Rafa & Taremi | Ou morres como um herói, ou vives o suficiente para te tornares um vilão

    As despedidas de Rafa Silva, do Estádio da Luz, e de Mehdi Taremi, do Dragão, não foram surpresa para ninguém. Há muito que os dois, em final de contrato, começaram a fazer as malas do campeonato português, desejando partir rumo a novos destinos. Aos 30 e 31 anos, respetivamente, ambos sabem que esta poderá ser a última oportunidade de assinar um documento com muitos zeros por lá.

    Ao adepto, já se sabe, nem sempre pode exigir-se mais razão do que coração. Ao longo da época, não raras vezes foram questionadas as intenções de Rafa e Taremi. Mas os dois fizeram questão de, no passado domingo, começar a sair pela porta grande, com golos, emoção e os colegas à volta em sinal de respeito. Profissionais até ao fim, como, aliás, os treinadores Roger Schmidt e Sérgio Conceição sempre fizeram questão de sublinhar.

    O contraste não podia ser mais claro. Taremi despediu-se do Estádio do Dragão, frente ao Boavista, com um golo decisivo ao oitavo minuto de descontos, chorou de emoção e, no final, sempre num inglês hesitante, que cinco anos por cá não lhe chegaram para se sentir suficientemente confiante com o português, deu aos adeptos as explicações que achou que tinha de dar para a sua “deserção” a custo zero e declarou-se para toda a vida “Super Dragão”. Seria mesmo o único naquele estádio, que os verdadeiros, os da claque, tinham ficado de fora devido à investigação à rede de revenda ilegal de bilhetes alegadamente comandada pela família do líder.

    Horas antes, Rafa despedira-se do Estádio da Luz com dois golos e uma assistência na goleada do Benfica, mas não quis bater os penáltis de que a equipa beneficiou nem tão pouco falar no final – mandou Di María receber o prémio de Homem do Jogo e limitou as manifestações públicas à continência que é a imagem de marca de Pizzi, o ex-companheiro que alcançou no total de golos quando fez o seu segundo tento da tarde, e a uma reprimenda tão visível como irritada aos “No Name Boys”, a claque que, ela sim, estava presente atrás da baliza e protestava contra o treinador Roger Schmidt e o presidente Rui Costa.

    Rafa Silva Benfica
    Fonte: Carlos Silva / Bola na Rede

    Benfica e FC Porto perdem assim, a custo zero, dois dos seus melhores ativos. Muito se poderá debater sobre o que andam ou não a fazer os clubes portugueses na sua gestão, mas a tal razão mostra-nos que cada vez é mais difícil a um dos grandes da nossa realidade rivalizar com outros campeonatos a nível salarial. Ainda que, à custa destas decisões, seja a própria Liga que fica a perder. Já o coração teima em agarrar-se ao que Rafa e Taremi fizeram por cá.

    O avançado do Benfica despede-se com a melhor época em termos de números de golos e assistências (22 golos e 15 passes para golo, em 52 jogos), podendo acrescentar várias grandes exibições. Já o do FC Porto penou muito nos últimos meses, mas ainda pode tornar-se o melhor marcador portista deste século, embora com muita dificuldade (apenas resta a final da Taça de Portugal e teria de marcar três golos para ultrapassar Jackson Martínez, que faturou por 92 vezes com a camisola azul e branca).

    Estamos a falar de dois anti-heróis, um passivo e submisso, sobretudo quando inserido numa cultura que não é a dele, quem sabe se por respeito, outro ativo e revoltado, por estar num meio que conhece bem e não lhe agrada. Sempre foi assim, tanto com um como com o outro, por um conjunto de razões diversas, entre as quais as suas personalidades reservadas e sempre avessas às luzes da ribalta. Apesar de serem primeiras figuras do futebol nacional há anos, não se lhes conhecem entrevistas além das vezes em que acederam a estar nas flash-interviews após os jogos – e mesmo isso nem sempre acontece, no caso do iraniano muito por causa da proteção que o clube passou a dar-lhe quando ele começou a ser acusado com insistência de ser especialista a cavar penaltis (até houve algum atrito, após um jogo em Madrid), no caso do português aparentemente porque não há quem lhe contrarie a falta de apetite pelos momentos públicos e o faça entender que ser futebolista de alto rendimento é também isso, vender a imagem.

