“O Extremo”: Da magia à morte anunciada

“O Extremo”: Uma posição romantizada condenada ao fracasso devido à evolução frenética do futebol moderno?

Driblador nato, com uma técnica muito acima da média, imprevisível na forma como (autenticamente) dançava com o adversário e ainda dotado de uma capacidade quase mágica de inventar jogadas, onde ninguém as conseguia discernir, estas eram algumas das características do “Extremo”.

O seu habitat natural, colado a uma das alas já na zona ofensiva, foi uma das visões mais habituais do final do século XX e primeiros anos do novo milénio do desporto-rei.

Fonte: FPF

Sempre de batuta em haste, à procura de efetuar o passe para o médio ofensivo centro (vulgarmente conhecido como o “10”, curiosamente, também uma função praticamente extinta nos dias de hoje) ou de, com o auxílio do seu pé exterior, conduzir a bola até à linha de fundo, cruzando-a para um elemento da equipa finalizar.

Muitas vezes, sobretudo antes da nova vaga tática de defender com três defesas centrais, podíamos observar o “Extremo” à espera da aceleração do defesa lateral, de modo a produzir o chamado “Overlap”, ou seja, acelerar, criando uma nova linha de passe, efetuando o cruzamento já muito perto da linha de fundo.

“Extremos”, dois tipos de realidades

Afirmaram-se no futebol mundial, dois tipos de “Extremo”. O primeiro era o de pés invertidos, parecido ao atual avançado interior, com a diferença de que o “Extremo” jogava colado à linha, com o objetivo de efetuar o cruzamento para a área. Já a função do avançado interior dos dias de hoje, é mais de transportar a bola para dentro, servir de linha de passe a um eventual médio que suba no campo, finalizar com a bola dominada ou aparecer já dentro da área para a equipa ter mais um homem na área. Este, joga mais em zonas interiores, servindo quase como um “falso extremo”. Ambas estas funções pressupõem que o atleta joga com o pé contrário à ala onde está (por exemplo, se joga na direita, é um virtuoso esquerdino, e vice-versa). Algumas estrelas do futebol nacional e internacional seguiram este caminho, como Ricardo Quaresma, Ronaldinho, Arjen Robben e Ribéry. Todos estes com uma capacidade superior de surpreender, sendo praticamente imparáveis com a bola nos pés.

Curiosamente, todos estes casos, também com uma facilidade incrível de rematar de longe e produzir golos de antologia. Lembrar por exemplo o golo que Quaresma marcou ao SL Benfica, no Estádio do Dragão, em 2006/07, a partir da quina da área, e que colocou Quim, o guardião encarnado, completamente imóvel, a ver a bola descrever um arco e a embater no poste antes de entrar na baliza.

O “Extremo” de pés invertidos conseguia, facilmente, abrir caminho ao “Overlap” do defesa-lateral, já que levando com ele o defesa lateral adversário, proporcionava a abertura de um novo espaço na ala para o seu defesa-lateral progredir até à linha de fundo.

Salvio tornou-se um ídolo do SL Benfica
Fonte: Carlos Silva / Bola na Rede

O segundo tipo de extremo e, porventura, o que dominou mais o futebol do novo milénio (e até vários anos da década de 2010 em alguns clubes) era o que jogava no mesmo lado do seu pé dominante. Na Liga Portugal existem exemplos do passado como Nico Gaitán e Eduardo Salvio no Benfica, os dois, instrumentais para a conquista do tetracampeonato por parte das águias, entre os anos 2013 e 2017, com Jorge Jesus e Rui Vitória.

Este tipo de extremo também foi glorificado por nomes como David Silva (que curiosamente migrou da posição de “10” para “Extremo”, algo comum nas equipas de Guardiola). O modelo também permitia o “Overlap”, no entanto, já com menos espaço. Neste caso, o “Extremo” tentava ele próprio ir à linha de fundo e, se encontrasse oposição, tentaria o passe para o defesa-lateral efetuar o “Overlap” numa posição já mais próxima da área para que tivesse espaço e tempo de ir à linha de fundo, cruzar.

Uma função que renasceu na década de 1990

Foi no final da década de 1990, que a função “Extremo” começou a ganhar mais fulgor. Ryan Giggs foi um dos grandes mestres a merecer grande destaque. Em 1990, este galês, na altura um aparente desconhecido, vinha da academia do rival Manchester City FC e, aparecia com os seus 17 anos, num plantel que nos anos seguintes viria a ser composto por alguns dos maiores talentos do futebol britânico, como David Beckham, Gary Neville, Roy Keane e Paul Scholes, e que, com Alex Ferguson no comando, conseguiria mesmo vencer 13 ligas inglesas, duas Ligas dos Campeões, uma Taça Intercontinental, e muitos outros troféus.

Giggs era o velocista que podia jogar em qualquer uma das alas. Sendo a preferencial, a esquerda, o canhoto, destacava-se pela capacidade de drible estratosférica, técnica muito apurada, qualidade de passe muito acima da média e ainda, muita criatividade.

“Giggsy” como viria, carinhosamente, a ser chamado, foi o verdadeiro extremo na assunção da palavra.

Ainda, outro nome antológico é o de Pavel Nedved, um jogador checo que, à semelhança de Giggs, podia jogar em qualquer posição do ataque. Símbolo maior de uma poderosa geração de jogadores checos, jogava tanto com o pé esquerdo como o direito. Brilhou com a camisola da Lazio e da Juventus FC (na altura, dois dos grandes emblemas do futebol mundial) e, inclusivamente, foi Bola de Ouro em 2003.

