Apertos de mão dão-se muitos, servindo-nos mais da sua utilidade diplomática como finalizadores de conflito que da implícita cumplicidade das mãos que se abraçam. A maior demonstração de carinho numa paixoneta é o lindo momento em que se decide dar as mãos, muito mais significativo do que o primeiro beijinho. Dar as mãos, apertá-las ou segurá-las é um dos grandes sinais de evolução emocional, da capacidade de criar laços sólidos. As lontras dão as mãos para não se afastarem no dormir flutuante, os paquidermes enrolam as compridas mãozorras para soltarem amo-tes e assumirem hierarquias. O humano, inteligente mas tonto, discerniu no aperto a mesma coisa, e foi mais além – Lage, na tentativa duma reconciliação com a comunicação social, deu as mãos aos presentes na pequenita sala de imprensa, pequenita e simplória, sem balcão e com os corpos todos à mostra, expostos perante a plateia, em total atitude de proximidade e puritanismo. Lage quis mostrar que veio em paz, entregou-se completamente às análises dos contrabandistas da linguagem corporal e psicólogos de esplanada. Talvez tenha tentado mostrar que vem sem segredos, mais seguro de si próprio, mais cordial e tolerante do criticismo que o levaram um dia a insinuar que havia uma campanha feita contra ele a favor de alguém, perpretada pelos mesmos que agora receberam, com a surpresa escarrapachada no rosto, um valoroso aperto de mão. Faltará só alguém analisar um a um, como foram apertadas as mãos – se a mão de Lage por cima, querendo impôr-se à bruta, revelando a desonestidade do gesto, se com a palma para os céus, suportando gentilmente a do jornalista como Casanova recebia a de uma formosa burguesa nas danças da sedução.
Tinha razão em 2020, o tempo pôs-se do seu lado e argumentou a seu favor; Nunca, num passado recente e até Roger Schmidt, um treinador benfiquista tinha sido tão queimado a lume brando e lutado tão arduamente sobrevivência reputacional. A insistência do fantasma, a regularidade dos ataques da comunicação social, a violência dumas dúzias de adeptos – tudo sintomas da evidente falta de protecção dos de cima, que assobiaram para o lado e esperaram doze jogos para agir, depois de lhe terem dado Raúl De Tomás para substituir João Félix ou Ebuehi para servir como suplente de André Almeida, protagonizando a mais horrorosa decisão técnica dos gabinetes desde a chegada de Artur Jorge para substituir Toni no Verão de 1994. No meio dessas decisões andava Rui Costa, sem muito ver nem muito saber, como ele próprio acabaria por admitir à Justiça.
Corajosa é portanto a abordagem de Bruno Lage, ainda que difícil de digerir para os mais compreensivos da sua causa e maneira de estar – quem sempre percebeu que não tivera muitas das culpas na derrocada de 2019-20 viu, como imediata reacção, no simbólico gesto da apresentação, um rebaixar significativo perante a comunicação social, o monstro que o tinha esmagado em 2019/20 e que mastigou Roger Schmidt até à exaustão, outro alguém deixado ao abandono a partir de determinada altura, jogado às feras atiçadas sem perceber bem onde estava metido, bloqueado pelas evidentes distâncias culturais – e sem suporte algum, sem um ombro amigo que lhe apontasse o caminho e as diferenças.
Subentendida na atitude uma certa inteligência maquiavélica, já que é assim, diz-se por aí, que Rúben Amorim aninhou a seu colo os microfones de tudo o que é canal ou caneta de tudo o que é jornal, nem isso foi suficiente para convencer os mais críticos da sua figura, que preferiram focar atenções na atabalhoada preparação estética da apresentação ou nos maneirismos pouco à vontade do treinador para reforçar convicções. Os mesmos que nem sequer valorizaram a simbologia da gravata preta em fato preto, como manda a etiqueta dos cortejos fúnebres, num momento em que se pretendiam enterrar todas as quezílias do passado. Para os mais pragmáticos, Bruno Lage até poderá ser um enorme benfiquista e bom rapaz, mas o elogio acaba aí.
No imaginário geral, entraria Bruno Lage de fato vermelho berrante, de cachecol no pulso e aos gritos, a puxar para si toda a razão e a escarrapachar na cara dos jornalistas que a realidade tinha dado força às suas palavras, puxando dum A4 para relembrar todos os recordes que bateu – melhor segunda volta de sempre, melhor primeira volta de sempre (que daria, obviamente, no melhor campeonato de sempre, com 32 vitórias e 121 golos marcados nessas hipotéticas 34 jornadas), os 3,78 golos de média nos jogos de 2018/19, o rendimento de João Félix, Gabriel, Samaris, Pizzi ou Seferovic, os 5-0 ao Sporting na Supertaça, o 2-4 em Alvalade que podiam ter sido 2-8 ou a remontada no Dragão – cuspindo para o chão mal acabasse a incontável lista e saindo porta-fora para treinar, conseguindo o mesmo efeito desportivo que teve da primeira vez.
Mas Lage, que chegou a ser Treinador do Mês na Premier League, tem essa veia do cavalheiro inglês, preferindo dançar na retórica e construir pontes palavra a palavra, numa atitude que valoriza o futebol mas frustra as paixões ardentes do futebol latino. Mesmo sendo português e conhecedor da nossa realidade, talvez os valores de Lage estejam à mesma distância dos fundamentos culturais do futebol da Europa Central, ou de Roger Schmidt, da cultura regente que pediu, até quando foi possível, a contratação de Sérgio Conceição.