A «Champions League» do ciclismo pode chegar em 2026 financiada pela Arábia Saudita

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    Depois do golfe, do boxe, do futebol e, mais recentemente, do ténis, o Private Investment Fund (PIF), fundo de investimento do Governo da Arábia Saudita parece ter as atenções voltadas para o ciclismo. A presença saudita não é, de forma alguma, uma tendência tão recente quanto isso, uma vez que a cidade de Alula se tornou patrocinadora da equipa australiana da Jayco.

    Contudo, a novidade aqui são os moldes em que esta “intervenção” se poderá vir a dar, requerendo uma revolução completa no ciclismo, sobretudo no modelo financeiro, uma vez que essa tem sido a maior justificação dada para a criação de uma “Champions League” do ciclismo com vista a tornar o desporto mais sustentável para as equipas.

    Não é a primeira vez que se fala da criação de uma liga no ciclismo, com a fundação da World Series Cycling em 2012 por oito equipas, a ser o exemplo de uma iniciativa que acabou por falhar.

    Mas que modelo é este? Quem teve esta ideia? O quão profunda é esta crise do ciclismo? E qual é o impacto que esta ideia poderá ter no ciclismo?

    A IDEIA

    A primeira notícia relativa à criação de uma liga, de um campeonato alternativo ao modelo atual do ciclismo, surgiu a 25 de outubro, através da Reuters. Aí, a agência de notícias soubera que cinco equipas do WorldTour apoiavam a iniciativa que, por sua vez partia de um organismo chamado One Cycling

    De resto, sabia-se que a Big Four e a EY, empresas de contabilidade e consultoria, respetivamente, procuravam potenciais investidores, com a CVC Sports, antiga dona da Fórmula 1 (F1), a ser apontada como uma das principais entidades financiadoras deste projeto. No dia seguinte, foi o podcast RadioCycling que revelou mais detalhes.

    A iniciativa parte, mais concretamente, de Richard Plugge, diretor-geral da Jumbo-Visma e Zdenek Bakala, dono da Soudal- Quick Step. Para além destas duas equipas, o RadioCycling revelou que algumas das equipas como a INEOS, a LIDL-Trek e potencialmente, a  EF Education-EasyPost e a BORA-hansgrohe apoiam a criação da nova liga.

    Foi o mesmo podcast que divulgou o apoio financeiro à liga seria por parte da Arábia Saudita e que tanto a UCI como os organizadores de algumas das corridas que viriam a integrar o calendário da liga estão a favor desta alteração.

    “É óbvio que o ciclismo é um gigante adormecido e merece um modelo de negócio melhorado (…) Para todos os stakeholders, mas especialmente para as equipas (de topo) do World Tour.A única forma de lá chegar é a cooperação” disse Plugge à Reuters.

    De acordo com o RadioCycling, as conversações para levar esta liga para a frente decorrem há três anos, com as grandes equipas a tomarem conhecimento há cerca de um ano. A primeira edição desta “Champions” do ciclismo está planeada para 2026, ano em que começa um novo ciclo da UCI, ou seja em que todas as equipas voltam a ter 0 pontos na discussão de um lugar no escalão mais alto do ciclismo.

    O ASPETO COMPETITIVO

    O modelo competitivo desta liga ainda não está completamente definido, uma vez que para todos os efeitos, o formato é apenas uma ideia. Todavia, as comparações à Champions League e a explicitação do modelo de liga são constantes. Segundo Plugge, este modelo beneficiava o prestígio de corridas secundárias como a Volta à Catalunha ou o Tirreno Adriatico, pelo que o peso do Tour de France ficava reduzido, pelo menos em comparação com as demais corridas. Tornava-as mais apelativas a um público casual

    “Toda a gente vai beneficiar se fizermos um desporto mesmo bom, compreensível e lindo disto que já é um desporto que já é incrível, lindo, mas que para o grande público não é sempre compreensível. Qual é o nível do (Critérium du) Dauphiné ou da (Volta à) Catalunha, por exemplo? Não há muitas pessoas que percebam que são corridas do nível “Champions League”. Tu e eu, nós percebemos, mas ao meu vizinho, tens de explicar e é isso que podemos mudar” – Plugge em declarações ao RadioCycling.

    Obviamente, a supremacia da Volta à França jamais estaria em causa, mas atualmente é, de longe, a corrida de ciclismo mais conhecida e mesmo um dos eventos desportivos mais vistos no Mundo. Em 2023, o Tirreno Adriatico, uma corrida do mesmo nível das duas referidas pelo neerlandês, alcançou uma audiência global de cerca de 47 milhões de pessoas, de acordo com o relatório da RCS Sports.

