Milão-Sanremo 1910: A história da corrida mais dura de sempre

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    Disputou-se no último sábado o primeiro dos cinco Monumentos do ciclismo: a Milão-Sanremo, uma corrida marcada pela sua extensão, sendo uma das mais longas do ano e também uma das mais antigas do calendário. A sua história remonta a 1907, ano em que Lucien Petit-Breton, ciclista francês da Peugeot – Wolber percorreu 288 quilómetros, em 11 horas, 4 minutos e 15 segundos para conquistar a vitória

    No ano seguinte, foi Cyrille Van Hauwaert, belga da Alcyon, que demorou 11 horas e 33 minutos a percorrer 283,4 quilómetros, um número que também não ficou por muitos anos no livro de recorde. Isto porque em 1910, um ciclista francês de nome Eugene Christophe venceu “La Classicissima” ao percorrer 289,3 km em… 12 horas e 24 minutos, com uma velocidade média de 23,331 km/h! Até hoje, é a 2ª edição mais lenta de sempre da “Classissicima”, apenas batida pelo ano de 1917, em que a velocidade média foi de 22.496 km/h do ProCyclingStats.

    Uma edição particularmente dura da prova, marcada pela neve, é uma corrida que encapsula bem o caos do ciclismo no início do século XX e há mesmo quem a considere a corrida de ciclismo mais dura de sempre

    EUGENE CHRISTOPHE: O FERREIRO QUE VESTIU A CAMISOLA AMARELA DA VOLTA A FRANÇA

    Eugene Christophe nasceu em 1895 em Malakoff, uma localidade nos arredores de Paris e ganhava a vida como ferreiro, chegando a trabalhar mais de 60 horas por semana. Foi quando assistiu ao Tour de France de 1903 que o “bichinho” do ciclismo o mordeu. Em 1906, participou mesmo na Grand Boucle e terminou no 9º lugar, posição essa que viria a repetir em 1909.

    Ainda assim, os maiores sucessos de Eugene Christophe até começaram por surgir no ciclocrosse, especialidade da qual acabou por ser pioneiro. O 7º lugar no Paris-Roubaix de 1904 foi o seu primeiro grande resultado, terminando a 17:30 do vencedor, Hippolyte Aucouturier. Em 1906, esteve perto do pódio do Paris-Tours, ao terminar na 4ª posição, a 10:50 de Lucien Petit-Breton.

    Portanto, o triunfo na Milão-Sanremo revelou-se como uma recompensa por todos os resultados que o ciclista de 25 anos alcançara até então, aquela vitória que teimava em não acontecer.

    Mas o que marcou mais o “Galo” (alcunha que recebeu devido ao cuidado que tinha com a sua aparência) não surge tão associado às corridas que ganhou, mas àquela que nunca ganhou: o Tour de France. Em particular, a história mais famosa surge no Tour de 1913, ano em que Eugene Christophe partia como o maior favorito. A etapa 6 tinha 326 km a ligar Bayonne e Bagnères-de-Luchon, com passagem pelo Col d’Aubisque, Col du Tourmallet, Col d’Aspin e pelo Col de Peyresourde.

    Christophe estava a confirmar o favoritismo nesse que foi o primeiro dia de montanha da corrida e levava já uma vantagem de 18 minutos para Philippe Thys. Foi na descida do Tourmallet para Saint-Marie de Campan que a sorte abandonou o francês, como o próprio escreveu:

    “Senti que havia algo de errado com o meu guiador cerca de 10 quilómetros antes de Ste-Marie-de-Campan. Já não conseguia controlar a minha bicicleta. Parei e desci da bicicleta. Depois vi que o garfo estava partido”. – de acordo com o site “We Love Cycling”.

    Perante esse incidente, Christophe viu-se obrigado a remover a roda da frente da bicicleta e a levá-la na mão esquerda, enquanto por cima do ombro direito carregava o quadro da bicicleta. Caminhou durante 10 quilómetros à procura da forja local com o objetivo de reparar a bicicleta e voltar à corrida.

    De acordo com o “We Love Cycling”, o ciclista da Peugeot-Wolber teve a ajuda de uma criança de Ste-Marie-de-Campan para localizar o estabelecimento. Quando lá chegou, estavam os comissários à espera para garantir que Eugene Christophe não recebia qualquer tipo de ajuda externa. Como tal, o ciclista de 28 anos viu-se obrigado a usar as suas skills de ferreiro para reparar o garfo da bicicleta, enquanto recebia instruções verbais do dono da forja e um rapaz que se tinha esgueirado para dentro do estabelecimento trabalhava com o fole. Esta ajuda levou os comissários a penalizar Christophe em 10 minutos.

    Mas o ciclista francês lá terminou a etapa e ainda ultrapassou 15 ciclistas durante Aspin e Peyresourde, duas subidas míticas da “Grand Boucle”, mas perdeu 4 horas para o vencedor da etapa e eventual campeão dessa edição do Tour, Philippe Nys. Ainda assim, Eugene Christophe acabou no 7º lugar da geral, a 14 horas, 6 minutos e 35 segundos do primeiro lugar.

    Apesar de nunca ter ganho o Tour, Christophe seria o primeiro homem de sempre a vestir a camisola amarela, no ano da sua introdução (1922) e é uma lenda do ciclismo francês até hoje. Retirou-se da competição em 1926.