Hristo Stoichkov também brilhou nos anos 90. Porventura, o maior nome que o futebol búlgaro alguma vez viu jogar, levou a sua seleção às meias-finais do Mundial de 1994, realizado nos Estados Unidos da América. Destacou-se, e muito, pelo FC Barcelona de Johan Cruyff, este último nome, um dos maiores (senão o maior) de sempre da história do futebol mundial, tanto dentro do campo como fora dele, sendo treinador.

Cruyff era um adepto do conceito de “Futebol Total”, criado por Rinus Michels com os Países Baixos, na década de 1970. Trouxe-o para os “blaugrana”, onde Stoichkov se destacou como sendo uma das maiores pérolas do clube, dotando as alas do gigante catalão de velocidade de explosão e imprevisibilidade, bem como muitos golos.

Ainda antes dos anos 1990, vários nomes já se tinham destacado como extremos no panorama internacional. Individualidades como Paco Gento, nome ilustre da história do Real Madrid FC que, ao lado de Ferenc Puskás e Alfredo Di Stéfano, criou uma das melhores linhas de ataque de sempre, numa super equipa que foi campeã europeia por seis vezes.

Também é importante destacar uma estrela das décadas de 1960 e 70. Roberto Rivelino, porventura o inventor do “elástico”, finta que celebrizou lendas do futebol como Ronaldinho ou Cristiano Ronaldo e que, no SC Corinthians fez parte de uma das melhores eras de sempre do clube brasileiro. Rivelino foi ainda um dos jogadores mais importantes do Brasil que venceu o Campeonato do Mundo de 1970, aquele que veio distinguir um Brasil, três vezes campeão em quatro Mundiais possíveis (1958, 1962 e 1970).

O que mudou na posição de “Extremo” durante a última década

Uma das explicações para a mudança do paradigma poderá ser a acelerada evolução tática do futebol, imprimida por treinadores como Cruyff (AFC Ajax e FC Barcelona), Pep Guardiola (Barcelona e Manchester City) e Jurgen Klopp (Borussia Dortmund FC e Liverpool FC), aliada à evolução da Ciência Desportiva que, teve como principal precursor o soviético Lobanovskiy, na década de 1980 e 1990. A constante e desenfreada busca pela leitura de dados estatísticos, o escrutínio máximo que começou a ser realizado a cada jogador, a cada segundo, em cada metro do terreno de jogo, também pode explicar a mudança do paradigma de jogo.

Em 2023, o futebol espetáculo é um fenómeno de brilhantismo colectivo, e em poucos casos, individual. Atributos como a técnica, drible, remate, passe, ou qualidade na execução de bolas paradas foram relegados para segundo plano, em que o todo é mais importante que a parte. No fundo, todos estes atributos continuam a ser importantes, desde que o jogador não arrisque perder a bola ou que remate para muito longe. Mas o que é arriscar, se não, criar? A criatividade foi um dos atributos que mais desceu com a evolução tática.

Fonte: Carlos Silva/Bola na Rede

Por um lado, a busca pela certeza e a constante procura de eliminar o risco, são o sinal da melhoria vertiginosa do futebol mundial. Por outro, perde-se a perigosidade do jogo. A capacidade desenfreada de pegar na bola na zona defensiva, fintar meia equipa e fazer, porventura, um dos melhores golos de sempre, como Diego Maradona o fez frente à Inglaterra no Mundial 1986, no México.

Tal como os médios criativos, os extremos também sofreram com as mudanças. Raras são as vezes, nos dias que correm, que um jogador numa ala ofensiva pretende ganhar um duelo “um para um” a um jogador adversário. A chamada expressão “partir para cima do outro jogador” foi como que, a pouco e pouco, sendo abandonada. No panorama atual, a jogada mais prática será sempre a de conservar a posse de bola, e passá-la, através de um passe curto (ou longo, se houver certeza) para um companheiro com mais espaço para poder progredir com a mesma.

A escola de Cruyff e Guardiola

Esta foi uma das principais influências imprimidas por Cruyff e Guardiola (Cruyff é ainda hoje o seu ídolo). Esta constante procura pela pressão alta e esmagadora (e de forma colectiva, sem dar espaços) aliada a uma procura desenfreada de asfixiar o adversário com uma posse de bola exaustiva (muitas vezes superior a 70%), sempre através da triangulação de passes exagerada, de forma certa, curta, dotando todos os jogadores de qualidade técnica, para que possam mudar frequentemente de posição com outros jogadores da equipa. Até os guarda-redes tiveram de aprender a jogar melhor com os pés, para compensar as linhas defensivas subidas. Nomes como Marc-André Ter Stegen e Manuel Neuer apareceram e deram o mote para as gerações seguintes de guardiões.

Portugal Cristiano Ronaldo
Fonte: Paulo Ladeira / Bola na Rede

Os extremos deixaram de ser extremos, passaram a ser avançados interiores, “falsos noves”, ou em muitos casos, passaram a ser alas, defendendo e atacando a todo o comprimento (no caso das defesas com três centrais). A refinação do jogador deixou de ser importante. O colectivo e o jogo assente na certeza tornou-se fundamental, bem como o abandonar do risco. Mas não será a qualidade individual uma das chaves para um melhor futebol colectivo?

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