«Somos daqueles países em que o basquetebol é uma modalidade super-super secundária» – Entrevista BnR com Nuno Manarte (Parte I)

    – Os altos e baixos do mítico tri-campeonato –

    BnR: Assim chegamos à temporada de 2005/2006: o primeiro campeonato do mítico tri-campeonato (e também o primeiro desde 2000). Recordas-te dessa pré-época? Recordas-te das previsões feitas por ti e pelos técnicos que vos rodeavam?

    NM: Lembro-me do final da época anterior, na qual tínhamos ido à final com o Queluz, onde perdemos 3-0. Lembro-me da sensação da impotência, pois tínhamos chegado à final e “morremos na praia”. Deu um gosto amargo, porque entras a época seguinte a pensar nisso. “Foste à final mas és o primeiro dos últimos”. Lembro-me que, nesse ano, o Henrique Vieira fez um recrutamento de quase todos os jogadores que tinham jogado na Liga no ano anterior. Jogadores com qualidade e que se identificavam. A equipa estava bem e com um núcleo de jogadores muito fortes: o Heshimu Evans, o Jared Stephenson, entre outros. A equipa tinha argumentos nesse sentido. O único jogador no qual havia desconhecimento total era o Ben Reed. Uma história engraçada: recordo-me de estar eu e o Nuno Perdigão na padaria em frente ao pavilhão onde tomávamos café e de ver um rapaz de estatura média, um pouco forte e de mochila ao ombro a ir para o pavilhão. Na altura, sem Internet, havia um desconhecimento total das coisas e nós não sabíamos quem era e comentamos “Olha se calhar é este americano que vem e nos vai ajudar a ser campeões”. Quando chegamos ao pavilhão e o vimos, benzemo-nos e pensámos “Estamos feitos”. Mas a verdade é que se veio a revelar fundamental para a conquista do tri-campeonato. Havia realmente expectativas altas face à época anterior, porque, devido ao talento individual, havia bons argumentos. Mas existia o CAB Madeira, que tinha boa equipa nessa ano, e o Queluz, que tinha sido campeão no ano anterior e era muito forte. Íamos lutar para ganhar tudo, como é natural, mas também tínhamos os pés bem assentes no chão.

    BnR: Claro.

    NM: Lembro-me que esse foi um ano atípico. O Porto estava a um bom nível, o Benfica estava a um bom nível, o Queluz estava a um bom nível e nós ficámos em segundo lugar na fase regular. Mas o que foi curioso foi que o Ginásio Figueirense ficou em 8º e chegou à final, a cinco jogos, quer nos quartos de final, quer na meia final, e nós fomos a 5 jogos com o CAB. Tinham um jogo bastante agressivo, com pressões a campo inteiro e realmente a série mais difícil foi os quartos de final com o CAB. Ganhámos 3-2 com um tiro de Ben Reed no último segundo. Era uma equipa que nos provocava muito desconforto, também pela pressão. Depois íamos acompanhando as outras séries e ganhávamos as nossas e tal. Esses quartos de final prepararam-nos muitíssimo para a meia-final, e foi fácil ganhar ao Queluz naquele ano, pois vínhamos com um ritmo brutal – o CAB obrigava-nos a jogar a esse ritmo. Ah, e claro, depois íamos acompanhado o Ginásio a ganhar ao Benfica, 3-2, a ganhar ao Porto, 3-2, sempre na negra e fora! Não é? E tudo com uma equipa muito limitada, tinham cinco jogadores, às vezes lá jogavam com seis. Mas pronto, depois acabamos por ganhar 3-0, também de uma forma mais tranquila. Era curioso, porque nós, às vezes, sentávamo-nos no café a ver os quintos jogos e dizíamos “Olha já foi este, melhor para nós”, quase como não respeitando o Ginásio, não é? E dizíamos “O Ginásio arrumou o Porto, porreiro, o Ginásio arrumou o Benfica”.Depois apanhamos o Ginásio na final e pensávamos “Eles estão a abrir o caminho para ganharmos”. Nessa fase, as coisas foram mais simples, pois eles têm mérito de ganhar 3-2 mais 3-2. Mas como eles jogam só com cinco jogadores, as coisas em algum momento vão cair para o nosso lado. Penso que a questão física foi muito determinante. Eles tinham feito um trabalho brutal, mas nós também já vínhamos avisados – eles tinha, ganho duas séries, mas com uma equipa bastante inferior (não perdendo o mérito”). Outra curiosa desse ano é que, apesar da equipa ter aspirações, não fomos a final-8 da Taça, perdemos com o CAB. Uma equipa como a Ovarense nesse ano ficar de fora da Taça causou muito burburinho, e, realmente, não conseguimos entrar em nenhuma competição.

