«Somos daqueles países em que o basquetebol é uma modalidade super-super secundária» – Entrevista BnR com Nuno Manarte (Parte I)

    – A experiência nos campeonatos europeus, a cultura do basquetebol na Europa e a despedida –

    BnR: Agora gostava de abordar um ponto em que as equipas portuguesas têm pouco sucesso, que é a nível de campeonatos europeus. Tiveste a oportunidade de jogar alguns, pré-eliminatórias e fases de grupo. O que mais recordas desses tempos e o quão diferente era o nível de basquetebol?

    NM: Bem, têm várias fases. Lembro-me do ano que iniciei, 1992/1993, em que a equipa já tinha essa oportunidade de jogar ligas Europeias. Uma primeira fase com apuramentos; numa fase mais tardia, já entravamos em fases de grupos. Mas, realmente, tirando uma ou outra excepção, existia uma diferença muito grande no que toca à qualidade do basquete. Já na altura havia uma diferença em relação aos orçamentos das equipas, e estamos a apontar para cima. Nós ganhávamos contra equipas que jogavam um basquetebol inferior, como a Áustria, o Luxemburgo, por aí. Mas sempre que apanhávamos uma equipa de Espanha, de Itália, Alemanha ou França, que, ainda hoje, são os melhores campeonatos da Europa, nós tínhamos imensas, imensas dificuldades.

    BnR: Eram muito superiores?

    NM: Notava-se, realmente, que já havia uma qualidade bastante superior, um ritmo bastante superior. Já eram profissionais há muitos mais anos do que nós. Havia um conhecimento muito mais claro em relação ao que era jogar basquetebol na Europa. Existiam jogadores com muitas experiências de Ligas europeias, e nós depois éramos levados. Porque o clube até podia estar a jogar as ligas Europeias há cinco ou seis anos, mas os jogadores tinham as primeiras experiências. Lembro-me disso, das coisas boas de viajar. Desde muito cedo viajei bastante, conheci outras culturas, e tudo isso teve impacto, tanto a nível cultural como desportivo, em termos da outra realidade europeia do basquete. Lembro-me de me sentir um profissional nessa altura, porque nós jogávamos sábado, domingo descansávamos e segunda viajávamos. Éramos profissionais ao mais alto nível e era espetacular. Era treinar e jogar, treinar e jogar… e gostaria que agora fosse assim, que ainda houvesse essa possibilidade de encarar o basquete dessa maneira. Era experiência que ias ganhando. Numa fase inicial, era sempre muito difícil. Havia muitas dificuldades, duvidavas das tuas capacidades… penso que eu e todos. Mas depois também sentias que isso tinha um impacto em ti diferente, fazia-te crescer enquanto jogador, fazia crescer a equipa. Era aquela velha máxima de, quando se joga Europa e campeonato, o campeonato era prejudicado, pois tínhamos piores performances – era verdade. Mas depois, passado duas ou três semanas de teres sido eliminado, a equipa entrava num ritmo completamente diferente. Trazias toda essa bagagem Europeia que te fazia crescer ou crescer, não havia outra hipótese. Mas o que mais me marcou foi jogar a Euroliga.

    BnR: Porquê?

    NM: A Ovarense na Euroliga não ganhou nenhum jogo. Estivemos encostados em três ou quatro, mas não há vitórias morais. O que mais me marcou foi haver um ano em que jogámos cá com o Olympiacos, perdemos por 49 e tínhamos equipa de Euroliga. Uma equipa interessante, preparada para jogar, a um nível inferior, mas preparada. E o Olympiacos veio cá jogar e, desde o minuto 1′ até ao minuto 39′ ou 40′, jogaram como se estivessem a perder. E a coisa que mais me marcou na altura foi pensar “Porra, caramba, vocês estão a ganhar por 40. Relaxem um pouco”. Hoje penso nisso e percebo que eles é que tinham mentalidade de campeões. Respeitavam o jogo e respeitavam a equipa. Independentemente de estarem a ganhar por dez, ou perder por dez, a mentalidade era sempre a mesma. Passaram por cima de nós por completo, desde o minuto 1′ até ao minuto 40′. Isso marcou-me, porque eu estava a jogar no minuto 40′. Eu estava em campo e parecia que era a minha equipa que estava a ganhar por 40. Eles estavam a pressionar campo inteiro, a fazer tudo, a roubar bolas e tal. Ganhar por 40 não chegava para eles, eles queriam ganhar por o maior número possível de pontos. E eu pensei “Isto é que é jogar ao mais alto nível, isto é que é mentalidade de campeão!”. Foi o que mais me impressionou na altura.

