Depois da “Quinta del Buitre”, eis a “Quinta del Pipo”: a reconstrução do Valencia CF

    O Valencia CF está a marcar a temporada de 2023/24 pela sua aposta na formação. Rubén Baraja é o grande obreiro do projeto.

    O Valencia CF é um dos emblemas com mais história no futebol espanhol. A turma da capital da Comunitat Valenciana viviu o seu período de ouro na viragem do século, atingindo duas finais de Champions League, pelas mãos de Héctor Cúper, nos melhores anos da carreira do técnico argentino, que começou a sua “queda livre” pouco depois, após abandonar o Mestalla. Venceu igualmente o campeonato de 2003/04, pelas mãos de Rafa Benítez.

    O estádio do Valencia já foi palco principal para vários craques, para histórias fantásticas, de uma instituição centenária, que se espera que esteja sempre no topo da tabela, descontando o Real Madrid CF e o FC Barcelona (juntando-se o Club Atlético de Madrid nos últimos anos). A luta pelo acesso às competições europeias, deveria ser sempre o mínimo pedido.

    O futebol espanhol tem dado muita margem para bons projetos, provando que ainda existe espaço para o médio/longo prazo. Exemplos ilustrativos são os casos da Real Sociedad de Fútbol e do Real Betis Balompié. Numa franja mais abaixo, CA Osasuna e Rayo Vallecano de Madrid têm provado que clubes com menos relevância podem ser totalmente autossustentáveis e com um crescimento contínuo. O Girona FC tem sido a revelação de 2023/24, seguindo a mesma ordem de ideias.

    Porém, é no país vizinho que temos igualmente assistido a grandes quedas, que mostram a outra face da moeda. O caso mais elucidativo é o Real Club Deportivo de La Coruña, perdido na Primera RFEF e salvo por um banco famoso da região. O Valencia, em termos de gestão, está mais próximo dos galegos, que dos exemplos dados no parágrafo acima.

    Peter Lim é o dono do emblema che, mas tem tido anos absolutamente deploráveis na liderança da instituição. Contudo, este artigo serve para abordar um tema positivo (dos poucos que existem para falar no Universo Valencia) e não para enumerar as más escolhas e decisões tomadas pelo empresário de Singapura.

    Baraja a treinar o Valencia
    Fonte: Valencia CF

    Algo que se destacou no final da temporada de 2022/23, após a chegada de Rubén Baraja ao comando técnico do Valencia, foi a utilização de jovens promessas, que brilhavam pela equipa B e que mereceram o reconhecimento do antigo médio. A luta em que o plantel estava concentrado era a da manutenção, sendo que poucos adeptos tinham esperanças no salvamento da sua entidade querida (a escolha de Baraja não foi recebida com positividade, dados os fracos trabalhos realizados anteriormente). A verdade, é que o Valencia conseguiu salvar-se mesmo na última jornada, conseguindo a certeza de mais uma participação na La Liga.

    2023/24 não foi recebida com pompa e circunstância. O mercado do passado verão foi o reflexo do estado atual do Valencia. A inércia reinou na maioria das semanas, mesmo com os 20 milhões de euros que o AC Milan pagou por Yunus Musah. Feitas as contas, entraram três novos nomes pela porta da Ciutat Esportiva: Pepelu (médio, Levante UD), Selim Amallah (médio ofensivo, ex- Real Valladolid CF) e Sergi Canós (extremo, Brentford FC), além de Roman Yaremchuk que está no clube com a condição de cedido, oriundo do Club Brugge KV. Não é um cardápio muito famoso. São nomes de meio de tabela, no máximo e que jamais atuariam no Valencia da viragem do século ou da era Rafa Benítez. Porém, foi o que se conseguiu espremer de um mercado pobre e que não iludira os adeptos. Leia-se o que foi dito pelos jornalistas Andrés García e JM López, do Superdeporte, ao dia 2 de setembro de 2023:

    «O Valencia encerra a pior janela de transferências da história. E a mais perigosa. Não há tempo para corrigir a situação. Peter Lim condenou a equipa a lutar pela despromoção por mais um ano. A sua decisão de não investir em reforços enfraqueceu dramaticamente o plantel em relação à época passada. O balanço geral é assustador. Dez saídas e apenas quatro entradas: Pepelu, Sergi Canós, Selim Amallah e Roman Yaremchuk, sem contar com a opção de compra de Cenk Özkacar. Uma gestão negligente que demonstra, mais uma vez, a falta de empenho e de sensibilidade do acionista máximo e deixa a “gestão local” de Layhoon Chan, Javier Solís e Miguel Ángel Corona retratada pela sua falsa autonomia. Rubén Baraja está furioso, mesmo que o seu discurso de momento seja politicamente correto, e os adeptos estão indignados. Não é de admirar. O mercado é uma falta de respeito pelo clube de Mestalla. Fracasso. Não há justificação possível».