    As declarações de Taremi contra o regime opressor do Irão, antes do último Mundial, foram uma exceção na discrição de que o jogador sempre fez gala, provavelmente porque entendeu que aí, sim, teria legitimidade para falar e pôr de parte a timidez: era assunto dele e da sua comunidade. Igualmente tímido e reservado para o exterior, Rafa não expressa por palavras a sua visão do Mundo. Terá os companheiros com os quais se dá bem – e na última vez que foi à flash depois de ser considerado homem do jogo disse mesmo que era deles que ia “ter saudades” –, mas intervém mais pelos atos. O ato de não festejar um golo maradoniano que marcou em março de 2022, frente ao GD Estoril Praia, para falar do desconforto que sentia, o ato de renunciar à seleção para ter mais momentos de escape do futebol, que vê mesmo só como uma profissão e não tanto como uma paixão, o ato de esbracejar com os No Name Boys que contestavam treinador e presidente para lhes explicar que não é assim que ajudam a equipa…

    Mehdi Taremi pelo FC Porto
    Fonte: Filipe Oliveira/Bola na Rede

    Aos 31 anos, e mesmo tendo perdido a titularidade no FC Porto na segunda metade da época, depois de se ausentar para jogar a Taça da Ásia, nem a timidez mediática impediu Taremi de fazer um contrato com o Inter de Milão e de entrar na Serie A italiana pela porta grande, a do campeão. É possível que Sérgio Conceição tenha querido começar a preparar a equipa para o que ela iria ter de suportar no futuro, como se admite que tenha visto na ausência do iraniano a forma de resolver o paradoxo tático de que ela padecia e que levava sempre ao sacrifício de Pepê a funções que lhe reduziam o impacto desequilibrador. Conceição defendeu sempre o profissionalismo e a entrega de Taremi, negou que a sua presença no banco tivesse algo que ver com a saída a custo zero no fim da época, e a voz corrente é a de que a equipa passou até a carburar melhor sem ele.

    Foi com a saída do iraniano que os dragões passaram a jogar apenas com Evanilson como ponta-de-lança, Francisco Conceição e Galeno a partirem dos flancos, Pepê e Nico González como médios-interiores do 4x3x3 que substituiu o híbrido com o 4x4x2 que servia nos tempos de Otávio. Foi com essa formação ofensiva que o FC Porto entrou em 15 dos 24 jogos deste ano de 2024, praticamente só dela abdicando devido a lesões ou castigos.

    Desde que a estreou, na goleada no Estoril para a Taça de Portugal, a 9 de janeiro, Taremi só foi titular três vezes – nas vitórias sobre o Vitória SC, o Casa Pia e o GD Chaves –, mas, ainda que o FC Porto pareça ter encontrado uma harmonia coletiva que antes não se lhe via, que tenha goleado o Benfica e sido a equipa que causou mais dificuldades a um Sporting naquele dia taticamente despersonalizado, a ideia é duvidosa em si mesma. A 29 de dezembro, o dia da vitória sobre o GD Chaves no Dragão que marcou a última partida de Taremi antes da Taça da Ásia, o FC Porto seguia a três pontos do Sporting e fizera 34 pontos em 15 jogos. Dezanove jornadas depois, com mais 38 pontos feitos – mais quatro, mas em mais quatro jogos – os dragões estão a 18 pontos dos leões e garantiram o terceiro lugar apenas na última jornada, em Braga.

