Não era uma questão de se, era uma questão de quando | GD Estoril Praia 4-0 Casa Pia AC

    Os talentos mais criativos estão concentrados no onze do Estoril Praia e, quando assim é, as vitórias chegam. A má fase do Estoril Praia tinha um problema bastante óbvio: a desorganização defensiva. Mas a solução também o era: tornar a equipa mais sólida atrás e, simultaneamente, conseguir ter mais vezes a bola diminuindo a exposição defensiva e a quantidade de tempo passada a defender.

    Álvaro Pacheco começou a resolver este problema e Vasco Seabra não ignorou o trabalho do antecessor. Manteve a estrutura com três centrais para permitir maior proteção no espaço central e foi capaz de continuar a meter o Estoril Praia a jogar bem à bola. Desde o início do campeonato que, entre as derrotas, os golos sofridos e as frustrações, se reconheceu o enorme potencial que estava no clube da Linha. Só era preciso uma coisa: ter resultados.

    E, em matéria de resultados, o futebol não tem muito a enganar. Tendo um processo consolidado, os resultados têm maior probabilidade de aparecer. No caso do Estoril demorou algum tempo, mas as duas vitórias categóricas consecutivas (uma por ser no Estádio do Dragão, a outra por ser um 4-0) provam que o processo está a dar frutos. Resta colhê-los. Nunca foi uma questão de se. Só de quando,

    Não há muitas equipas com a concentração de talento do Estoril Praia se restringirmos esta análise ao momento ofensivo. Mesmo os centrais têm na capacidade de sair a jogar. A Bernardo Vital e a Pedro Álvaro podem ser apontadas algumas lacunas no processo defensivo – principalmente ao segundo – no posicionamento ou na abordagem a certos lances, mas não há grande coisa a dizer sobre o jogo de pés. Atraem a pressão, conseguem ler o jogo e executam bem. A estes junta-se Volnei que, à direita, funciona com maior liberdade para se aventurar em conduções, não tivesse já experiência como lateral.

    À sua frente joga o jogador revelação da Liga Portugal e a dupla que melhor futebol pratica nos corredores direitos em Portugal. Rodrigo Gomes, um extremo que se descobriu lateral (ou ala, neste sistema) e Rafik Guitane, um criativo com pinta de génio que ganha liberdade posicional. Rodrigo Gomes acelera, parte de trás para a frente e chega com agressividade a zonas avançadas. Arrisca no remate, ousa na definição e sabe aventurar-se por zonas interiores (o terceiro golo diante do Casa Pia é um exemplo). É uma locomotiva a ser trabalhada para voos mais altos.

    Complementa-se na perfeição com Rafik Guitane, um criativo puro a quem o 10 nas costas assenta na perfeição. Cola a bola ao pé e convida os adversários para a tirarem com o sorriso atrevido de quem sabe que parte em vantagem. Cria espaço para os colegas aproveitarem – e Rodrigo agradece – e atrai sobre si todas as atenções. Desde os meninos nas bancadas que gritam a cada lance de Guitane aos adversários atordoados e que se vêm tentados a trocar posicionamentos, apoios e abordagens defensivas por rezas e lamentações. Guitane tem nos pés a descendência do Norte de África numa maneira tão pura de encarar a arte do drible.

    Um vai por fora, o outro por dentro quando os adversários estão a mais. Quando só vêm um pela frente, atacam-no pelos dois lados e passam tipo manteiga. Dupond & Dupont no Tintin, Remy & Linguini no Ratatouille, Rodrigo e Rafik no Estoril Praia. Os dois talentos que brilham nos canarinhos de Lisboa têm todo o ar de quem vai apaixonar miúdos e graúdos. Tirando todos aqueles que os tiverem pela frente. Que o diga Leonardo Lelo.

    À esquerda a dinâmica é mais previsível com Tiago Araújo a ocupar-se do corredor e a libertar João Marques para jogar por dentro. Junta-se a Guitane e formam uma espécie de quadrado no meio-campo capaz de gerar vantagem numérica com facilidade e, especialmente vantagem técnica. O médio do Estoril joga a partir de uma faixa, mas continua a ser médio. Chega à área com facilidade, mas é nas associações que se destaca. Só não joga mais atrás porque o metro quadrado está caro. Não é só no centro de Lisboa que um T2 disparou. No centro do relvado do António Coimbra da Mota também.