    Já o Tour de France foi visto por 150 milhões de pessoas, apenas na Europa (de acordo com dados da Amaury Sports Organization na Endurance.BIZ). Ao nível do streaming, a Warner Bros. Discovery assistiu a um crescimento de 12% nas suas audiências, um cenário que se estendeu à transmissão da prova na Eurosport, com um crescimento de 3% em relação a 2022.

    Como tal, um dos aspetos em relação ao formato competitivo que foi colocado em cima da mesa diz respeito à existência de menos dias de corrida no total. Uma das possibilidades, de acordo com o RadioCycling passa pela implementação de um calendário de 100 a 120 dias de corrida (sem sobreposições), em que 80% dos melhores ciclistas do pelotão seriam obrigados a alinhar. Todas as corridas por etapas terminariam num domingo e as clássicas decorreriam sempre nesse dia da semana. De acordo com Richard Plugge, o sistema de pontuação já foi acordado dentro da One Cycling.

    Desta forma, a One Cycling garantia que o calendário da sua liga não ia contar com um pelotão desfalcado em certas provas. Em relação aos critérios para integrar a liga ou que permitiriam uma “subida de divisão” por parte de uma ProTeam, nada foi dito. O mesmo em relação a eventuais planos para a criação de uma liga da One Cycling para o ciclismo feminino, com nenhuma das equipas do Women’s World Tour a estar envolvida nas discussões até à data de escrita deste artigo.

    O MODELO FINANCEIRO ATUAL

    Um dos principais motivos que levou à discussão deste projeto diz respeito à sustentabilidade financeira do ciclismo, com vários agentes do desporto a criticar o modelo atual por deixar as equipas inteiramente dependentes de um patrocinador num desporto onde os direitos de transmissão são essencialmente distribuídos pelos organizadores das corridas, o que afeta o lucro possível para as empresas que se assumem como pedra basilar destas equipas.

    Um dos casos mais gritantes foi o da HTC-Highroad, equipa mais vitoriosa de 2011 que fechou portas nesse mesmo ano, quando contava com ciclistas como Mark Cavendish, Tony Martin e Edvald Boasson Hagen. Nesse ano, a formação de Bob Stapleton conquistou a camisola verde do Tour de France, bem como 6 etapas, mas foi incapaz de encontrar um novo patrocinador a tempo.

    A Jumbo-Visma passou por uma situação semelhante este ano. A cadeia de supermercados Jumbo irá cortar nos patrocínios desportivos e a equipa de Jonas Vingegaard e companhia será uma das principais afetadas, com o acordo de patrocínio a chegar ao fim em 2024. Contudo, Richard Plugge não ia deixar escapar o ano em que a equipa venceu as três Grandes Voltas no mesmo ano para assegurar o futuro da mesma para lá de 2025.

    Houveram vários rumores em cima da mesa, com interesses da Neom (uma empresa dirigida pelo próprio Mohammed Bin Salman, Príncipe da Arábia Saudita) e da Apple, tendo este último sido mais ténue. O maior rumor foi o que tomou o Mundo do ciclismo de assalto entre o final de setembro e o início de outubro: a fusão com a Soudal-Quick Step, com Richard Plugge a ser o dono da equipa e Patrick Lefevere a assumir um lugar na direção, mas afastando-se um pouco das operações “no terreno”.

    A fusão foi muito mal recebida por fãs que temiam que a união das duas equipas acabasse com a competitividade no ciclismo e por equipas como a Movistar e a INEOS que pareceram ficar à espera de perceber se nomes como Remco Evenepoel, Julian Alaphilippe ou Kasper Asgreen ficavam de repente disponíveis no mercado. Isto porque as duas equipas ficavam com um total de mais de 50 ciclistas, um número que ultrapassava e muito o limite máximo de 30 ciclistas para as equipas World Tour.

    Contudo, o projeto caiu por terra e, com este, a possibilidade de uma equipa patrocinada pela Amazon com um orçamento de 15 milhões de euros anuais que a superempresa oferecera à “Soudal-Visma”. A Jumbo-Visma passará a ser Visma- Lease a Bike em 2024, com a PON, grupo neerlandês que é dono da Cervélo, a assumir-se como patrocinador da equipa, sem a necessidade de existir um corte orçamental.

    Apesar do alívio ao nível competitivo e da estabilidade laboral dos ciclistas e de elementos do staff, uma questão muito grave ficou no ar: o quão sustentável é um modelo financeiro em que uma equipa que faz uma das melhores temporadas da história do desporto é incapaz de arranjar um patrocinador à sua escolha? A médio-longo prazo, estará alguma marca interessada em sustentar uma equipa num desporto que gera tão pouco lucro que nem a melhor do Mundo consegue ser apelativa que chegue?

    É muito provável que a resposta a estas questões seja mesmo favorável à mudança de paradigma financeiro no ciclismo. Mas será que este modelo da One Cycling tem pernas para andar?

