«Cruyff disse que eu o fazia lembrar a ele próprio» – Entrevista BnR com Dani

    – Litígio com o Benfica, fúria dos adeptos em Madrid e o adeus prematuro –

    BnR: Sabendo o que sabes hoje, terias feito algo de forma diferente no Benfica?

    D: Tem a ver com o que disse há pouco. Não estaria a ser intelectualmente honesto se fosse dizer que fazia diferente. Agora olho e penso que podia fazer muitas coisas diferentes, mas, na altura, como a vida estava a acontecer… O Ajax queria dar-me mais cinco anos de contrato, mas eu recusei. Queria voltar para Portugal, para perto da minha família e dos meus amigos. Tive fora não sei quantos anos, e tinha só 23 anos. Já estava farto de estar fora de Portugal. Sentia falta das pessoas e de me sentir como uma pessoa diferente daquela que me sentia lá fora. Apareceu a possibilidade do SL Benfica. Um projeto que estava numa fase, o que me transmitiram foi de aposta, mas depois mudou o presidente, ideias diferentes, objetivos diferentes. Não contavam comigo, e o melhor foi sair.

    BnR: Como se dá a tua ida para Madrid?

    D: Foi depois do litígio com o Benfica, enquanto este estava ainda a ser resolvido. Estávamos em dezembro, o Atlético estava pela primeira vez na Segunda Divisão. Nessa altura creio que só tinham feito 11 pontos. Saíram muitos jogadores, o clube ficou sem a possibilidade de se reforçar, financeiramente estava a passar por muitas dificuldades. O Futre pegou naquilo como diretor desportivo, e estava a fazer tudo para conseguir voltar à Primeira Divisão. Mas havia muitas limitações. Não estava a correr nada bem. O Futre falou comigo e apostou para eu tentar ajudar o Atlético a voltar à Primeira.

    BnR: Qual é o teu primeiro contacto com o Futre?

    D: Eu já conhecia o Futre há muitos anos. Quando tinha 17/18 anos e subi à primeira equipa do Sporting… houve uns tempos em que eu não jogava, umas situações em que fui irresponsável. O Aurélio Pereira, que foi quem me descobriu, e por quem eu tenho um carinho e uma amizade extraordinária, falou com os meus pais e foram jantar lá a casa – ele e o Futre. Foi aí que o conheci. Tivemos logo uma empatia, e a partir daí ficámos sempre amigos. Eu acho que sou um bocadinho o irmão mais novo dele e temos uma relação fantástica e um carinho enorme um pelo outro.

    Dani sobe de divisão com o Atlético de Madrid, em 2001/2002
    Fonte: Arquivo pessoal Dani

    BnR: O que é que ele te diz para te convencer a ir para o Atlético?

    D: No momento em que o Atlético está a chegar ao final da primeira volta e está muito mal, o Futre ligou-me: “Epá, vens e tal, eu vou pôr a cabeça por ti. Por causa do que se fala, há muita gente que não acredita em ti e no teu valor. Mas eu acredito, podes fazer aqui a diferença”. Eu também apostei um bocadinho pelo recuperar da paixão pelo jogo, pelo mundo do futebol.

    BnR: O que te recordas da subida à Primeira Divisão em 2001/02?

    D: Quando chego ao Atlético, financeiramente era uma coisa completamente descabida. Não tinha nada a ver com os contratos que eu tinha antes, mas decidi abdicar. Há bocado perguntaste-me sobre episódios com os adeptos a mostrar desagrado com os jogadores. Lembrei-me de um. Cheguei ao Atlético e fui ver o primeiro jogo. Estacionei o carro, tinha um carro porreiro e tal, com matrícula holandesa, e estacionei-o na garagem dos jogadores, que era dentro do estádio e à qual os adeptos tinham acesso.

    BnR: Não acredito (risos).

    D: É para veres como era na altura. O Atlético perdeu, e, quando eu cheguei ao meu carro, tinha os pneus furados, a capota rasgada, tal como estavam os outros todos. Olhei para o carro e pensei “Mas eu acabei de chegar, ainda não fiz nada, ainda nem joguei e já me estão a destruir o carro?”.

    BnR: É como dizias, os adeptos lá cobram… e bem!

    D: Sim, mas depois até ao final da época melhorámos, e não subimos por goal average. Fizemos uma segunda volta espetacular. Eu tinha assinado por seis meses, e depois com mais três de opção, se subíssemos. O Futre disse que o contrato estava assinado, mas com alguma abertura. A palavra vale mais do que as assinaturas, e eu acho isso muito importante. No final da época, não subimos. Era tudo um bocado incerto, e eu voltei para Portugal. Nem tinha chegado cá e já o Futre me estava a ligar, a dizer que ia fazer uma equipa espetacular para subir para o ano, e que ía buscar um treinador como deve ser. Eu perguntei “Mas vais fazer como? Então não há dinheiro, não há nada”. Havia uma junta diretiva a tomar conta do clube, que não permitia que ele fizesse contratações ou gastasse dinheiro. Ele só dizia “Não te preocupes, que eu vou fazer”.

