Eusébio no Panteão: Os heróis nunca desaparecem

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    Ao longo da infância, a televisão, os livros, o cinema e a música trazem ao nosso olhar figuras que marcam a nossa vida. Seja aquela banda pela qual nós despendemos uma fortuna apenas por causa de um concerto, seja por aquele ator que tanto queríamos conhecer e pelo qual esperamos horas, enquanto crianças, em filas intermináveis de lojas apenas por um autógrafo.

    Assim é feita a vida de todos os que se deparam com um mundo cada vez mais mediatizado, feito de figuras que vemos e adoramos, mesmo que apenas as conheçamos da tela do cinema, das linhas do livro ou do som de um álbum. Para as pessoas da minha geração, falar por isso de heróis é algo tão comum que já nem sequer nos lembramos – até porque não vivíamos nesse tempo – dos momentos em que esses mesmos heróis não apareciam da mesma forma para o mundo. Ouvimos falar deles apenas nos testemunhos dos nossos pais ou avós, que passam o tempo a contar-nos que “naquele tempo é que era”. E esta é uma expressão que serve para tudo no quotidiano: se achamos que Messi e Ronaldo são os melhores jogadores de sempre, são eles que nos dizem que “naquele seu tempo, em que jogavam Pelé ou Maradona, aí é que era”.  Peguei apenas no exemplo de jogadores de futebol mas tantos outros podiam ser dados.

    Por tudo isto que vos disse, admito que não é fácil escrever este texto.  Afinal de contas, não é fácil falar ou escrever sobre algo ou alguém que não vimos. Não é fácil entrar numa discussão ou sequer poder exprimir em palavras a devoção ou a gratidão que possamos ter por uma figura que tenha marcado os tempos que ainda não eram os meus. Por isso, não é fácil para mim falar de Eusébio da Silva Ferreira. É, porventura, a par de Maradona, o jogador que sempre me criou uma desilusão enorme por nunca ter conseguido perceber se, como me dizia o meu avô, “naquele tempo é que era”. Entre todas as conversas de jardim, fui crescendo a ouvir as histórias e os relatos daquele que seria para sempre a figura maior do desporto português. Uma figura que,  a 25 de janeiro de 1942, nascia para o mundo em Lourenço Marques, Moçambique. Naquela altura, num período de ditadura fascista e de controlo colonial, Moçambique era apenas um ponto entre tantos no continente africano. Por isso, naquele dia de janeiro, ninguém adivinharia que, nos braços de Elisa Anissabeni, a mãe de Eusébio, estaria um dos homens que marcaria para sempre a história de Portugal.

    Mais de setenta anos passados, olhar para a história de Eusébio é um exercício que serve de exemplo para muitos daqueles que constantemente perseguem os seus sonhos. O bairro de Mafalala foi apenas o ponto de partida para o sonho do Pantera Negra. Por entre os campos de terra e as bolas de couro com que, descalços, os meninos brincavam nas ruas moçambicanos, despontava o jeito de Eusébio, com a sua técnica inconfundível, fruto de um pé direito que desde cedo começava a fazer maravilhas. A primeira paragem foi numa equipa moçambicana denominada por “Os Brasileiros”. Por se chamar assim, os seus jogadores tinham alcunhas correspondentes a jogadores “canarinhos” desse tempo, como Garrincha e Didi. A de Eusébio era, curiosamente, Pelé. Não terá sido, com toda a certeza, por acaso que tal nome foi-lhe colocado. A sua velocidade, aliada a uma qualidade ímpar para alguém com tão pouca idade, fazia de Eusébio um projeto de jogador que podia ter o mundo a seus pés.

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    Eusébio foi a figura maior do Benfica
    Fonte: serbenfiquista.com

    Apesar de ser benfiquista desde pequeno, a verdade é que, na passagem pela filial encarnada, o Desportivo de Lourenço Marques, Eusébio não foi bem recebido. Decidiu dar um novo rumo ao seu percurso e o próximo destino acabaria por ser o Sporting de Lourenço Marques. Dali até Alvalade, foi apenas um instante. Rapidamente os responsáveis leoninos viram que aquele era um menino que não podiam deixar fugir. Decidiram convidá-lo para treinar à experiência mas a verdade é que esse foi o primeiro momento em que o seu coração falou mais alto. Recusou o convite sportinguista e acabou por assinar contrato com o Benfica que, ao ver o interesse rival, ofereceu-lhe uma proposta que Eusébio acabou por aceitar. A 15 de dezembro de 1960, o Benfica colocou Eusébio num avião sob um nome falso (Ruth Malosso) e avisou os leões de que o jogador tinha partido para Lisboa de barco. O Sporting não desistiu, decidiu duplicar a oferta do Benfica, pagando na altura 250 contas â mãe de Eusébio. A verdade é que o Benfica acabou por esconder o rapaz de 18 anos num hotel em Lagos, evitando que ele fosse resgatado pelo rival de Alvalade. Naquele momento, e apesar do longo processo burocrático com os dois rivais, a verdade é que a assinatura de Eusébio era o compromisso para o início de uma história jamais esquecida pela nação benfiquista.