    EXIBIÇÃO MONUMENTAL PARA GANHAR A “CORRIDA DE BICICLETAS MAIS DURA DE SEMPRE”

    Eugene Christophe tinha um diário no qual escrevia sobre as suas corridas e é da entrada referente à Milan-Sanremo que se tem alguma ideia do que aconteceu naquela prova monstruosa, sendo que essa própria história já foi abordada por tantos autores diferentes ao longo dos anos que o jornalista e escritor, Peter Cossins admitiu à Eurosport que tem dúvidas sobre que parte da história é verdadeira e que parte é engrandecida por autores franceses.

    Christophe alinhou na Milão-Sanremo de 1910 menos de uma semana depois de fechar o pódio do Paris-Roubaix, uma prova dominada pela Alcyon – Dunlop que ocupou os quatro primeiros lugares, com a vitória a sorrir a Octave Lapize.

    Neve, chuva e vento forte, tudo nas 24 horas que antecederam a corrida que esteve mesmo em vias de ser cancelada, o que sendo no início do século XX, dá uma ideia do quão mau estavam as condições meteorológicas. A corrida acabou por decorrer, mas apenas 63 ciclistas começaram a corrida. Estavam previstos 256.

    E às 6 da manhã do dia 10 de abril, começava o primeiro Monumento do ano e o mau tempo teve efeito na corrida logo à passagem pelo Passo del Turchino, subida mítica da Milão-Sanremo que persiste no percurso até aos dias de hoje. 2,5 km de extensão, com uma pendente média de 5,8%, sendo que as rampas mais inclinadas chegam aos 10%. O que é que podia tornar esta subida ainda mais difícil? Um nevão seria provavelmente uma das principais respostas a esta questão e foi isso mesmo que recebeu o pelotão no Turchino. A corrida fazia-se a um ritmo frenético, como nota Eugene Christophe:

    “Percorremos os primeiros 32 km em 56 minutos; os 53 km de Milão a Voghera em uma hora e 50 minutos. Houve ataques atrás de ataques e foi mais como uma corrida de pontos do que uma corrida de longa distância”

    Eugene Christophe seguia na roda do colega de equipa, Ernest Paul, ao seu próprio ritmo, apenas com a intenção de gerir o esforço. Vários ciclistas desistiram da corrida durante a subida. Foi o caso de Octave Lapize, que até seguia com Luigi Ganna na perseguição a Pierino Albini.

    Christophe acabou por alcançar e deixar Ganna para trás, seguindo na perseguição.

    “Dedos rígidos, pés dormentes, pernas rígidas. Estava a tremer constantemente, por isso comecei a andar e a correr para recuperar a minha circulação. O tempo estava sombrio e o vento fazia um ruído baixo e um som de gemido. Teria sentido medo se não estivesse habituado ao mau tempo nas corridas de ciclocrosse”

    Passado o Turchino, Christophe relata que começou a ter dores abdominais fortes que o obrigaram a parar de pedalar. Foi antes de chegar a Voltri que o francês deu de caras com um local que o levou a sua casa para mudar de roupa. Aí o homem da Alcyon começou a sentir-se melhor e pouco depois até terá tido a companhia de Ernest Paul e Cyrille Van Hauwaert, colegas de equipa que efetivamente não iriam continuar a sua corrida.

    Já o “Galo” pensava apenas em chegar a Sanremo e em ultrapassar os ciclistas que tinha à sua frente. Primeiro, foram Giovanni Cocchi e Eberado Pavesi.

    Em Voltri, segundo Corradino Corradini, correspondente do “Turin Press” que acompanhou a corrida num carro, Christophe já só tinha Albini e Ganna à sua frente, com este último a ser encorajado pela multidão a desistir, mas sem ceder. Mas, ainda a mais de 120 km do final, Eugene Christophe alcançava e ultrapassava os dois rivais.

    Foi em Savona que Eugene Christophe foi visto na liderança pela primeira vez. O francês cortou as pernas das calças a meio, na zona de abastecimento, pois estavam completamente encharcadas. A 10 minutos, seguia Luigi Ganna e pouco atrás rodava Albini.

    E assim, ao fim de 12 horas e 24 minutos, Eugene Christophe ganhava a Milão-Sanremo, o primeiro e único monumento da sua carreira. O 2º classificado chegaria com mais de 1 hora de atraso, o italiano Giovanni Cochi, com Giovanni Marchese (ambos da equipa da Otav) a completar o pódio.

    Na estrada, Luigi Ganna até tinha terminado em segundo, mas como fora visto a rodar atrás de um carro nos quilómetros finais, acabou por ser desclassificado. A corrida foi de tal forma dura que o italiano terá dito que não voltava a correr. Mas acabou por fazê-lo até 1914.

    Já Eugene Christophe passou um mês no hospital, devido a lesões causadas pelas temperaturas baixíssimas e só em 1912 é que voltaria a correr ao seu melhor nível. Até hoje, é a edição da Milan-Sanremo com a velocidade média mais baixa de todos os tempos: aproximadamente 37 km/h.

    “A quarta edição da Milão-Sanremo foi provavelmente a corrida de bicicletas mais dura de sempre” – David Guénel em declarações à Eurosport

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    Filipe Pereira
    Filipe Pereira
    Licenciado em Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o Filipe é apaixonado por política e desporto. Completamente cativado por ciclismo e wrestling, não perde a hipótese de acompanhar outras modalidades e de conhecer as histórias menos convencionais. Escreve com acordo ortográfico.