    BnR: O que aconteceu depois?

    NM: Recordo-me de virmos desse jogo da Madeira, em que ficamos de fora da Taça de Portugal, e de haver um jogador que eu também admiro muito, o Ian Stanback. Era um líder silencioso, mas um líder a valer. Ele disse-me, já que eu era capitão na altura, “Noca, tens de marcar uma reunião. Temos de falar só nós, os jogadores”. No treino seguinte, marquei a reunião apenas com jogadores, e falei um pouco no início. Depois entrou o Stanback, que era um líder por exemplo. Não falava muito, mas quando o fazia, toda a gente baixava a cabeça para ouvir. Quando ele falava, falava bem. Lembro-me de que ele trazia um papel e começou a dizer tudo aquilo que ele achava “pim pim isto…. tu aquilo… tu tens de fazer assim e fazes assim… tens de fazer mais, tens de fazer menos…”. Ninguém abriu a boca, e a partir daí… não sei, até hoje não podemos tirar conclusões à repercussão do impacto que isso teve. A verdade é que eu acho que havia um problema de egos nessa altura. Essa conversa foi acesa, foram apontadas algumas coisas aos jogadores olhos nos olhos – coisas que tinham de melhorar -, e ele foi claro e direto com toda a gente, não esteve a “cuspir para o ar”, como se costuma dizer. Ele virou-se mesmo para o jogadores e disse “Tu tens de deixar de fazer isto e fazer assim… tu fazes assim e tens de fazer assim..” e foi muito personalizada a intervenção dele. Como ele pouco falava, nessa vez falou duro. Havia jogadores que vinham de outras equipas e tiveram de desempenhar outro tipo de papel. A equipa, nesse ano, tinha um leque muito forte de jogadores bons, mas que tinham de aprender a jogar juntos. Lembro-me de que isso me marcou, pois achei que a intervenção do Ian foi fantástica. A equipa acabou por nunca se partir, não entrar em conflitos e conseguiu ganhar com alguma facilidade, com outros fatores a mistura. E acabamos por ser campeões.

    Manarte sagrou-se Tri-Campeão Nacional pela Ovarense (2006, 2007 e 2008)
    Fonte: Ovarense

    BnR: Seguiram-se vários anos no “topo do país” com um tri-campeonato (2006, 2007, 2008), algumas taças e super-taças pelos meio e ainda, em 2009, mais uma taça de Portugal. Como foi gerido todo esse sucesso, tanto pela Ovarense, como por outros jogadores que também cá ficaram?