    BnR: Recordas-te de mais alguma coisa dessa altura?

    NM: Toda envolvência de um jogo do Real Madrid, ou de um Olympiacos. Quando vais lá jogar, andas na rua, e lembro-me de, no PAOK, as pessoas conhecerem-nos. Saíamos do aeroporto e as pessoas pediam-nos autógrafos – as pessoas locais, por serem o tipo de fanáticos que têm cadernetas autografadas com os jogadores e todas as equipas, e que depois fazem uma coleção. Eles conhecem-te, eles sabem o teu nome. Havia um fanatismo na Grécia, em Espanha… sempre muito bom. Principalmente na Grécia, havia um fanatismo muito grande, não só em relação aos jogadores Gregos, mas também em relação ao basquetebol no geral. Tinham um conhecimento do jogo brutal. Jogavam num pavilhão que leva umas 10 mil pessoas. Era tão grande que havia uma pista de atletismo à volta do campo. Não encheu, como é óbvio, mas eles entendiam o jogo. Todo o burburinho que havia, quando fazias uma má jogada, como se o público dissesse “Este jogador é tonto”… eles entendiam, sabes? Quando fazias uma boa jogada, eles também aplaudiam e sabiam reconhecer. Havia uma cultura de basquetebol muito específica a esse nível. Os jogadores de basquetebol já eram muito idolatrados, mesmo antes de terem o sucesso que têm agora. São ídolos para os miúdos. Abrem-se os telejornais com o basquetebol em Espanha e na Grécia. Nós somos daqueles países em que o basquetebol é uma modalidade super-super secundária.  É verdade que hoje não temos razões para isso.Podemos dizer que os Espanhóis foram campeões do mundo, pois foram, mas já havia esta cultura antes de eles terem todo este sucesso – provavelmente, uma coisa também ajuda a outra. Eles gostam do basquete, o desporto ganha mais visibilidade, também atrai mais empresas, o que faz com que a qualidade também aumente. É o efeito bola de neve. Isto tudo impressionava-me, pois eu era um miúdo que morava na rua do pavilhão e que, de repente, se pôs a olhar para cima, com todas estas experiências, umas condições de treino, com pavilhões e coisas que, se não fosse o basquetebol, não teria oportunidades de ver e conhecer. Se calhar nunca imaginei que um dia chegaria a esse nível.

    Manarte despediu-se das 4 linhas num jogo de apresentação da pré-época de 2012/2013
    Fonte: Nuno Manarte

    BnR: Já és treinador da Ovarense desde a temporada de 2012/2013, sendo que fizeste uma transição rápida de jogador para treinador. Lembro-me do teu jogo de despedida e de toda a envolvente do tributo do clube pela tua partida como jogador. Nesse momento, o que é que sentiste? Sentiste que foi a altura certa? Alguma saudade?