    Jordan Holsgrove é um tratado com a bola nos pés. Tê-lo de novo em Portugal é um privilégio. Os pés são só a terceira parte do corpo que ativa. Primeiro usa a cabeça para mapear o espaço e traçar o raio-x do que o rodeia. Em segundo levanta a mão para pedir a bola. Em terceiro recebe a bola com os pés. É assim que Holsgrove se sente feliz. Toca com simplicidade e mete a bola a rolar com mestria. Varia a construção consoante o que o jogo pede, movimenta-se ao redor da bola e tem uma qualidade no passe absurda. Quer no passe para o colega, quer no passe para a baliza. Esteve perto de marcar de livre direto pela segunda jornada consecutiva, mas a trave preferiu que fosse só uma assistência.

    Ao seu lado joga outro miúdo que joga com a pureza que a idade assim o exige, mas com a convicção de quem sabe os segredos do jogo. É evidente a capacidade de Mateus Fernandes ler o jogo e identificar a melhor ação. Quase sempre lateralizar à esquerda para fugir à pressão, receber a bola de frente e respirar. Dar um segundo de pausa antes de aproveitar o caos que criou na teia da pressão do adversário para acelerar, romper em velocidade e ganhar metros ou amarelos (e no fim os amarelos).

    Mateus Fernandes com a camisola do Estoril
    Fonte: GD Estoril Praia

    A diferença entre Alejandro Marqués e Cassiano é enorme. Partilham o símbolo ao peito, a posição e a importância no modelo de jogo de Vasco Seabra, permitindo ao técnico adaptar o perfil do jogador mediante o desafio. Marqués tem outro perfume técnico num futebol mais associativo. Oferece-se como apoio e, se não tiver a bola, executa o contramovimento para receber nas costas do defesa que atraiu. Seja bem-vindo 3º golo mais madrugador da Liga nesta temporada. Cassiano tem outra estampa física e agressividade nos duelos. Tão diferentes e tão iguais em importância.

    Não se podem analisar equipas ou jogos sem ter em conta o adversário. Mas há dias e dias e neste o Estoril foi sem dúvida superior e a melhor equipa. O Casa Pia teve momentos em que pareceu estar a aproximar-se, mas foram tão poucos e tão efémeros que não chegaram para assustar verdadeiramente o Estoril Praia que, finalmente está a somar três pontos. Porque tal como os golos ou as batatas fritas, as vitórias também são melhores quando aparecem como ketchup. Não nos podemos é esquecer que a semente e o tomate já são sinal da existência do ketchup.

    BnR na CONFERÊNCIA DE IMPRENSA

    Bnr: Mateus Fernandes lateralizou muitas vezes à esquerda para poder respirar com bola, ver o jogo de frente e poder acelerar ganhando faltas ou conquistando metros. É trabalho de treinador ou é perceção do jogador dentro de campo?

    Vasco Seabra: Foi trabalho coletivo. Um momento que encontrámos para conseguir desbloquear a pressão do Casa Pia, com uma construção que permitisse ao Mateus ganhar esse espaço para encontrar a seguir o Rafik e o João Marques que estavam por dentro e podermos atrair a esse espaço, fixando os nossos laterais para poder prender e soltar jogadores entrelinhas para encontrar o homem livre e, depois aí, acelerar. Foi essa a intencionalidade com a qualidade que o Mateus consegue oferecer ao jogo porque consegue perceber os timings em que entra, em que se esconde atrás da pressão e em que acelera porque depois consegue bater essa pressão e ganhar metros. Acho que isso é trabalho do jogador e é naturalmente importante que a dinâmica coletiva favoreça a qualidade individual.

    BnR: O Estoril Praia conseguiu bater muitas vezes a pressão do Casa Pia e colocar os médios de frente para o jogo, especialmente na primeira parte. O que falhou?

    Filipe Martins: A nossa abordagem defensiva ao jogo não foi boa. Não encaixámos naquilo que foi a dinâmica do Estoril Praia que baixou muita gente, inclusivamente os médios aos corredores. Na segunda parte com a subida do Zolotic acabámos por melhorar a pressão, a equilibrar e a recuperar mais bolas à frente. Mas volto a dizer, o terceiro golo acaba por sentenciar a partida.

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