20 anos da derrota do título | Giovanni Trapattoni

O fundo do poço daquele Benfica de Giovanni Trapattoni chegou em Dezembro. Dia 12, quando se deslocou ao Restelo para defrontar o Belenenses dum promissor Carlos Carvalhal, o Benfica era segundo classificado com os mesmos pontos do primeiro, o FC Porto, e a época desenrolava-se desapaixonadamente.

Trapattoni chegara no meio da admiração geral, mas na primeira semana de competição perdera a Supertaça e a possibilidade de disputar a Champions, impotente perante um Anderlecht de futebol mais uefeiro num Constant Vanden Stock à pinha.

Aquele Benfica, espezinhado e apático por tanta humilhação na sua década de Vietname, e apesar de ter Miguel, Petit, Simão ou Nuno Gomes, era por isso mesmo uma equipa complexada, sem autoestima, que se deixava facilmente levar pela depressão ou pela euforia. Trapattoni, já a época ia a terminar, dá uma entrevista à Gazetta dello Sport e contava assim aos seus conterrâneos as anedotas do dia a dia português: «Ainda não ganhámos nada, embora se ande há meses em festa e me dêem palmadinhas nas costas. Mais de meio Portugal apoia o Benfica e, se vencermos, pára tudo. Isto é perigosíssimo, porque a equipa é jovem e pouco astuta. Por exemplo: estamos a ganhar 3-2 e, no final, vão oito jogadores para a área quando temos um canto. Assim perdem-se pontos. Antes dos jogos, os jogadores costumam gritar ‘vamos ganhar’. Eu corrijo: ‘Vamos procurar ganhar’.»[1]

Para piorar, à data da fatídica noite de Cristo Rei no horizonte atravessava-se grave série de lesões na equipa – eram cinco os titulares de fora, mais Mantorras que ainda não estava pronto para a peleja: Miguel, Luisão, Ricardo Rocha, Manuel Fernandes e Nuno Gomes.

O eixo defensivo duma vez, assim a seco, zona tão nevrálgica da sustentabilidade tática. Com Luisão e Ricardo Rocha em parelha, o Benfica cumpriu 22 jornadas, sofrendo 15 golos; O que já não é nenhuma média sensacional transforma-se numa horrenda e desformada concepção quando se compara com o número de sofridos nas 12 jornadas em que falhou um deles ou mesmo os dois em simultâneo – 16. No Restelo, jogavam Argel e Amoreirinha.

Do outro lado, uma equipa atrevida e ideias modernas, como até hoje costumam ser as de Carvalhal – que três anos antes havia levado um Leixões de Segunda divisão B à final da Taça e, por conseguinte… à Taça UEFA, onde passou uma eliminatória! –  que apesar do 12º lugar era o melhor ataque do campeonato, com 22 golos, muito fruto da dilacerante dupla constituída por Lourenço, emprestado pelo Sporting, e Antchouet, que fora figura desse Leixões e levava nove golos no campeonato (com direito a um hattrick, quatro jornadas antes em Aveiro num 3-3 ao Beira-Mar). Estava tudo a postos para o desastre.

Foi penoso, sobretudo pela gritante falta de disponibilidade emocional da equipa, que se deixou derrubar em dez minutos. O Record usava a crónica do dia seguinte para dar voz à frustração dos adeptos: «Em menos de dez minutos, o resultado avolumou-se para 3-0. Da ingenuidade de Amoreirinha no lance do “penalty” não vale a pena fazer comentários. Agora, a passividade de toda a linha recuada no terceiro (e decisivo) golo é de pasmar! Como é possível, partindo ainda antes da linha do meio-campo, (perdida por Bruno Aguiar) a bola ter circulado por quatro belenenses sem sequer um dos cinco benfiquistas-espectadores esboçar um corte ou uma falta?»[2]

Com a derrota, mantinha o Benfica os 25 pontos e a situação era agora caricata para decidir quem se chegava à frente da tabela. Porquê? Porque teoricamente seria o FC Porto a aproveitar, mas tinham compromissos mais importantes e nesse fim de semana estavam no Japão para decidir com o Once Caldas a Taça Intercontinental.

Então, quem ficou líder da Primeira Liga à 14ª jornada? O Sporting? Bem, não. Foi um ano atípico, com pior campeão de sempre, pelos pontos (65), pelas poucas vitórias (19) e as muitas derrotas (7). Nunca o campeão tivera números tão maus, e isto com o FC Porto campeão europeu (e mundial) em título e um Sporting que chegaria à final da Taça UEFA.

