José Mourinho fez um bom trabalho em Roma e vou explicar o porquê

    José Mourinho foi despedido e a decisão parece-me desajustada. A AS Roma estava longe de encantar nos últimos jogos, mas a verdade é que ainda se encontrava dentro dos objetivos principais da época desportiva. Os que querem olhar para o copo meio vazio vão dizer que estava no nono lugar, os que olham para o copo meio cheio vão dizer que estava a apenas cinco pontos dos lugares de Champions e ainda na Liga Europa.

    De facto, a segunda ideia parece mais lógica até porque estamos em janeiro e a verdade é que José Mourinho não é um treinador qualquer, nem um técnico que chegou à AS Roma há meia dúzia de meses sem resultados práticos. Não sabendo se a saída de Tiago Pinto teve impacto neste desfecho, esta decisão parece precipitada e com pouca lógica. De qualquer maneira, vamos olhar a factos. Reconhecendo que existiram coisas que podiam ter sido melhores, o cenário é bem diferente daquilo que muitos procuram fazer parecer.

    Em termos estratégicos, José Mourinho continua a ler bem o jogo e a mexer com critério, mas na AS Roma ainda se sentiram alguns problemas sem bola e com evidentes lacunas na agressividade da equipa neste momento do jogo. A pressão alta nas equipas do treinador português continua longe de ser perfeita e isso impediu que a Roma tivesse uma postura totalmente dominadora em jogos em que era teoricamente favorita [nomeadamente fora do Olímpico]. Esta característica acaba por estar diretamente ligada com a falta de regularidade da equipa e verificou-se, de forma mais clara, na Serie A [com dois sextos lugares], na qual foram cometidos erros sucessivos na gestão da temporada.

    O investimento na Liga Europa e na Liga Conferência obrigou à rotação do plantel e também causou esta irregularidade, mas parece-me que a postura pouco agressiva sem bola em alguns encontros do campeonato italiano condenou a equipa. Além destes fatores, o acerto nas contratações também não foi sempre perfeito [Shomurodov, Renato Sanches ou Celik não corresponderam, por exemplo] e a própria postura do treinador no banco também não trouxe serenidade à equipa em alguns momentos importantes: as várias expulsões e o afastamento de jogos importantes têm de ser revistas pelo próprio treinador, que não conseguiu controlar emoções em contextos em que a equipa precisava dele.

    Todavia, há fatores positivos importantes e que parecem estar a ser esquecidos no momento da análise ao trabalho de José Mourinho, que renasceu em Roma. Eis alguns:

    A CONQUISTA DA LIGA CONFERÊNCIA E A FINAL DA LIGA EUROPA

    Começando pelo mais lógico, a conquista da Liga Conferência trouxe a aura ao Olímpico e fez renascer a esperança e a empatia dos adeptos com a equipa. A primeira conquista relevante a nível europeu da AS Roma e a confirmação de que José Mourinho permanece implacável em jogos a eliminar. Muito se fez por desvalorizar esta conquista, mas a verdade é que para vencer a competição, a AS Roma teve de bater o Leicester nas meias-finais e o Feyenoord de Kokçu e Aursnes na final. Foram 12 anos sem que uma equipa italiana conseguisse vencer um título europeu e um longo jejum dos giallorossi sem ganhar um troféu.

    A verdade é que nem o mais otimista dos adeptos da AS Roma esperaria, mas a equipa italiana imediatamente no ano seguinte conseguiu atingir nova final europeia. E parece-me que aqui ainda hoje há pouca perceção do feito dos pupilos de José Mourinho nesta prova. Até chegar à final, a AS Roma deixou pelo caminho o Salzburg, a Real Sociedad, o Feyenoord e o atual líder e invencível, Bayer Leverkusen. Quatro adversários dificílimos e que exigiram um esforço-extra e alguma gestão do plantel [que levou a quebra na Serie A]. O caminho da AS Roma não foi totalmente valorizado, ainda que os giallorossi tenham deixado pelo caminho o Salzburg de Matthias Jaissle, que tinha acabado de cair na Champions, a Real Sociedad que fez top4 na La Liga e nesta temporada venceu o grupo com Benfica e Inter, o Feyenoord em ascensão que viria a ganhar com destaque a Liga Neerlandesa seis anos depois e o implacável Bayer Leverkusen, líder e invencível nesta temporada e que não teve capacidade para marcar marcar um golo à AS Roma em 180 minutos.