    No entanto, olhando ao dia de hoje, o Valencia ocupa a oitava posição da La Liga, com 18 pontos conquistados. O que aconteceu? Rubén Baraja voltou a apostar nos miúdos. Já há quem lhe chame a “Quinta del Pipo”, algo que nos remete para a cidade de Madrid, nos anos 80 e 90, para a famosa “Quinta del Buitre”. É um fenómeno comum a aposta em jovens quando se passa por severas crises financeiras. Parece que é “meio obrigatório”, mas ao mesmo tempo, algo que os aficionados adoram. Não necessitamos de ir muito longe para explanar dois exemplos: o Sporting CP de Leonardo Jardim, e o Vitória SC, quando era orientado por Rui Vitória. O Valencia segue um pouco este barco.

    Baraja não é o melhor treinador do mundo, possivelmente nem entra no top 10 de melhores técnicos da La Liga, mas teve a coragem de lançar jovens para salvar o clube, nem que fosse na área financeira, já que podem tirar o Valencia do vermelho. Hoje a grande promessa está cara. Podemos dividir em dois grupos os elementos em que o antigo médio tem apostado. Em primeiro lugar os elementos que se transformaram em titulares e integram a coluna vertebral do 11 inicial. Em segundo, outros jogadores que têm crescido e somado minutos, ou podem vir a fazê-lo com relativa brevidade.

    Javi Guerra, Diego López, Fran Pérez e Cristhian Mosquera são essenciais para o Valencia aos dias de hoje.

    Javi Guerra é o grande protagonista desta fornada. É um médio mais conhecido pelas suas capacidades de transporte e drible, e pela sua atitude no momento ofensivo, do que propriamente no defensivo, embora em claro crescendo neste aspeto. É um atleta com somente 20 anos e que apareceu no final de 2022/23, transformando-se no elemento vital de Baraja no centro de campo. No fundo, é o jogador que mais sente o emblema dentro de campo:

    «Conduzo o carro que Valencia me dá, não quero mais. Não mudei a minha vida e não preciso de o fazer. A responsabilidade é defender um brasão histórico como o de Valência», afirmou o próprio Guerra ao El Mundo.

    O próprio Baraja admite a influência do internacional Sub-21, que já está a ser cogitado para a A:

    «O processo de Javi tem sido muito rápido. Terminou bem a época passada e este ano começou a ser protagonista em acções defensivas, a marcar golos… isto põe sempre em evidência o trabalho de cada jogador. Ele tem de ter calma, assumir e gerir esta situação e nós temos de tentar que ele se concentre no que é importante, no trabalho do dia a dia. Ele ainda tem de trabalhar, ainda é muito jovem. É preciso saber lidar com isso e ele está a levar o seu tempo para gerir tudo, só tem de pensar no futebol».

    Não será estranho ver Javi Guerra a rumar a outras paragens, mas a dupla que tem feito com Pepelu no meio-campo, tem sido absolutamente brilhante e de uma segurança que não se estava à espera. Está avaliado em 20 milhões de euros. Os 13 jogos, com três golos e duas assistências são o espelho da sua qualidade.

    Estatísticas de Javi Guerra
    Estatísticas de Javi Guerra. Fonte: FBREF
    Mapa de Calor de Javi Guerra, jogador do Valência
    Mapa de calor de Javi Guerra. Fonte: Sofa Score

    Diego López é outro herói improvável que atua no Mestalla. Longe do protagonismo de Javi Guerra, é um extremo/médio ala (que pode jogar com segundo avançado), com uma grande capacidade de movimentação, além de ajudar bastante no processo defensivo, quer quando joga à esquerda, quer quando joga à direita. A sua competência fez com que fosse convocado por Santi Denia, para os Sub-21 de Espanha, algo que não era possível de imaginar antes da chegada de Baraja. São três golos em 13 jogos em 2023/24, para o “baixinho” e ágil de 1,72m.

