceiros nesta fase inicial. Nesta janela de inverno, entre alguns contactos, tentámos entre alguns contactos jogadores do Brasil, África. Jogadores internacionais. Não se conseguiu fazer nada, mas não é para baixar os braços. Vamos ver daqui para a frente. É uma situação que exige persistência, não é um meio fácil e sabíamos disso. Ele acredita em mim e eu nele. Sei que está a fazer também um trabalho muito bom na formação e no futebol feminino. Acredito que as coisas possam vir a dar, agora vamos ver o tempo que pode levar até que aconteça alguma coisa e é continuar a acreditar e a trabalhar nesse sentido. Também não é algo que possa fazer a 100%, primeiro o meu trabalho e as minhas coisas e depois, se conseguir, ajudar nisso. Quero muito.

    Bola na Rede: Muito obrigado pelo teu tempo e disponibilidade. É um prazer.

    Idalécio: Muito obrigado eu. Um abraço.

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    Diogo Lagos Reis
    Diogo Lagos Reishttp://www.bolanarede.pt
    Desde pequeno que o desporto lhe corre nas veias. Foi jogador de futsal, futebol e mais tarde tornou-se um dos poucos atletas de Futebol Freestyle, alcançando oficialmente o Top 8 de Portugal. Depois de ter estudado na Universidade Católica e tirado mestrado em Barcelona, o Diogo está a seguir uma carreira na área do jornalismo desportivo, sendo o futebol a sua verdadeira paixão.