    BnR: E o Futre cumpriu?

    D: Voltei. Ele depois foi buscar o Aragonés como treinador, o Albertini, o Sergi, o Mono Burgos, que é agora o adjunto do Simeone, e apostou no Torres. Fizemos uma temporada absolutamente extraordinária. Acho que dois meses antes da época acabar, nós já estávamos garantidos na Primeira.

    BnR: Falei com o Carlos Xavier ontem, e ele disse para te perguntar pelo episódio no qual o Futre disse que te dava dois tiros no joelho.

    D: Isso é uma história que foi exacerbada a um ponto… Eu no primeiro ano chego a meio da época, e passado um mês ainda só tinha jogado na Taça. Eu pensava “Jogo melhor do que estes gajos todos, a equipa está mal e o homem não me põe? Ele tem que me pôr a jogar, senão o que é que eu vim aqui fazer?”. E eu comecei a dizer mais vezes que ele tinha que me pôr a jogar. Depois há uma semana em que íamos jogar contra o Bétis, creio, e eu fui jantar numa 5ª-feira. Saí do restaurante à meia-noite, uma da manhã, a pensar que não ia jogar no sábado. Mas com a fama que eu tinha e com o rótulo, começaram logo a dizer coisas. Então o Futre chamou-me ao gabinete e disse “Agora vais jogar no sábado que eu vou dizer ao homem para te pôr a jogar. Pela saúde dos meus filhos, se tu não jogares bem, eu faço e aconteço e tal”. Agora nada disso dos dois tiros (risos). Foi mais uma conversa dele a mostrar que acreditava em mim.

    BnR: Do que é que tens mais saudades dos tempos de jogador?

    D: O balneário, sem dúvida. E os momentos em que tínhamos de decidir. Lembro-me perfeitamente quando joguei os quartos de final da Liga dos Campeões. Atlético de Madrid-Ajax, estádio completamente cheio. Eu entrei já no final do jogo, e fomos a prolongamento. Alguns desses jogadores tinham estado naqueles cinco anos do Ajax, daquelas vitórias todas. Tinham ganho tudo. Os irmãos de Boer estão os dois a olhar para os adeptos e para aquele ambiente, e comentam a loucura que aquilo era. Eu muito calmo e tranquilo disse-lhes “Vamos calar estes gajos. Deem-me a bola que eu faço isso”, e eles a olharem para mim do género “Mas este miúdo…”. E eu disse “Isto é o melhor, estes momentos. Podermos com as nossas qualidades fazer algo de marcante”. Esses momentos fazem falta.

    Outro momento foi no Mundial do Qatar. Logo no primeiro jogo contra as Honduras, o Carlos Filipe é expulso aos 30 segundos. Ao intervalo estávamos a perder, e as Honduras eram a equipa mais fraca. Ele diz-me “Pelo menos dois ou três jogos eu levo. Se não passarmos a fase de grupos, nunca mais jogo à bola na vida, acabou-se aqui a minha carreira”. E saíu-me do coração “Não te preocupes, nós vamos ganhar, nem que eu tenha que agarrar na bola e marcar um golo”. Nunca tive a certeza se marcava ou não, mas o futebol para mim, muitas vezes, era o instinto. Claro que há a tática, a técnica, etc. Mas naqueles momentos, o instinto, a força mental, o sonhar e a paixão que está inerente ao sonho tem muita força. A verdade é que na segunda parte agarrei na bola, fintei não sei quantos e marquei. Fui a correr para ele, mas depois agarraram-me. No final do jogo, ele veio ter comigo e agradeceu-me.

    BnR: O que é que pesa mais na tua decisão de terminar a carreira aos 27 anos?

    D: Uma parte pessoal, que teve a ver com a minha mãe. Mas, acima de tudo, alguma desilusão com o mundo do futebol.

    BnR: Qual a melhor lição que o futebol te ensinou?

    D: A melhor lição é que tudo é possível. Não renegar a paixão e a capacidade de sonhar que o futebol transmite. É a noção do que o futebol representa em termos de sociedade, as pessoas ficam… enquanto jogava, não tive tempo para ter essa noção, do que transmite, do quão importante é para os adeptos. É uma realidade que não se pode perder. O mundo do futebol, hoje em dia, está muito ligado à parte financeira, e está-se a perder um bocadinho a paixão. Na raiz do futebol, está a paixão e o permitir sonhar, seja a que nível for. Uma criança que tenha o sonho de ser jogador de futebol pode mudar muita coisa. Não só a sua vida em termos individuais, porque pode alcançar coisas extraordinárias e transcender-se, mas também pode levar consigo um país, uma cidade, um povo, uma família. Isso só o futebol é que permite.

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