    Tem um valor de mercado de 10 milhões de euros, aos 21 anos de idade.

    Marc Escribano, do Las Províncias, considera Diego López um elemento fundamental no capítulo ofensivo:

    «Assim se forjou a chegada a Valencia do jovem que revolucionou o ataque blanquinegro e que ganhou o direito de pertencer a uma equipa principal na qual será uma peça importante nos próximos anos, desde que Meriton não o use como moeda de troca para limpar as suas delicadas contas. A cidade desportiva continua a encobrir a falta de investimento em jogadores».

    Diego López, jogador do Valência, estatísticas
    Estatísticas de Diego López. Fonte: FBREF
    Mapa de calor de Diego López, jogador do Valência
    Mapa de calor de Diego López. Fonte: Sofa Score

    Se de um lado do ataque está Diego López, do outro está Fran Pérez, que chegou igualmente há pouco tempo à seleção de Sub-21. Ao contrário do seu companheiro, Fran Pérez não é tem tanto jogo interior como o seu colega, mas é muito superior na capacidade de transporte e de transição, sempre colado à linha. O seu grande defeito é “esquecer-se” de soltar a bola em alguns casos, perdendo o esférico em demasiadas ocasiões, acusando um certo individualismo.

    O atleta até esteve para ser cedido no último mercado para o Elche CF, mas as boas impressões permitiram-no ficar e ser um dos destaques. O Superdeporte escreveu isto sobre Fran Pérez, após a fantástica exibição de espanhol contra o Athletic Club (um golo e uma assistência):

    «As estatísticas para além dos dois golos marcados reforçam ainda mais o seu excelente jogo. Fran Pérez completou com sucesso 93 por cento dos passes que tentou, dois dos quais foram passes chave para golos. Um deles foi o que terminou com o 1-2. Também brilhou nos dribles, completando com sucesso cinco dos seis que tentou. A sua mudança de ritmo em espaços curtos permitiu-lhe driblar o seu companheiro em mais do que uma ocasião. Nos duelos com qualquer adversário, ofereceu a contundência necessária em jogos desta natureza. Saiu por cima em seis dos nove jogos que disputou, demonstrando que, defensivamente, é também um jogador com capacidade para contribuir. Na defesa, fez também duas intercepções de bola dos seus adversários.

    Em suma, um jogo brilhante de Fran Pérez, que se completa com o mais importante no futebol: o seu contributo em golos. Este é o seu primeiro golo da época e a sua terceira assistência. Pouco a pouco, vai somando números que demonstram que está a fazer um bom ano, apesar de ainda ter muitos pormenores para polir devido à sua juventude e inexperiência na Primeira Divisão».

    Fran Pérez tem um valor de mercado de cinco milhões de euros, quantia que deverá aumentar, caso as exibições como a de Bilbao se repita. Conta com um golo e três assistências, em 13 partidas disputadas.

    Estatísticas de Fran Pérez
    Estatísticas de Fran Pérez. Fonte: FBREF
    Mapa de calor de Fran Pérez, jogador do Valência
    Mapa de calor de Fran Pérez. Fonte: Sofa Score

    Ao compararmos os dois elementos, verificamos que Diego López e Fran Pérez são algo distintos, mas que se complementam relativamente bem:

    Diego López e Fran Pérez comparados
    Comparação entre Fran Pérez e Diego López. Fonte: FBREF

    Por último, há Cristhian Mosquera, que se está a assumir como um patrão na defesa. Central de grande envergadura (1,91 m e 83 kg), revela grandes capacidades defensivas, tendo uma percentagem bastante elevada de duelos defensivos ganhos. Tem tudo para crescer e marcar uma era no emblema che. As suas caraterísticas psicológicas fazem dele um líder, mesmo quando tinha somente sete anos, como explicou Jorge Fernández, seu treinador nas camadas jovens do Hércules CF:

    «Foi sempre um jogador muito especial e um rapaz muito especial em todos os aspectos. Era maduro, responsável e educado, mesmo quando se tratava dele aos sete anos de idade. Além disso, o seu ambiente familiar foi-lhe muito favorável, porque nunca se exibiu ou ficou nervoso. O Cristhian tinha boas notas. Era um grande líder no balneário, muito responsável e calmo. Um dez tanto dentro como fora do campo».

