Portugal nos Jogos Olímpicos: Atenas, 2004

Decorrem as Olimpíadas em Paris, debaixo do fogo cruzado dos extremismos políticos e dum mundo em polvorosa. Portugal, geralmente actor secundário nessas coisas, tenta fazer valer o seu pobre projecto olímpico para almejar uma medalha ou duas, uma esmola que nos faria todos contentes e pouca falta faz a outros gigantes, mais apetrechados de atletas de eleição e culturas desportivas futuristas, que envolvem as sociedades num saudável manto de alternativas à competitividade e destreza.

No Portugalinho conta sobretudo ver quem é o melhor a chutar a bola, restando as outras práticas para residuais apoiantes, tudo coisa para inglês ver. Como os futebolistas portugueses não conseguiram a proeza da qualificação para estes Jogos, recuemos 20 anos, quando Portugal tinha equipa com proposta séria às medalhas – ao contrário de 2016.

O FC Porto tinha sido campeão da Taça UEFA em 2003 e seria rei da Europa em 2004. A Selecção quase, não fosse Charisteas. A selecção Olímpica que chegava a Atenas, comandada por José Romão, germinava sobre as sementes lançadas nuns sub-21 que chegaram às Meias-finais no Europeu da categoria, jogado na Alemanha.

Depois duma qualificação difícil pela presença da Inglaterra – a quem ganhámos em Goodison Park, eles com Jagielka, Dawson, Gareth Barry, Joey Barton, Ameobi ou Jermain Defoe-, um play-off a matar com a França de Djibril Cissé, Evra, Mexés e Cheyrou: vieram cá ganhar-nos na 1.ª mão, em Guimarães, e fomos obrigados a arregaçar as mangas.

Mais propriamente Ronaldo, que fez tudo o que podia. À golaceira a culminar exibição convicta, o penalty de au revoir a servir de laço. Ele e os restantes miúdos recuperaram como gente grande e no Europeu foram dignos, sobretudo pela vitória frente à anfitriã Alemanha. Era um Portugal com Moreira, Ricardo Costa, Bruno Alves, Meireles, Bosingwa, Carlos Martins, Hugo Viana, Tiago, Danny, Makukula ou Postiga, tudo gente já embrenhada, pelo menos, na Primeira Liga.

Acima destes, as duas pérolas: ao lado de Cristiano Ronaldo, Ricardo Quaresma. Um no Manchester United, outro do Barcelona e que regressaria pouco depois a Portugal via Dragão. No Europeu só claudicaram perante uma Itália com De Rossi e Gilardino, mas asseguraram o terceiro lugar, partindo para Atenas como favoritos.

Os problemas começam aí, no preciso momento em que é preciso definir a convocatória. Com os Jogos a começarem em Agosto, os clubes fizeram de tudo e mais alguma coisa para impedir a ida dos atletas. Ferguson e Carlos Queiroz gritavam de Manchester desesperados – viam a sua pérola a competir no Europeu sénior e a arrepiar caminho logo depois para a Grécia. A 23 de Julho, dizia que teria que dar «dois meses» de férias a Ronaldo, porque toda a sobrecarga poderia  «colocar em risco o desenvolvimento do jogador». «Tem só 19 anos e já muito se espera dele. Não pretendo que chegue aos 25 sem conseguir atingir o auge das suas capacidades, por ter jogado muitos jogos».[1]A 9 de Agosto insistia Sir Alex:

 «É o pior início de época que já tivemos. É dramático para nós tentar dar descanso suficiente aos jogadores. A questão era tentar que toda a gente estivesse apta para quarta-feira (o United jogava em Bucareste, contra o Dínamo, na pré-eliminatória da Champions). Não nos podemos dar ao luxo de ter mais lesões. O Heinze (nos convocados de Bielsa) e o Ronaldo jogam pelo menos até 19 de Agosto. Depois a Argentina e Portugal têm jogos do Mundial. Por isso tê-los-ia de volta da Grécia a 21, e voltariam a partir a 27. Tenho mesmo de os fazer descansar. O que é que posso fazer por eles?», terminando com o icónico ataque à Federação quando voltou a focar em Ronaldo: «estão a apontar-lhe uma pistola à cabeça!»

Por cá seguiram-lhe o exemplo, talvez até com mais moral para o fazer. O Porto, que reformulava a equipa fruto dos sucessos, via serem-lhe retirados… seis atletas (Bruno Alves, Bosingwa, Bruno Vale, Meireles, Hugo Almeida e Ricardo Costa) e Reinaldo Teles, admnistrador da SAD e no auge do seu poder na estrutura, deitava fumo pelas orelhas.  «Vergonhoso» e «incompreensível» era o que se lembrava de dizer aos microfones da comunicação social. Zangado sobretudo por olhar para o rival Benfica e ver… que só um jogador tinha sido chamado.  «Temos de classificar de vergonhoso o número de atletas do F.C. Porto que foi convocado quando comparado com outros clubes, nomeadamente aquele que defrontamos a 21 de Agosto para disputar o primeiro troféu da temporada (Supertaça, ganha pelos portistas em Coimbra)». Além da Supertaça Cândido de Oliveira, havia a Supertaça europeia frente ao Valência, troféu «altamente prestigiante para Portugal  e que devia ser do interesse nacional». Finalizava Reinaldo construindo frase sintomática do ambiente vivido naquele futebol português de inícios de milénio: «tudo é possível num país onde se condecoram aqueles que não ganham e não se condecoram aqueles que ganham»[2], em referência às 11 figuras da organização do Euro 2004 condecoradas pelo Presidente da República, Jorge Sampaio – a condecoração ao FC Porto, já sem Mourinho e muitas das figuras, só chegaria em Janeiro de 2005, depois da Taça Intercontinental.

