A qualificação para a fase final do Mundial não é apenas mais um carimbo no passaporte competitivo de Portugal. Representa, com grande probabilidade, o prólogo do adeus do maior futebolista que este país, e que o mundo, alguma vez produziu e que o mundo viu crescer num patamar quase inatingível. Cristiano Ronaldo não foi apenas um jogador de futebol. Foi a força quase sísmica que deslocou o eixo do futebol português e que o empurrou definitivamente para o centro do mapa global.
Portugal teve génios. Eusébio incendiou plateias inteiras, Futre desafiou gravidades, Chalana espalhou magia em cada toque e Figo ultrapassou fronteiras que pareciam intransponíveis. No entanto, nenhum deles reescreveu o ADN competitivo nacional como Ronaldo. Com Cristiano Ronaldo, Portugal deixou de ser uma seleção que poderia surpreender para se tornar numa seleção que tinha de vencer. A equipa passou de outsider a referência. Nada disto surgiu por acaso; durante quase duas décadas houve alguém a puxar a nossa ambição sempre para cima, sempre contra o impossível.


É por isso que o debate atual que atravessa cafés, estádios e redes sociais sobre se Ronaldo deve ou não manter a titularidade revela muito mais sobre nós portugueses do que sobre ele. No fundo, não estamos a discutir apenas rendimento, idade ou frescura física. Estamos a questionar a nossa relação com a memória, com a exigência e com a gratidão.
A minha resposta é clara. Ronaldo joga. E joga porque o mérito não é um título honorífico. É um legado construído com suor, sacrifício e resultados que mudaram a história da seleção. Joga porque continua a ser uma presença que altera mentalidades, que intimida adversários e que eleva colegas. Joga porque, mesmo quando já não é o cometa imparável de outrora, permanece um farol competitivo para quem veste as cores nacionais.
Recordo frequentemente o que ocorreu no Mundial de 2022. A Argentina percebeu algo essencial. Quando se possui um ícone que redefine fronteiras, a equipa deve carregá-lo e protegê-lo. Messi já não era o prodígio de outros tempos, mas os seus companheiros entenderam que ele continuava a ser o centro gravitacional da equipa. Foi pragmatismo e não nostalgia. Certas figuras são catalisadores e não meros números inscritos numa ficha técnica.


Desejo que Portugal demonstre a mesma maturidade. Que esta geração, que muitos consideram a mais talentosa de sempre, seja capaz de retribuir ao capitão uma parte mínima daquilo que ele lhes ofereceu. Que perceba que o mérito individual destes novos talentos não surgiu no vazio, mas numa cultura competitiva que Ronaldo ajudou a moldar como um arquiteto obsessivo que constrói um edifício sem permitir falhas na base.
É fácil tratar Cristiano como monumento histórico. É mais difícil reconhecê-lo como peça ainda útil no presente. Talvez por isso a discussão seja tão intensa. Ronaldo nunca foi consensual. Foi disruptivo, exigente, imperfeito no excesso, humano no brilho. Contudo, continua a ser a representação mais evidente da Portugal do século vinte e um: ambiciosa, inconformada e feroz.
Quando o adeus definitivo chegar ficará uma seleção mais completa e mais sólida. Mas não nos iludamos. Muito do que ela é deve-se a ele. E enquanto continuar a vestir a camisola das quinas, mesmo que por mais um sopro de tempo, Cristiano Ronaldo não é simplesmente um dos vinte e seis. É o nosso capitão.