    A final, todos sabemos, a AS Roma perdeu nos penáltis, ainda que me parece ter razões de queixa por um penálti claro não assinalado na grande área já perto do final do jogo. Ainda assim, são duas campanhas fabulosas [e uma terceira que ficou interrompida] com um registo impressionante de duas épocas e meia sem qualquer eliminação na Europa.

    TRABALHAR COM CRITÉRIO EM MERCADOS LIMITATIVOS

    Trabalhar na AS Roma obrigou a várias condicionantes na abordagem ao mercado e a verdade é que o clube italiano esteve obrigado a contratar de forma criteriosa e sem recorrer a muitos gastos. Na primeira época de José Mourinho foram gastos cerca de 100 milhões de euros, ainda que se devam descontar vários milhões que já estavam já alinhavados da época anterior [Kumbulla, Ibañez e Bryan Reynolds já tinham sido contratados antes da chegada do treinador português e ocupam uma larga fatia deste valor], pelo que o maior investimento foi feito em Tammy Abraham [que foi um verdadeiro reforço] com 41 milhões de euros para colmatar a saída da sua principal referência ofensiva [Edin Dzeko]

    Na época seguinte começaram os cortes e em termos práticos apenas Celik foi contratado a troco de uma compensação financeira [sete milhões de euros]. De resto, foram empréstimos e contratações a custo zero, das quais se destaca Paulo Dybala, que chegou à AS Roma com grande influência de José Mourinho. O avançado argentino foi talismã, mas sempre com muitas limitações e poucos jogos consecutivos pela equipa. Nessa época, a AS Roma perderia ainda o jovem craque Nicolò Zaniolo em janeiro [contra a vontade de José Mourinho], que receberia… Ola Solbakken no mesmo mercado.

    Finalmente, na última temporada, a AS Roma mexeu-se bem no mercado, ainda que tenha perdido Nemanja Matic e vários jovens para não fugir ao fair-play financeiro. A chegada de Renato Sanches não teve o impacto desejado [excesso de problemas físicos], mas houve capacidade para garantir Lukaku e Leandro Paredes, que deram outro protagonismo à formação italiana. No entanto, o reforço do ataque não foi equiparado à defesa, já que a AS Roma acabou por ficar órfã do seu principal equilibrador [Matic] e do seu organizador da linha defensiva [Chris Smalling, que nunca chegou a entrar na temporada e que era, em teoria, o patrão da equipa]. Matic e Smalling foram talvez os jogadores mais importantes na organização da equipa na época transata e a sua ausência foi muito notada em 2023/24.

    Neste mercado de janeiro, convém também destacar a chegada de Dean Huijsen, um jovem central da equipa de juniores da rival Juventus que foi cedido à AS Roma, sem qualquer opção de compra. Um negócio que explica bem as limitações de uma equipa que, no mercado de verão, teve de recorrer, por exemplo, ao recém-despromovido da Premier League, Leeds United, para assegurar dois reforços, por empréstimo.

    Apesar das limitações, José Mourinho conseguiu chamar mais talento para a AS Roma e deixar sair muitos dos jogadores que pouca qualidade traziam aos giallorossi [“see how they play,if they play“]. Apesar das dificuldades, os plantéis procuraram ser equilibrados, mas o processo de construção é longo e aqui não houve a paciência para continuar a reforçar uma equipa que tinha mais do que capacidade para remar em relação à Champions ou ao sucesso na Liga Europa.