    OS OBSTÁCULOS

    De acordo com o RadioCycling Podcast, Richard Plugge estima que são necessários 25 milhões de euros para adquirir os direitos televisivos de praticamente todas as corridas de ciclismo, com 600 milhões de euros a serem o valor estimado pelo neerlandês para convencer a RCS Sports, a Amaury Sports Organization (ASO, organizadora do Tour e da Vuelta) e a Flanders Classics (organizadora de grandes clássicas belgas, nomeadamente o Tour de Flandres).

    Um modelo semelhante ao da LIV Golf e do PGA Tour com um calendário concorrente ao das demais organizações que podia também ser uma forma de persuadir estas entidades.  O mesmo podcast nota que existe um elemento da ASO que simpatiza com a ideia e que já teve conversas com Richard Plugge, mas que a organização se coíbe de apoiar um projeto pelo qual a própria UCI já se demonstrou a favor.

    Esta estratégia de negociação, como nota Jonathan Vaughters, Diretor da EF Education-EasyPost ao RadioCycling, abre a possibilidade aos organizadores de incluírem os direitos televisivos das suas respetivas corridas num pacote e de o negociar, garantindo desta forma que tanto os organizadores como as equipas recebem mais dinheiro do que na situação atual.

    Mas a verdade é que a iniciativa não é muito bem vista por grande parte das equipas, uma vez que não lhes agrada a ideia do dirigente de uma equipa ser o cabecilha por trás de um projeto tão revolucionário no ciclismo.

    Para além da figura principal na estrutura da melhor equipa do Mundo, Richard Plugge é também Presidente da Associação Internacional de Grupos Ciclistas Profissionais (AICGP), um grupo de interesse que se encarrega de apoiar as equipas do WorldTour e do escalão Pro Continental, as duas principais divisões do pelotão. É um dos principais motivos para o antigo jornalista dos Países Baixos ser tão vocal em relação ao modelo financeiro do ciclismo.

    Contudo, o próprio Vaughters reconhece que existe preocupação entre as equipas em relação a um possível conflito de interesses por parte de Plugge por querer encabeçar esta revolução do ciclismo, enquanto dirigente da Jumbo-Visma.

    “Acho que o Richard é uma figura muito divisiva entre diretores de equipa e da gestão das equipas simplesmente porque ele está a olhar para tudo da perspetiva do gorila de 10 mil libras. Acho que, no ano passado, o seu conflito de interesses no que diz respeito à pressão as equipas para um sistema de pontuação e de descidas (de World Tour para Pro Team) sobressaiu muito e acho que, por causa disso e de ser uma personagem divisiva e não ser visto como alguém que está, de facto, a olhar pelo maior interesse de todas as equipas, que vai ser difícil para ele juntar todas as equipas com qualquer proposta”

    Ressalva que este se trata de um passo necessário para o ciclismo e que o caráter divisivo de Richard Plugge não deve retrair as equipas, pelo que encoraja a que o conflito pessoal seja posto de lado.

    Portanto, para além das organizações e das equipas há um stakeholder que a One Cycling precisa de convencer: os fãs. Será possível que este novo formato atraia mais fãs ao ciclismo, mantendo os antigos ou pelo menos de forma a garantir uma maior audiência média por corrida? É difícil dizer, pois o ciclismo é um desporto fortemente ligado à tradição e para os fãs casuais deste desporto, os ciclistas não são necessariamente o aspeto atrativo.

    Plugge compara muito o ciclismo à F1, mas a verdade é que o papel da tradição no ciclismo é muito maior, com uma boa (senão a maior parte do público) a assistir à corrida porque é aquilo que gosta de fazer naquela altura do ano. Não há a preocupação com a presença do Tadej Pogacar, do Primoz Roglic ou do Jonas Vingegaard. A preocupação está no hábito de assistir à corrida seja na estrada ou na televisão.

    Na F1 é mais fácil criar a ligação com a generalidade dos pilotos porque… bem a F1 sempre se pintou como um campeonato que deve ser acompanhado como um todo, pelo que a motivação intrínseca para acompanhar todas as corridas já existe. E conhecer cada um dos 20 pilotos na grelha é muito mais fácil do que conhecer cada ciclista de um pelotão de 120 pessoas.

    Para além disto, existe o obstáculo moral da ligação à Arábia Saudita que ficava praticamente dona do ciclismo, um cenário de relações públicas que é sempre complicado de gerir e que pode levar muitas pessoas a desligar-se do produto, sem a garantia do fluxo favorável de fãs casuais que o futebol, por exemplo, traz.

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    Filipe Pereira
    Filipe Pereira
    Licenciado em Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o Filipe é apaixonado por política e desporto. Completamente cativado por ciclismo e wrestling, não perde a hipótese de acompanhar outras modalidades e de conhecer as histórias menos convencionais. Escreve com acordo ortográfico.