    Na altura, dezoito anos de vida já pareciam uma eternidade para Eusébio. Entrava na idade adulta e o conflito que havia “gerado” entre os maiores clubes nacionais da altura já fazia dele uma figura incontornável do futebol português. Dentro de campo, rapidamente se percebeu o porquê de toda aquela disputa por Eusébio. Mesmo num plantel em que despoletavam nomes como José Augusto, José Águas e Mário Coluna, a verdade é que já ninguém ficava indiferente ao talento do jovem moçambicano.  A estreia no Estádio da Luz remonta a 23 de maio de 1961, onde, numa partida com o Atlético, Eusébio fazia três dos quatro golos do Benfica. As peripécias que se sucederam desde a sua chegada atrasaram a assinatura do contrato, e a chegada “tardia” de Eusébio à equipa do Benfica fez com que tenha perdido a primeira das duas conquistas da Taça dos Clubes Campeões Europeus, em 1961, em Berna, na vitória dos encarnados por 3-2 contra o FC Barcelona. Por falar em conquistas europeias, apenas um ano depois o Benfica voltava a tocar o céu do futebol europeu e, numa memorável vitória por 5-2 frente ao Real Madrid, destacava-se um nome: Eusébio. Com dois golos apontados naquela noite perante o colosso espanhol – que contava com Puskas e Di Stéfano, dois dos maiores jogadores da história madrilena – o menino nascido no Bairro da Mafalala começava a mostrar ao mundo do futebol todo o seu potencial, fazendo com que a célebre revista France Football lhe tenha mesmo atribuído, em 1962, o segundo lugar na Bola d´Ouro.

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    O Pantera Negra recebeu a Bola de Ouro em 1962
    Fonte: francefootball.fr

    Falar do percurso de Eusébio é falar de vitórias. Não há volta a dar: ao serviço do Benfica e da seleção nacional, a velocidade estonteante e o potente remate faziam do número 10 benfiquista o ídolo maior de todos os portugueses. A nível coletivo, para além da vitória em 1962, destaque para os onze campeonatos e as cinco taças de Portugal ganhas ao serviço do Benfica. A nível individual, basta apenas passar os olhos por todas as distinções para saber quem era Eusébio da Silva Ferreira: foi eleito melhor jogador do mundo em 1965, vencedor de duas “Botas de Ouro” em 1968 e 1973; melhor goleador do campeonato português em sete ocasiões e duas vezes melhor marcador europeu. No verão de 1966, liderando a célebre seleção dos “magriços”, Eusébio ficaria na história da seleção nacional como a principal figura da equipa que conseguiu a melhor participação de sempre em campeonatos do mundo. Na memória de todos ficaram os dois golos que marcou na vitória por 3-1 sobre o Brasil, os quatro golos apontados na vitória por 5-3 contra a Coreia do Norte nos quartos-de-final ou as lágrimas com que deixou o relvado depois da derrota nas meias finais frente à equipa inglesa.

    E por falar em números, aquilo que indiscutivelmente mais se destaca são o número quase absurdo de golos que apontou. No total, foram 546 os golos que marcou pela seleção portuguesa e ao serviço dos clubes por que passou. Pelo Benfica, foram 473 golos em 440 jogos oficiais. Mas com os golos, veio também o calvário de alguém que foi vítima da falta de proteção que jogadores do seu talento tinham na altura. A sua carreira andou entre a glória e a dor, com seis operações ao joelho esquerdo e uma ao joelho direito. Impedido por ordem de Salazar de aceitar os inúmeros convites que lhe chegavam de Espanha e Itália, só depois de terminada a ditadura é que Eusébio saiu de Portugal, passando pelos Estados Unidos (Boston Minutemen, Las Vegas Quicksilvers e New Jersey Americans), Canadá (Toronto Blizzard) e México (Monterrey), com dois regressos pelo meio para representar Beira Mar e União de Tomar. Esta última passagem foi apenas uma breve experiência que durou até Março de 1978, após o qual regressou ao EUA.

    Em muitos dos casos, os números são algo demasiado curto para se perceber a importância de alguém. Isso indiscutivelmente acontece no caso de Eusébio. Por muitos golos, assistências e vitórias que tenha dado ao Benfica e à seleção portuguesa, a verdade é que Eusébio da Silva Ferreira sempre foi muito mais do que simples recordes no futebol. Por isso é que, depois de terminar a carreira, ele viu ser-lhe reconhecido o talento. E não podia ser de outra forma, pois foi reconhecido pelo seu Benfica, o clube que lhe deu a maior oportunidade da sua vida e o clube onde teve os melhores momentos da sua carreira. A estátua, em frente ao Estádio da Luz, é apenas o símbolo maior com que nos deparamos quando chegamos à casa benfiquista. Ali, naquela figura, Eusébio é retratado como se estivesse em campo, pronto para fazer mais um dos seus remates lendários e que tantos sorrisos deram aos portugueses no século XX.