    NM: Após esse primeiro ano, já tinha existido um grande investimento e os jogadores que tínhamos já vinham com bastante qualidade. No tri-campeonato, a equipa teve três treinadores diferentes. No primeiro ano, foi o Henrique Vieira, que foi embora; no segundo, foi o Luis Magalhães, que treinou até dezembro do ano a seguir; e depois, foi o Povea. A equipa teve três treinadores em três campeonatos diferentes, algo curioso, mas manteve alguma base daquilo que eram os jogadores. O Ben Reed manteve-se os três anos, o Miranda chegou no segundo e manteve-se para o terceiro, o Cordell Henry fez os dois últimos anos, o Perdigão também fez esses dois anos. Mas havia uma certa consistência: entravam uns, saíam outros. Havia uma necessidade constante do clube ir ajustando, pois ganhas uma vez e depois queres ganhar outra vez. Para isso, podes sempre ajustar a equipa. Também há sempre jogadores que saem, principalmente os estrangeiros. Do primeiro para o segundo ano, houve algumas saídas. Mas do segundo para o terceiro, já houve alguma consistência na continuidade. A equipa tinha atingido um patamar, quer em termos de qualidade, quer em termos de orçamento, que era brutal. No tri-campeonato até se dizia que a equipa era a Dream Team, porque realmente havia muita qualidade. Nunca tinha estado numa equipa com tanta qualidade como no ano do Bi-campeonato, no ano do Magalhães. Tínhamos o melhor poste português da altura, o Elvis, e tínhamos o Graham Brown, o melhor poste estrangeiro. Havia três bases capazes de jogar, mas, de início, havia uma competitividade brutal. A nível de treino, muitas vezes era o Mota (Rui Mota), que tinha vindo do Porto, o 11º jogador e o Neves (Fernando Neves) o 12º. Havia muita qualidade na equipa. Depois ainda havia o espírito do Magalhães de incutir a competitividade em nós e na equipa. Havia treinos duríssimos. Ninguém gostava de perder, nem que fosse só aos lançamentos – havia muito esse espírito. A partir daí, acho que foi tudo muito natural. Foi um projeto de dois, três ou quatro anos, no qual houve alguma consistência. A equipa quis-se manter no topo do basquetebol e acabou por fazer de tudo para ficar. Teve um recrutamento bastante bom. Lembro-me de que o Shawn Jackson também era um líder incrível, da entrada do Miguel Miranda, outro jogador importantíssimo para os campeonatos, e apontávamos ainda para a revalidação do titulo. Os jogadores sabiam que, se fossem para a Ovarense nesses anos, corriam o sério risco de serem campeões outra vez, e era essa a visão.

    BnR: Uma visão vencedora com muito sucesso à mistura.

    NM: Hoje, toda a gente se lembra dos campeonatos, mas ninguém se lembra de que, no ano do Tri, perdemos a meia final da Taça de Portugal contra uma equipa da Proliga (que, na altura, era o Vitória de Guimarães) por um e nos últimos segundos. Foi uma catástrofe! Depois eles até ganharam uma Taça de Portugal. Penso que foi a primeira e única vez que uma equipa da Proliga ganhou a taça. Ganharam ao Porto na final também por um. Eles tinham boa equipa, mas não deixava de ser uma equipa da Proliga com apenas dois estrangeiros. Aí tudo podia ter abanado, mas a malta tinha já um ADN muito especifico. Lembro de uma coisa curiosa. Numa reunião de jogadores após termos perdido a final, o Ike Nwankwo levantou-se e disse “Alguém se lembra de quem ganhou a Taça em 1990 e tal?”. Ficámos a olhar uns para os outros… “Mas lembram-se de quem foi campeão, não é?”. Realmente é muito mais importante ser campeão do que ganhar uma Taça, e já tínhamos isso como um lema: “Ninguém se vai lembrar de quem ganhou a Taça ou a taça da liga, lembram-se é do campeão”, que é a taça mais importante. Nesses anos todos, sempre tivemos dificuldades em ganhar tudo, o que penso que foi algo que nunca aconteceu na historia do clube. Uma historia curiosa dessa Taça de Portugal de 2009 é que foi a primeira taça que ganhei, e é única que tenho. Em 11 finais da Taça de Portugal, ganhei apenas uma. Na altura também tínhamos a desculpa de o campeonato ser o foco principal, mas penso que, pelo menos no que diz respeito a taças de Portugal, poderíamos ter algo mais. Em 11, era de esperar umas 3 ou 4 pelo menos, não é? Imagina em 20 anos ir a 11 finais e não conseguir ganhar umas 4 ou 5 (seria o normal ter uma percentagem algo superior). E pronto, o foco era mais nos campeonatos. Tanto no Bi como no Tri poderíamo-nos enganar num ou outro jogo, mas seria difícil enganarmo-nos em três jogos.