Por isso, Quaresma nem foi conversa, sabia a Federação que seria jogar lenha para a fogueira. Tiago, que transitara do Benfica para o Chelsea, e Postiga, jogador do Tottenham, também foram protagonistas – os clubes tanto tentaram que lá apareceram as convenientes lesões a provocar o rabisco na folha. Os 23 que Romão conseguiu finalmente reunir:

Moreira e Bruno Vale; Mário Sérgio, Frechaut, Bruno Alves, Ricardo Costa, João Paulo e Jorge Ribeiro; Bosingwa, Fernando Meira, Raúl Meireles, Carlos Martins, Hugo Viana, Danny, Boa Morte e Cristiano Ronaldo; Lourenço e Hugo Almeida.

Fernando Meira, figura do Estugarda. Frechaut, canivete suíço do Boavistão. Boa Morte, emigrante na Premier League desde os 19 anos. Eram os três adultos experientes escolhidos para atenuar a irreverência e os três que tinham ficado à porta do Europeu – a chamada fora, portanto entendida como prémio de consolação pela maioria da imprensa e massa adepta. Romão tentava desviar-se das polémicas e manter-se calmo, apelando à confiança de todos. «Pedimos a Portugal que acredite em todos os atletas portugueses e não só no futebol. Todos ficámos orgulhosos com os feitos de Carlos Lopes e Rosa Mota. Convido os portugueses a acreditarem em todos nós», pedia o seleccionador à saída do estágio.[3]

As incidências ficam expressas pelos resumos e tudo o que se possa dizer sobre a indisciplina e desleixo dos portugueses em solo grego deverá ser guardado para momentos mais íntimos, sob pena do palavreado à rédea solta, aos coices e a fazer chinfrim que não ficaria bonito ser transcrito.

Um Iraque, que conseguia  a muito custo apresentar uma equipa – que nem profissional era e que muitos estavam há meses a defender a pátria da invasão americana, a treinar enquanto olhavam para cima de forma a se anteciparem a algum míssil – fazia gato-sapato dos dorminhocos portugueses à custa de muito suor e desejo de dar uma alegria ao seu povo. Não chegando tamanha demonstração de superioridade moral, Luis Boa Morte, supostamente um dos com mais tino, começou a fazer figuras e foi expulso no início da segunda parte.  Não voltaria a jogar.

Para o seu lugar entraria Danny, com Raúl Meireles a render Hugo Viana e a equipa a melhorar, pelo menos no compromisso até certo momento.  À entrada para o último quarto-de-hora, Portugal vencia por dois, mas no último suspiro quase que ia tudo à vida: Marrocos reduz perto dos noventa e encostou os portugueses às cordas, que se viram aflitos para manter os três pontos. Que conseguiram, efectivamente, mas perdendo Cristiano Ronaldo para o último jogo pelo segundo amarelo na prova. Em princípio, pensava-se, até vinha em boa altura, permitindo o descanso do guerreiro: é que Costa Rica perdera com o Iraque e por isso bastava o empate na última jornada.

Mais uma expulsão e quatro golos sofridos na segunda parte duma equipa que de morta passaria a qualificada, para logo depois esbarrar na Argentina e sair vergada a quatro golos – se dúvidas existissem, provava-se a responsabilidade da comitiva de Portugal no descalabro competitivo, com exibições anedóticas e derrocadas emocionais impróprios dum conjunto de jogadores que se revelariam, na sua maioria, de alto gabarito. A sair para o intervalo com menos um, mas em vantagem, Portugal até respondeu bem ao empate da Costa Rica (50 minutos) com um livre de Jorge Ribeiro (54). Os três golos sofridos depois, em 22 minutos, resumiram todos os erros na preparação e, à despedida, Romão, cheio de tristeza e melancolia, refugiava-se no mistério. 

«Hoje, podemos falar deste jogo e, mais tarde, com todo o tempo e o devido cuidado, podemos aprofundar todas as questões sobre a participação portuguesa neste torneio. (…) De facto, não estamos felizes com a participação de Portugal nestes Jogos Olímpicos, pois trazíamos um outro sonho».

O sonho, por muito inspirador que fosse, seria sempre só isso, na infinita maioria dos possíveis cenários caso tivessem que defrontar a Argentina de Marcelo Bielsa – Ouro puro, que ganhou todos os seis jogos que disputou, não sofreu um único golo, marcou dezassete e apresentou o seguinte onze na final: Germán Lux; Roberto Ayala, Coloccini e Gabriel Heinze; Lucho González, Mascherano e D’Alessandro; Kily González, Mauro Rosales, César Delgado e Carlitos Tévez, que foi o melhor marcador da competição com oito golos. Convenhamos que… 


[1] https://www.publico.pt/2004/07/23/desporto/noticia/ferguson-critica-convocatoria-de-cristiano-ronaldo-1199692

[2] https://maisfutebol.iol.pt/reinaldo-teles-e-a-convocatoria-de-romao-vergonhoso-e-incompreensivel

[3] https://www.publico.pt/2004/08/12/desporto/noticia/iraque-no-caminho-do-sonho-do-futebol-portugues-1201029

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