Mas tantas distracções internacionais permitiram à gama média do campeonato chegar-se à frente. A Liga teve seis líderes (além dos habituais, Sporting de Braga, Vitória setubalense e Boavista) e a 12 de Dezembro, entre o primeiro lugar e o sexto distavam… três pontos.

Ora, Sporting tinha recebido o Braga e Jesualdo Ferreira fizera o mesmo que já havia feito na Luz umas semanas antes – impor a um Grande um empate caseiro sem golos; o Vitória setubalense, comandado exemplarmente por José Couceiro a partir do banco e pela dupla Meyong-Jorginho no relvado, não passava em Vila do Conde (1-0); O que significava que o Boavista, que tinha vencido à rasca na abertura da jornada, vencendo a Académica pela margem mínima e um golo nos descontos, apanhava-se agora na liderança isolada, com mais dois pontos que os Três Grandes. Jaime Pacheco era um homem feliz.

A situação era tão caricata que José Veiga, homem forte do futebol benfiquista, prometeu logo sobre o apito final que o Benfica ia atacar forte o mercado de Janeiro, reacção enérgica às palavras de Trapattoni na flash interview, onde procurara relativizar a coisa e utilizar a derrota como aviso à equipa.

Foi nessa noite que Trapattoni lançou o «quando sentes que não podes ganhar, deves conseguir não perder», que perduraria no léxico futebolístico nacional. Além de decidir aí a troca definitiva de Moreira por Quim, viu então chegar em Janeiro um tal de Nuno Assis, peça decisiva na melhoria relativa da equipa na segunda-volta, estabilizada em 4-2-3-1 com o ex-Vitória de Guimarães na posição 10.

Trapattoni lá conseguiu levar a sua avante, terminando campeão num ano muito difícil e futebol muitas vezes sofrível. Foi uma vitória da experiência, da sabedoria – a mesma que o levou a perceber que o projecto não tinha pernas para andar e que saber sair a tempo é uma grande virtude.

Com 66 anos, Trapattoni já não precisava das agruras e indefinições que aquele Benfica ainda atravessava. Era ainda um Benfica em reconstrução, a levantar-se, sem Caixa Futebol Campus (só apareceria dois anos depois) e que por isso ainda andava de casa às costas, a partilhar os treinos entre o relvado da Luz ou do Estádio Nacional, quando não era na Praia Del Rey de Óbidos, quartel-general muito na moda à altura, famoso como sítio da Selecção durante o Euro 2004. Contou Simão certo dia no livro 20 Segredos para um Título Inesquecível, escrito a meias com Luís Miguel Pereira:

 «Após a derrota com o Sporting, em Alvalade, a direcção do Benfica e a equipa técnica, entenderam que aquele seria o local adequado para preparar o encontro com o Boavista. Pessoalmente achei muito boa ideia. Melhor ainda quando, na sequência desse primeiro estágio, goleámos os axadrezados por 4-0. Depois veio o Sporting para a Taça de Portugal, voltámos a Óbidos e voltámos a vencer. Aquela vila e aquele hotel tornaram-se uma espécie de talismã para o grupo. Sempre que preparámos os jogos em Óbidos nunca perdemos, excluindo a final da Taça de Portugal, frente ao Vitória de Setúbal. Mas todas as regras têm a excepção que as confirma».  

Trapattoni sempre foi honesto e deixou o aviso –no final da época havia lugar a reflexões profundas sobre o seu futuro. A família ficara toda em Itália e um homem da sua idade quer acompanhar o crescimento dos netos. A senhora Trapattoni, de nome Paola, nunca se coibiu de chegar à frente para proteger os interesses do marido. Passou sobretudo por ela a ideia da despedida – porque Giovanni, quando percebeu que o título era real, chegou a admitir que a questão de comandar o Benfica na Champions era um argumento de peso à permanência. Mas Paola lá lhe deu a volta.

No dia da despedida, ela própria falou aos jornalistas. «Tinha de ser pelos filhos, pelos netos, pela nostalgia… Tinha mesmo de ser». Talvez também ela tenha percebido a magnitude do feito, perante tanta falta de condição. Para não borrar a pintura, e já escaldada pelas longas manifestações de contestação ao marido ao longo da época, fez o que tinha a fazer, metendo razão na cabeça da Raposa Velha.  


[1] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/benfica/detalhe/giovanni-trapattoni-venco-e-volto-a-casa

[2] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/benfica/detalhe/belenenses-benfica-4-1-cronica-de-mais-um-explicavel-pesadelo-azul

Pedro Cantoneiro
Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, de opinião que o futebol é a arte suprema.

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