Que difícil é ser Lage

    Bruno Lage fez com o Glorioso brasileiro o que já tinha feito com o Glorioso português: descaracterizá-lo, chegando quase instantaneamente a ponto de ruptura, apagando o que de bom tinha feito e acabando escorraçado, ingloriamente. Num ápice, como quem carrega num interruptor.

    Ao fim de 15 jogos, acabou a aventura brasileira do metódico navegante Lage, que vai sendo arrastado para cenários de absoluto desastre ano após ano, terminando sempre da mesma forma, quase como personagem de banda desenhada. Sem nunca chegar a ser cómico, começa a ser reconhecida em Bruno Lage a atracção pelo infortúnio própria dos mais caricatos protagonistas; O que nos faz perguntar: optará agora por procurar ventos mais favoráveis ao seu estilo de liderança ou entrará num tão urgente ano sabático para reformular ideias e comportamentos? O que leva um treinador capaz de cumprir 32 vitórias nos primeiros 34 jogos na Liga Portuguesa a três despedimentos consecutivos sempre da mesma forma, rebolando escada abaixo por espirais negativas das quais nunca se consegue levantar?

    Depois de duas vitórias nos últimos 13 jogos de Benfica e dos três pontos em apenas duas de… 16 partidas de Wolverhampton, fase que durou de Abril ao fatídico Outubro de 2022, surgem agora as míseras quatro vitórias em 15 de Fogão – só a concorrência desengonçada de Abel Ferreira permitiu que a vantagem se mantesse confortável, ainda que Lage tenha entra em  Julho com 13 pontos no topo e deixe agora a equipa com… sete, acima do surpreendente Bragantino de Caixinha.

    Substituir Luís Castro e repetir os seus feitos de invencibilidade em 2023 não seria tarefa fácil para o mais talentoso dos treinadores, mas Lage ainda tentou não abanar muito o barco e manter-se à tona: conseguindo-o de forma aceitável. Não perde nenhum dos primeiros dez jogos, ainda que empate mais (6) que triunfe. Aceitável, mas nunca em grande estilo, diferente do que fizera em Portugal ou Inglaterra.

    Foi a 27 de Agosto que Lage recolheu três pontos pela última vez. E para o fazer teve a ajuda do companheiro Renato Paiva, que não conseguiu orientar o seu Bahia de forma a não levar dose exemplar (3-0) – uma semana depois seria empatado pela ginga Vascaína (1-1) e era esse o seu ponto de ruptura com os do Grupo Textor. Lage, no mesmo dia, a 3 de Setembro, perdia com o Flamengo, naquele que foi o começo do fim.

    Mas antes, recuemos até meio dessa semana, quando o Botafogo foi até Florencio Varela – nos arredores de Bueno Aires – disputar as Quartas da Sulamericana com o Defensa y Justicia. Era a segunda mão. Do Nilton Santos, Lage trouxe um insonso empate a uma bola. Surpreendente, dada a diferença de qualidade individual entre os plantéis; só que Bruno deu prioridade ao campeonato e rodou a equipa. Quando foi tentar emendar a borrada com os titulares, deu-se Lei de Murphy – tudo o que podia correr mal, correu, os argentinos cheios de brio conseguiram o 2-1 e lá foram eles para as Meias-finais. Fase continental que o Botafogo não atinge… há 30 anos.

    Deu mal. Mas havia coisas mais importantes em que pensar, e toda a concentração era necessária para entrar no ciclo infernal de três clássicos – receber Flamengo, ir a Belo Horizonte tentar aguentar o Atlético de Hulk e ir bater à porta da Neo Quimica Arena, em São Paulo, a ver se Wanderley Luxemburgo e o seu Corinthians estavam bem dispostos. Qualquer um sentiria dificuldades numa fase assim. Lage optou, como já tinha optado em Portugal, quando não segurou o 4-2 feito por João Félix e deixou Adi Hütter ir para as Meias da Liga Europa sem grande preocupação, que a prioridade era a Reconquista.  

    Lá chegava o dia. A 3 de Setembro, o melhor plantel do Brasil – o do Flamengo – visitava o Nilton Santos, o covil impenetrável do Botafogo, que era 100% eficaz em casa. Tinha sido tudo passado a ferro. Fatidicamente, não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe: os adeptos alvinegros desesperaram quando tomaram conta da escalação do Professor Lage. João Pedro Galvão remetia o confiável Di Plácido para o banco? E era Segovia, o menino paraguaio, quem surgia na frente dele, na ponta direita? Ficou tudo a olhar para o vazio, atordoados com a iminência do desastre. Claro que Ayrton Lucas, Gerson e Bruno Henrique, tudo gente de qualidade e com cadastro europeu, se aproveitaram da situação. O Flamengo canalizou o jogo por eles, que deslizavam tranquilamente por essa ala esquerda despovoada, e os dois golos surgiram por aí. 1-2, tombava o Botafogo e o seu recorde de invencibilidade caseira. Depois de acumular erros técnicos, Lage assinaria o grande vacilo tático que lhe custaria o cargo.