    Hoje conta com 19 anos e é uma aposta fixa de Baraja, que o confirmou sem qualquer tipo de problemas:

    «Tem 19 anos e já não jogava há algum tempo. Quando discutimos a possibilidade de um defesa-central no verão, ficou claro para mim que tínhamos de apostar nele e que ele tinha de ganhar minutos. Foi isso que lhe deu confiança e está a fazer um bom jogo. Mas é um rapaz com muita energia, humildade e fez um jogo muito completo».

    Conta com somente um valor de mercado de dois milhões de euros, mas o Valencia não aceitará qualquer proposta por um defesa deste quilate. Soma 11 partidas em 2023/24.

    Cristhian Mosquera, jogador do Valência, estatísticas
    Fonte: FBREF
    Mapa de calor de Cristhian Mosquera, jogador do Valência
    Mapa de Calor de Cristhian Mosquera. Fonte: Sofa Score

    O seu companheiro na defesa tem sido Mouctar Diakhaby, relegando Ozkacar e Gabriel Paulista para segundo plano. Comparemos a dupla, de modo a observar a diferença entre os atletas:

    Mosquera e Diakhaby comparados
    Comparação entre Mouctar Diakhaby e Cristhian Mosquera. Fonte: FBREF

    Existem depois uma série de elementos que integram o plantel da equipa e que podem chegar a ser destaque num futuro próximo: Pablo Gozálbez, Rubén Iranzo, Yarek Gasiorowski, Mario Domínguez, Jesus Vázquez, Hugo González, Alberto Marí (lesionado) e Martín Tejón.

    Há muito material para ser trabalhado na Ciutat Esportiva, algo que nem todos os emblemas conseguem ter. O Valencia possui uma equipa B em que pode aprimorar os talentos, antes de darem o salto seguinte. Orientada por Miguel Ángel Angulo, tem sido consecutivamente “assaltada” pelos A, estando no quarto escalão do futebol espanhol, que tem relativa competitividade.

    Não é só o clube que ganha com esta aposta nos jovens. A própria seleção espanhola lucra com tudo isto. Há vários elementos nos escalões inferiores, inclusivamente nos Sub-21, que estão a ser usados/ preparados em Valência. Luis de la Fuente terá em vista atletas como Javi Guerra ou Diego López, sendo que os mais velhos beneficiam do crescimento da equipa, com Pepelu igualmente associado à La Roja.

    A lista de José Lana, selecionador de Espanha Sub-17, exibe a qualidade formativa da turma valenciana, com dois nomes chamados (terceiro clube com mais convocados, somente atrás de Real Madrid e Barcelona): Raúl Jiménez Latorre e Pablo López Gómez.

    No entanto, como terminará este projeto que adveio de uma necessidade? O Valencia tem um dono milionário, mas está mergulhado em dividas, inclusivamente com a Generalitat Valenciana. As promessas passaram a ser os ativos mais valiosos do emblema de Peter Lim, que parecia estar destinado a lutar pela manutenção. Mesmo que Javi Guerra e outros façam juras de amor ao seu clube do coração, parece óbvio que alguns elementos terão que ser vendidos e Baraja ter que continuar a alimentar a máquina com mais promessas a entrar a jogo.

    O que terá que ser feito nos próximos mercados, de uma maneira obrigatória, é retirar o excesso de atletas que integram os quadros e não possuem qualidade para tal. O plantel do Valencia pode ser constituído na sua maioria por jovens oriundos da formação, mas tem que ser completo com mais valias, porque algum dia os “novatos” vão falhar ou estarão indisponíveis. Nem sempre há solução na cantera para todas as posições.

    Com o Nuevo Mestalla a caminho, um pesadelo (para o clube e para a cidade) perto de terminar, a presença assegurada da cidade no Mundial 2030, o Valencia tem tudo para tornar-se num clube estável de novo, com os holofotes centrados por lá. O seu grande problema é mesmo o dono, mas esse não poderá ser substituído por nenhum miúdo da formação.

    A produtividade e sucesso da cantera não pode, nem deve ser confundido com Peter Lim. Foi a sua inércia que levou a esta aposta, mas o asiático não tinha em vista este sucesso, embora vá lucrar bastante com ele.

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