    A APOSTA EM JOVENS TALENTOS

    José Mourinho não teve problemas em apostar de forma sustentada em vários jovens talentos que, de uma forma ou de outra, procuraram dar contributo à equipa. Com a pouca profundidade no plantel e limitações financeiras, o lema do clube passou também muito por “formar para vender”, sendo que a AS Roma foi obrigada a vender algumas das suas maiores promessas para angariar fundos para atacar o mercado de transferências.

    Edoardo Bove é, talvez, o caso mais claro do sucesso neste aspeto. O jovem médio foi aposta séria do técnico português e hoje é titular na equipa e um dos maiores talentos da Serie A. Outro caso de sucesso que também merece referência foi a adaptação de Nicola Zalewski ao corredor. O jovem polaco estava sem rumo no plantel e foi adaptado a uma nova função em campo, sendo agora capaz de executar, na perfeição, vários trabalhos na equipa.

    Ao longo deste projeto, foram lançados vários jovens por José Mourinho que deram retorno financeiro ao clube ou que estão ainda num processo evolutivo. Felix Afena-Gyan [vendido 6 milhões], Filippo Missori [vendido 2,5 milhões], Cristian Volpato [vendido 7,5 milhões], Dimitrios Keramitsis, Giacomo Faticanti, Benjamin Tahirovic [vendido 7,5 milhões], Jordan Majchrzak, Luigi Cherubin, João Costa, Francesco D’Alessio e Mattia Mannini.

    A BOA LIGAÇÃO COM JOGADORES E ADEPTOS

    Os números não são tudo e a verdade é que a ligação que José Mourinho construiu com a AS Roma não se explica apenas com estatísticas. Houve um mútuo respeito do princípio ao fim e que engradeceu o clube e o treinador. As duas partes ganharam com esta ligação e o legado deixado foi muito mais do que uma Liga Conferência e outra final europeia. José Mourinho saiu reforçado, com mais um título [são já 26 e sempre nos principais campeonatos europeus] e com um trabalho bem conseguido numa equipa que, também convém recordar, está bem longe de ser uma candidata ao scudetto. Se noutras épocas vimos José Mourinho com maiores problemas de relação com alguns jogadores, nesta aventura na AS Roma parece ter encontrado outro caminho na sua relação com os atletas: a proximidade e o respeito com os jovens da equipa Primavera, a assertividade na ligação com as estrelas da equipa e o equilíbrio do seu próprio balneário. Com os adeptos, o respeito foi mútuo, o entusiasmo cresceu e a média de espectadores no Olímpico subiu para os 20%, com lotações praticamente esgotadas em todos os jogos. Esta proximidade pareceu, no entanto, não se verificar de forma tão apaixonada com os donos do clube, sendo que as palavras do lendário Fabio Capello traduzem bem o sentimento de grande parte dos adeptos italianos face à gestão e pouca proteção do treinador e da própria equipa. Ainda assim, hoje, a AS Roma é um clube melhor e José Mourinho é também um treinador melhor e pronto para outro tipo de desafios.

    No fundo, olhando a tudo o que foi feito, parece-me que o mais sensato teria sido deixar o contrato acabar no final da época e as duas partes separarem-se no verão, caso os objetivos não tivessem sido cumpridos. Principalmente porque, como referido, a AS Roma está a cinco pontos da Champions e agora até iria entrar numa sequência de jogos teoricamente mais acessível [depois de um período mais duro contra adversários diretos].

    Quanto a José Mourinho terá agora de encontrar um novo projeto, sendo certo que nesta altura é importante refletir e ponderar bem sobre o rumo que quer seguir. O treinador português nem sempre decidiu bem ao longo da carreira e deve aproveitar este momento para tomar a melhor decisão. No fundo, a procura por um desafio num clube mais seguro, maduro e que ofereça a estabilidade que não encontrou em Manchester, no Tottenham e em Roma.

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    Mário Cagica Oliveira
    Mário Cagica Oliveirahttp://www.bolanarede.pt
    O Mário é o fundador do Bola na Rede e comentador de Desporto. Já pensou em ser treinador de futebol por causa de José Mourinho, mas, infelizmente, a coisa não avançou e preferiu dedicar-se a outras área dentro do mundo desportivo.