    Mehdi Taremi já foi eleito o melhor marcador da Primeira Liga
    Fonte: Diogo Cardoso / Bola na Rede

    Rafa, em contrapartida, nunca desapareceu dos onzes de Roger Schmidt. Em dois anos com o técnico alemão, que desde o início lhe deu um papel de protagonista como segundo avançado pelo corredor central, em vez de o exilar numa das alas a que este esteve condenado por todos os treinadores anteriores, o ribatejano foi titular em 95 dos 110 jogos feitos pelo Benfica. São tantos como os que fez António Silva e apenas menos um do que Nicolás Otamendi, o jogador mais vezes titular com Schmidt. Rafa marcou nestes dois anos 36 golos, claramente a melhor dupla temporada de toda a sua carreira (fizera 32 entre 2018 e 2020, com Rui Vitória, Bruno Lage e Nélson Veríssimo, mas não tivera no título de 2019 a importância que teve no de 2023). A tantos golos somou ainda 24 passes decisivos, muitas vezes fruto da sua capacidade de aceleração do jogo nas entrelinhas, nem sempre servida por uma definição e decisão perfeitas – mas a verdade é que se a velocidade a que conduz a bola fosse acompanhada por uma tomada de decisão acima da média e por uma definição ao mesmo nível, Rafa há muito teria de suportar a realidade de um futebol de ainda mais exigência mediática, porque seria uma estrela de nível global.

    Brevemente saberemos se essa aversão a tudo o que é público foi um fator ainda assim importante na definição do futuro de Rafa, um ano mais novo do que Taremi. Não se sabe ainda onde vai jogar, muito se tem falado de um contrato milionário no Catar, mas a ideia que fica é a de que ele ainda tem futebol para mais do que isso – afinal de contas, do Catar foi de onde Taremi saiu em 2019 para jogar no… Rio Ave, em busca de uma carreira relevante.

    Rafa Silva Taça da Liga
    Fonte: Carlos Silva / Bola na Rede

    A verdade é que ambos deixarão saudades nos tais adeptos que duvidaram deles, porque encaixaram perfeitamente numa já rara lista de jogadores que são muito bons para a Liga portuguesa, mas não excelentes ao ponto de dar tanto nas vistas que saem rapidamente para outros voos. Os oito anos de Rafa na Luz e quatro de Taremi no Dragão (mais um em Vila do Conde) são cada vez mais uma exceção para jogadores de alto nível e permitiram que fossem construindo uma relação com as bancadas, que atualmente são obrigadas a despedir-se de muitos ídolos precocemente.

    Finalmente, águias e dragões tiveram muito tempo para preparar estas saídas (no caso do FC Porto, as eleições e posterior não renúncia dos administradores da SAD podem atrasar o processo). O futuro dos respetivos treinadores também influenciará certamente o ataque ao mercado, mas, na hora de dizer adeus a Rafa e Taremi, dois grandes desta Liga, ambos os clubes poderão pensar neles na hora de contratar: quantos reforços virão fazer a diferença na qualidade e vestir a camisola por muitos anos, para alimentar uma relação com os adeptos que não deve ser ignorada? Veremos.

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    Raul Saraiva
    Raul Saraiva
    Jovem entusiasta e curioso, o Raúl tem 18 anos e está prestes a ingressar na Universidade. O seu objetivo é fazer jornalismo, de preferência desportivo, até porque a sua paixão pelo desporto é infindável e inigualável. Desde pequeno que o desporto faz parte da sua vida. Adora ver, falar e escrever sobre futebol, nunca fugindo às táticas envolvidas no mesmo. O desporto-rei é, assim, a sua grande paixão e o seu refúgio para escapulir nos momentos em que a sua grave doença se faz sentir. Ainda assim, também se interessa bastante por NBA, futsal, hóquei em patins, andebol, voleibol e ténis. Acredita que se aprende diariamente e que, por isso, o desporto pode ser diferente. Escreve com acordo ortográfico.