    NM: Senti uma tristeza enorme. Antes desse jogo – não tenho vergonha nenhuma de te dizer -, as lágrimas caíram-me dos olhos. Estava em casa, a preparar aquilo que ia dizer. Disseram-me que tinha de dizer algumas palavras, e eu achava aquilo um momento tão importante que não queria deixar escapar ninguém. Cada vez que escrevia uma frase, lembrava-me de algum momento e as lágrimas caíam de uma maneira descontrolada. Sou um tipo emocional, mas perder o controlo em relação a algo é sempre complexo. E chorei bastante a pensar nesse momento… já era na época a seguir e já estava como adjunto do Carlos Pinto. Essa transição para mim foi, por alguns motivos, fácil de acontecer, mas foi difícil de a suportar. Eu gostava de jogar, gostava de treinar. Ainda hoje, se me dizes “Oh pá, vamos correr?”, eu digo não, só por obrigação. Mas se me dizes “Vamos ali jogar um basquetezito?”, eu vou todos os dias, se for preciso. É algo de que gosto e que me faz sentir bem e realizado. No último jogo, nos Açores, tive noção de que aquele podia ser a minha última partida (também porque tive lesões muito fortes). No meu íntimo, soube que, provavelmente, iria acabar.

    BnR: Porque é que sentias isso?

    NM: Tive uma época muito difícil em termos de lesões. Não me via com capacidade para recuperar e atingir níveis já atingidos antes. Também já tinha 36 anos. Foi uma noite durissíma para mim. “O que faço agora? Vou deixar de fazer aquilo que mais gosto”. Quando chegas ao topo de algo, tudo o que vem a seguir é sempre pior, e isso assustava-me. “O que me vai preencher agora?”. E assustava-me nunca encontrar algo que me fosse preencher tanto, a nível profissional, como ser jogador. A verdade é que não encontrei. Ser treinador é bem pior do que ser jogador, garanto. De certa forma, acabei por ser empurrado, quer em termos físicos, quer profissionais. Nesta fase, tinha sido um ano em que o clube tinha decrescido imenso o orçamento. Não podíamos ter dois bases e um deles estar condicionado em termos de treino. Eu também compreendi. Já não via o basquetebol para estar a fazer apenas dois ou três treinos por semana e não ir aos treinos da manhã, por exemplo, pois a minha lesão do joelho já não tinha melhorias. Por um lado, já via dessa maneira, mas por outro tinha sempre a expectativa de que poderia acontecer algo, ou de que alguém me ía ajudar, de certa maneira, a fazer mais um ano ou dois. Apesar de um grande amigo meu me dizer que conseguia fazê-lo, as outras 99 pessoas disseram para eu deixar, o que me levou por esse caminho. Hoje entendo que foi  a decisão certa. Não valia a pena estar a arriscar mais um ano, porque a verdade é que também tenho família – tenho dois miúdos e tenho me de preocupar com o futuro deles. A Ovarense também sugeriu a hipótese de ser adjunto do Carlos Pinto, e assim custou menos, porque competi, de certa forma, também, mas como treinador. Não é a mesma coisa, mas competes na mesma e tens a adrenalina. No dia em que fizeram a apresentação, senti aquela tempestade de sensações, que eu já tinha posto de parte no verão, de novo. Veio tudo ao de cima: voltar a calçar e equipar para jogar aquele minuto e meio com pessoas a ver era quase como um miúdo numa loja de doces. Acabou por ser um dia e uma despedida bonita.

    Artigo revisto

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    Vicente Tigre Avelar
    Vicente Tigre Avelarhttp://www.bolanarede.pt
    Pratica desporto desde os cinco anos, idade em que começou a jogar Basquetebol. Jogou ao serviço da Associação Desportiva Ovarense durante 12 anos (nos quais três foi campeão distrital de Aveiro). É licenciado em Gestão (ensino em Inglês) pelo ISEG e estudante no Mestrado de Finance pela mesma instituição. Instituição pela qual ainda pratica Basquetebol, tendo conseguido chegar ao Top-8 Nacional em duas épocas consecutivas. É uma pessoa com uma paixão pela modalidade e com uma forte opinião sobre a mesma, sempre aberto a diferentes visões e novas experiências.                                                                                                                                                 O Vicente não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.