    Uma semana depois, justificava-se. « Nesta vida a gente não tem tempo para arrependimento. Eu sei o que fiz, sei o sentimento que gerou à minha volta. O que é mais importante é as pessoas entenderem que o treinador está aqui. Coloquei o cargo à disposição, mas nunca quis sair. Quis que as pessoas estivessem à vontade para entender se essa ansiedade extra que se forma em função de alguma mudança para melhoria da equipe está causando ansiedade maior aos jogadores.»

    Não saíria vivo da terrível fase. Já deitado em cama de desconfiança pela atitude tão pouco ao estilo brasileiro, perdia por uma bola os dois jogos seguintes. A torcida já não o perdoava pela postura incoerente nem pelas opções duvidosas, como a tentativa de tornar Tchê Tchê um lateral direito. A água jorrou no porão a 3 de Outubro, quando Lage optou por Diego Costa em vez de Tiquinho Soares, o craque da equipa e melhor marcador do Brasileirão – e que, relatava a comunicação social, tinha treinado toda a semana com a equipa titular. Contra Armando Evangelista e o seu Goiás, não se foi além do 1-1 – e o golo foi inevitavelmente marcado por Tiquinho, entrado na segunda parte. Estava dado o mote para o motim.

    A Globo era contundente no rescaldo – dez jogadores do Botafogo tinham pedido expressamente a John Textor para trocar Bruno Lage por Lúcio Flávio, o interino que já assumira a vaga na despedida de Luís Castro.  E se alguém duvidava da veracidade da coisa, Marçal vem a público quase confirmar uns dias depois.

    «Que bom termos conseguido estar soltos em campo. Não mudou nada, essa é que é a verdade. Voltámos a fazer o que estávamos a fazer. A nossa equipa já estava bem direcionada. O Lage chegou, tentou fazer algumas mudanças que ele percebia que eram importantes. O grupo tentou responder, mas nós já tínhamos um ADN. Infelizmente não correu bem, não conseguimos pontuar nos últimos jogos. Felizmente, teve de haver essa mudança. O Lúcio Flávio já nos conhecia, o Carli já nos conhece. Só se voltou a fazer o arroz com feijão e o simples dá certo»

    Como os rumores que assassinaram o seu trabalho em Lisboa, confirmam-se agora as ideias duma certa fragilidade no controlo do balneário. Lage, que apaixonou o público pelo seu perfil paternal, de sensibilidade rara num meio com tanta malta rija, viu esse seu lado servir como canalizador duma série de ofensas ao seu carácter. Criou-se a ideia de que a sua sensatez, sempre tão refrescante, era agora ingenuidade; que o seu vocabulário e maneirismos, antes sinais de ser boa gente, simpático e equilibrado, eram agora provas de que não tinha estofo para domar os egos do alto nível.

    A coragem, que foi preponderante em grandes jogos daquele Benfica 18/19 – como no Dragão – serviu-lhe agora para aceitar um presente envenenado. Lage, inteligente como sempre foi, saberia perfeitamente do quão mais tinha a perder do que a ganhar neste desafio de acabar o trabalho de Luís Castro.

    Caso corresse bem, seria sempre o treinador do Al Nassr o responsável – mesmo que Lage conseguisse introduzir o seu estilo para tentar chamar a si a responsabilidade, algo que falhou estrondosamente – ; caso corresse mal, colocaria em risco a sua carreira enquanto treinador duma Liga de topo. Falhando tão majestosamente como falhou, o que se segue para o treinador português que um dia resgatou um campeonato português em 19 jogos, marcando para isso 72 golos (3,8 por jogo, uma média que só o Benfica de Eusébio e os Violinos de Peyroteo conseguiram)? Que com dois meses de experiência, foi a Alvalade fazer 2-4 e ao Dragão saltar para o primeiro lugar? Que no longíquo 2019, seria o primeiro a tentar resolver o problema Vlachodimos, manobra que Jesus repetiria e Schmidt conseguiria finalmente em 2023? Que chamou para a ribalta Félix, Nuno Tavares, Jota, Florentino ou Ferro? Ou que a certa altura andou intrometido nas lutas europeias da Premier League, colocando os Wolves no top8 durante a maior parte de 2021-22?

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    Pedro Cantoneiro
    Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
    Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, o Benfica como pano de fundo e a opinião de que o futebol é a arte suprema.