Março de 2020 apareceu sombrio, de nuvens carregadas e estridentes, com ventos gélidos e arrasadores. Não para todos, mas pelo menos assim o pareceu para todo futebol de formação.
Dos distritais aos campeonatos nacionais, crianças e jovens, entre os cinco anos e os 18, foram remetidos para casa, confinados entre quatro paredes. E por lá permanecem até que se lembrem deles.
Até que um raio de sol ilumine alguém que os liberte da “prisão” do século XXI e os entregue à prática desportiva ou à simples ação de “brincar”, vocábulo raro e aparentemente distante nos dias correntes.
O problema é mais sério do que se pinta. É mais profundo do que o aspeto económico dos clubes. Apesar de tudo, pesando as duas situações, parece-me mais vantajoso garantir a prática desportiva dos jovens do que permitir a presença de público na Primeira Liga nas últimas quatro jornadas. Mas já lá vamos.
O desporto vai além do momento da sua prática. Para lá dos benefícios para a saúde física, já recalcados em diversos artigos e colunas de opinião, estão os laços de amizade que se criam, as competências adquiridas ao trabalhar em grupo, o fortalecer de uma personalidade em construção e um sério contributo para a sanidade mental.
E na hora de decidir, não estão a ser tomados em conta todos os pontos de vista. Pior, não se vê uma hora de decidir. Não há prazos, não há datas limite, não há decisões. O que há são sucessivos adiamentos de competições que mais não são do que um mero empurrar de problemas com a barriga.
O que há são milhares de jovens que vêem ano e meio de formação inexistente. E desengane-se quem achar que é pior para quem é sub-17, 18 ou 19 e que vê a subida aos seniores comprometida. É igualmente grave para aqueles que começam e se vêem privados de cerca de dois anos de aprendizagem, tentativa e erro e experiência.
Ninguém crê que fosse possível passar do quinto para o sétimo ano de escolaridade sem que o sexto fosse vivido, estudado e avaliado. Mas é precisamente disso que se está à espera nos desportos coletivos de formação.
Que jogada… tudo bem feito timing, desmarcação finalização. Não é todos os dias que vemos no futebol de formação uma jogada destas 👌🏼⚽️ pic.twitter.com/AkCrciuNh2
— FARLENS® (@farlenss) March 23, 2019
No futebol, assim como no basquetebol, andebol, natação, etc., temos de estar preparados para um atraso significativo no desenvolvimento dos jovens atletas. Crianças que deviam estar a aprimorar as suas técnicas de corrida, respiração, colocação dos apoios e orientação do corpo, entre outros, vão ser atiradas para novos patamares competitivos sem que o básico esteja assimilado e bem treinado.
Cabe, uma vez mais, aos treinadores do nível “amador”, os verdadeiros impulsionadores e responsáveis pelas gerações de ouro das seleções nacionais, compreender este défice e, com paciência, dar primazia à tentativa e erro na vez do resultado imediato.
Com isto não defendo que a interrupção pudesse ser evitada. Foi necessária a certa altura, ninguém duvida, mas a formação continua esquecida. Voltará ao ativo no final, quando todas as áreas estiverem a funcionar em pleno, sem que esse fim esteja à vista.
Antes do planeamento do regresso das competições e treinos de camadas jovens prevê-se, imagine-se, público nos vários espetáculos. Reside aí o maior ponto da minha discórdia. Como pode ser mais urgente a perda de receitas para clubes profissionais do que a saúde física e mental de jovens atletas? – os mesmos que vão alimentar os plantéis dos clubes profissionais num futuro próximo.
É certo que todo o valor emocional de ter público num jogo de futebol num país onde este desporto é “Rei-Sol” tem um enorme peso, mas este não foi o único desporto afetado, tão pouco o único setor de atividade com perdas de receitas.
Adiar o planeamento do regresso da formação é alimentar o sedentarismo, ansiedade, problemas de relacionamento pessoal e muito mais, em idades tão precoces. Se nada disto for bem acautelado, não haverá raio de sol que dissipe a escuridão que março de 2020 trouxe às centenas de complexos desportivos, piscinas e pavilhões espalhados pelo país.