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    Eusébio foi figura de destaque no Mundial 1966
    Fonte: imortaisdofutebol.com

    Esse é, por ventura, o maior dos créditos que pode ser dado a Eusébio. Hoje em dia, num mundo tão mediatizado, falar-se da importância de um jogador de futebol numa sociedade é sempre relativo. Na altura de Eusébio, a história era completamente diferente. Num país oprimido por uma ditadura retrógrada, Eusébio da Silva Ferreira era a figura que fazia os portugueses sonharem. No meio dos remates, dos golos, das vitórias e das alegrias que deu ao país, Eusébio era o menino que fazia um povo acreditar que era possível ter um futuro melhor. Mesmo que por breves momentos, o futebol de Eusébio ficou, nas décadas de sessenta e setenta, como uma marca que o tempo jamais conseguirá retirar da história.

    Como vos disse no início do texto, é-me difícil falar do que foi Eusébio. Não o vi jogar e não presenciei os momentos em que Eusébio mostrou o porquê de ter sido considerado pela FIFA como um dos melhores da história do futebol mundial. Ainda assim, não posso deixar de perceber, quase um ano e meio depois da sua morte, que a saudade seja enorme pela seu desaparecimento. Naquela manhã de 5 de janeiro de 2014, fui deparado com a notícia da morte de Eusébio. Vítima de paragem cardiorrespiratória, aquela noite havia sido a última da vida do Pantera Negra. Aquilo que deveria ser um domingo como outro qualquer, estava agora marcado por uma das notícias mais tristes que os amantes do futebol poderiam receber.

    A partir daquele dia, algo faltou no Benfica e no país. Por ventura, para todos aqueles que não gostam tanto de futebol, ler estas linhas será quase uma heresia. No entanto, tudo aquilo que se seguiu à triste notícia terá sido o exemplo maior daquilo que era Eusébio. As alegrias que havia dado aos adeptos em vida davam agora lugar às lágrimas. Em pleno relvado do Estádio da Luz, foram milhares os que quiseram dizer um último adeus a Eusébio da Silva Ferreira. Durante dois dias, o país parou para perceber que algo de muito importante se tinha perdido. Era Eusébio, aquele menino vindo do Bairro de Mafalala e que agora seria apenas uma recordação. Desde a igreja até ao cemitério do Lumiar, ouviram-se buzinas e aplausos na despedida ao ídolo. A chuva não demovia ninguém e vários eram os milhares que seguiam junto ao carro fúnebre, para partilharem um último momento com uma das maiores figuras de sempre de Portugal.  Mesmo que coberta com a bandeira do Benfica, a verdade é que a morte de Eusébio não foi apenas a morte de alguém do Benfica. A morte de Eusébio foi a morte de alguém que marcou para sempre o país e cujo talento quebrou toda e qualquer barreira clubística. Por isso, não foi de estranhar os inúmeros cachecóis e adeptos de equipas rivais que partilharam o momento e a dor com todos os que choravam pela morte de Eusébio.

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    A despedida a Eusébio juntou milhares no Estádio da Luz
    Fonte: globoesporte.globo.com

    Foram milhares aqueles que se aglomeram junto ao Estádio da Luz, numa primeira fase, e depois no cemitério à espera da chegada da urna. Junto à campa onde foi sepultado, os gritos de apoio ao Pantera Negra ecoaram pelo país e pelo mundo. Os aplausos foram uma constante e, por entre flores e bandeiras, a recordação de uma vida de vitórias e conquistas foi feita por todos aqueles que foram marcadas pelo talento de Eusébio da Silva Ferreira.

    Enquanto adepto de um clube rival, não tive, com toda a certeza, o mesmo sentimento que todos os benfiquistas tiveram. Obviamente que não senti da mesma forma o momento em que o hino encarnado foi tocado no relvado da Luz, com milhares de adeptos de frente perante Eusébio. Ainda assim, e tal como escrevi ao longo destas linhas, o facto de Eusébio ser apenas uma memória para mim, isso não invalida que o adeus ao Pantera Negra não tenha sido um momento que para sempre guardarei na minha memória. E é por isso que Eusébio chega ao lugar onde os maiores da história portuguesa estão: ao Panteão Nacional. Será aí a sua última morada e será o ponto de chegada de um percurso marcado pelos sonhos, pelas vitórias, pelas alegrias e pelas tristezas que marcaram a vida de um homem que foi maior do que tudo em Portugal.  E, para perceber isso, bastou ver o adeus a Eusébio para entender que, tal como dizia o meu avô, de facto, “naquele tempo é que era”. E sim, porque como Eusébio nunca haverá igual. E é por isso que a sua memória jamais será esquecida. Porque os heróis nunca desaparecem. Até sempre, Rei!

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