Mortífero na grande área, descreve-se como um predador à solta, em busca do golo perdido. Não falamos de Marcel Proust, mas de Rafael Lopes, também ele um incrível contador de histórias. Desta feita, o Bola na Rede entrevistou um avançado que faz jus ao nome do nosso site e vai deixando o rasto do golo pelos estádios da Polónia. Por uma hora, roubámos a atenção de um pai a caminho do terceiro golo mais importante da vida e que nos recebeu, ainda que virtualmente, de mãos pintadas e coração aberto.
– A escola varzinista e uma subida a pulso –
“Muita gente fala do Varzim porque a característica comum a todos os jogadores que de lá saem é a entrega, a raça”
Bola na Rede [BnR]: A previsão da temperatura mínima para hoje são 2ºC em Cracóvia, de onde nos falas. Se quisesse começar por aquecer o ambiente para esta entrevista, devia perguntar-te qual a sensação de jogar um Wisla vs Cracovia?
Rafael Lopes [RL]: Em relação à temperatura erraste: neste momento estou de calções de banho e estava na varanda a apanhar sol e a pintar com os miúdos [risos]. Já a temperatura no dérbi atinge os 50ºC. Não consegues estar completamente focado nos aspetos táticos do jogo, porque é mais na base das confusões, porrada… é um dérbi aceso e quente.
BnR: É comparável a outro dérbi que também já tenhas jogado?
RL: Em Portugal, talvez – mas menos, muito menos (!) – o Boavista x Porto. Muito parecido é o Omonia x APOEL; não consigo escolher qual destes tem o ambiente mais complicado.
BnR: Já regressamos à Polónia. “Um campeão já foi um dia apenas um sonhador que se recusou a desistir. Pelos adeptos”. Há exatamente um mês, escreveste esta sentença na tua página do Facebook. Por quem te recusaste a desistir quando, primeiro em Esposende e, depois na Póvoa, a bola não entrava ou o gesto técnico não saía?
RL: Por mim, principalmente. Considero-me um sobrevivente porque, desde que comecei a jogar futebol, nunca era o escolhido para ir treinar aos clubes grandes. Naquela altura, os pais de outros jogadores tinham mais conhecimentos, mas na altura nem pensava nisso. É quando chego ao futebol profissional que tenho a perceção que penso “Neste momento, sou o único daquele tempo que cheguei ao mais alto nível”.
BnR: Reconhecido como um viveiro de talentos, é no Varzim que te estreias como sénior, depois de vários anos nas camadas jovens do emblema varzinista. Como explicas o sucesso na formação de atletas deste clube?
RL: Muita gente fala do Varzim porque a característica comum a todos os jogadores que saem de lá é a entrega, a raça, o nunca desistir. Foi assim que fui formado e crescendo. Desde miúdos que é a ideia mais incutida e valorizada pelo clube. Até os extremos, que são conhecidos pelo drible, as pessoas vão dizer “aquele gajo é raçudo, não desiste”. No futebol, podes ter a maior qualidade técnica, a maior capacidade de drible, mas se não tiveres essa vontade e resiliência, muito dificilmente vais jogar ao mais alto nível.
BnR: Por falar em extremos, a tua ascensão à equipa principal do Varzim faz-se acompanhar de Salvador Agra e chegas a um plantel que já contava com Luís Neto, e ao qual se juntaria André André. Esta tríade, que viria a distribuir-se pelos grandes do nosso campeonato, já dava nas vistas na altura?
RL: Começando pelo Neto, ainda antes de eu subir a sénior, já se notava uma diferença abismal entre nós e o Luís quando o defrontávamos na Liga Intercalar. É claro que agora ficava bem eu dizer que, na altura, já sabia que ele ia ter a carreira que teve, mas não; sabia que ia triunfar e chegar ao mais alto nível.
Em relação ao Salvador, jogámos juntos quatro anos na formação, depois nos seniores do Varzim, voltámos a encontrar-nos na Académica… Temos uma história de muitos anos juntos. O Salvador é daqueles casos em que tem qualidade com a bola nos pés, mas a característica que as pessoas mais admiram nele é não desistir. Aliás, tu vês o Neto jogar e ele, que não tem aquele corpão de bicharoco, é um animal noutras coisas: se tiver de ir com a cabeça onde o outro vai com o pé, ele vai; vês o Bruno Alves: igual! É a marca do Varzim.
O André chegou em Janeiro, porque estava emprestado ao Deportivo de La Coruña B. Mais ou menos em Novembro/Dezembro, ele pediu para voltar para o Varzim e começou a jogar assim que foi possível.
BnR: Pegando nestes exemplos, e não obstante a garra e determinação que referes, transportam também outra característica para dentro de campo: o espírito de liderança.
RL: São líderes por natureza. O Neto, por exemplo, está numa fase da carreira em que podia não estar para se chatear, mas o que ele sente e a pessoa que é vem ao de cima. Quer sempre o melhor, não só para ele, mas, principalmente, para a equipa e para o clube.
BnR: Já disseste que o momento-chave para a construção da tua carreira foi a “grande época a nível individual” nos poveiros, mas coletivamente o rendimento não foi suficiente para que o Varzim se mantivesse na Segunda Liga.
RL: Sei lá, amigo… Ainda hoje penso – e se perguntares a todos os outros jogadores do plantel – “Como é que é possível termos descido de divisão? Como?”. É incrível o que a gente jogava, incrível… Muitas vezes foi falta de sorte e sofríamos golos aos 93’ a ganhar 1-0 e foram cinco ou seis vezes… se calhar, destas cinco ou seis, se tivéssemos ganho uma ou duas, não tínhamos descido. E acabámos a primeira volta em sétimo lugar!