    A única taça de Portugal que ganhou, e apenas a 3ª na história do clube, foi na época 2008/20099
    Fonte: Ovarense

    BnR: Que altos e baixos te recordas de sentir durante todo esse período?

    NM: Falei-te num deles, não é? Tu ganhas uma vez com uma boa equipa, a equipa depois é melhorada, as expectativas aumentam e para os outros tornamo-nos num alvo a abater. Agora falamos com um sorriso nos lábios quando nos lembramos desse Bi-campeonato e do Tri-campeonato, mas foram anos que não foram fáceis. Cada jogo que tu perdias era como se tivesses perdido dez seguidos. Existia uma onda de otimismo na equipa, com expectativas super altas, que eu penso que era normal de as ter. A equipa apelidada de “Dream Team” não podia perder, e toda a gente jogava contra nós o melhor basquete que poderia jogar. Por isso, no caminho, tivemos muitos contra-tempos. Não fomos à final-8 da taça com o CAB; no ano a seguir – já não me recordo, talvez uns anos depois -, perdemos a meia-final da Taça de Portugal com o Guimarães, que foi… quer dizer, nem te imaginas, não é? Nós fomos para Elvas. Nesse dia, estávamos a chegar lá para o jogo da meia final. Tínhamos ganho os quartos e íamos jogar a meia final com o Guimarães. Lembro-me de estarmos a ir para o pavilhão em Elvas, fronteira com Espanha, e de estarem a chegar uns casais de Ovar, que são uns senhores que sempre acompanhavam o Basquete, e dizerem “Ah, viemos hoje e já temos marcado o hotel para amanhã e tal…”. Eram uns seis ou sete. Uns senhores super simpáticos, acompanhavam sempre a equipa. No final do jogo, quando perdemos, as primeiras pessoas que encaramos primeiro foram elas.

    BnR: Como reagiram?

    NM: Elas batiam-nos nas costas e diziam “Ah… não sei quê… paciência e tal… nós vamos cá ficar na mesma, já temos o hotel marcado e vamos ficar”. Isto para te dizer que foi uma viagem longuíssima, de quase não falar, de te sentires um pouco… não digo envergonhado, porque não tinhas sido mau profissional, nem nada que se pareça. Mas questionavas muitas coisas, não é? Questionavas a capacidade da equipa, pois tinha sido um ponto muito baixo. Não é para desrespeitar o Guimarães, que, na altura, tinha uma equipa bastante boa para a Proliga, mas, realmente, nós devíamos ter passado por cima deles. Eles também tiveram mérito, como é óbvio, mas isto gerou uma onda de contestação muito grande que só parou quando ganhamos o Tri-campeonato. Essa equipa tinha pouca margem de erro, o que é duro. Porque é fácil chegar lá acima, difícil é manteres-te lá. E quando vens de cima para baixo, depois tudo te empurra ainda mais para baixo. Ninguém te ajuda a ir para cima outra vez, porque depois gera-se a onda contrária, a onda negativa que põe as equipas muito para baixo. E a gestão dessas emoções e dessas expectativas não são fáceis. Os treinadores tiveram muito mérito, pois conseguiram que a equipa tivesse um trilho muito claro e que tivesse os focos bem apontados em relação àquilo que queríamos: mais do que ganhar uma taça, era ganhar o campeonato.

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    Vicente Tigre Avelar
    Vicente Tigre Avelarhttp://www.bolanarede.pt
    Pratica desporto desde os cinco anos, idade em que começou a jogar Basquetebol. Jogou ao serviço da Associação Desportiva Ovarense durante 12 anos (nos quais três foi campeão distrital de Aveiro). É licenciado em Gestão (ensino em Inglês) pelo ISEG e estudante no Mestrado de Finance pela mesma instituição. Instituição pela qual ainda pratica Basquetebol, tendo conseguido chegar ao Top-8 Nacional em duas épocas consecutivas. É uma pessoa com uma paixão pela modalidade e com uma forte opinião sobre a mesma, sempre aberto a diferentes visões e novas experiências.                                                                                                                                                 O Vicente não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.