Lisboa, 10 de Abril de 1974. O Sporting está nas meias-finais da Taça das Taças e recebe o Magdeburgo, da República Democrática Alemã (RDA), vulgo Alemanha Oriental. Três dias antes os leões tinham batido o V. Setúbal em Alvalade por 4-2 e carimbado o acesso aos oitavos-de-final da Taça, mas entretanto o goleador Héctor Yazalde, que já ia com 41 golos apontados só no campeonato (acabaria com 46, recorde absoluto em Portugal), lesionou-se e falhou o jogo europeu. Sem o seu artilheiro, o Sporting sofreu um golo e mostrou algumas dificuldades em concretizar. Só o cabeceamento certeiro de Manaca, a 15 minutos do fim, impediu que o clube de Alvalade fosse à RDA em desvantagem. De qualquer forma, o empate 1-1 já não augurava nada de bom.
No entanto, apesar deste resultado, a época desportiva do Sporting ia de vento em popa: 1º lugar no campeonato (que nem a derrota por 3-5 em Alvalade com o Benfica modificou), boa campanha na Taça e presença numas meias-finais europeias, ainda com a perspectiva de chegar à final. A situação política do país, contudo, era mais turbulenta. No dia 16 de Março, alguns militares promoveram uma tentativa falhada de golpe de Estado, que ficou conhecida como Intentona das Caldas. O regime de Marcello Caetano estava em alerta constante mas, ao mesmo tempo, confiante de que os militares revoltosos tão cedo não tentariam outra operação do género devido ao fracasso recente.
Foi neste ambiente tenso e indefinido, aliás, que se viveu o Sporting-Benfica a que já aludimos, disputado a 31 de Março. Depois do golpe frustrado, Marcello Caetano achou necessário “medir o pulso” ao povo que governava. Nada melhor do que o futebol e, concretamente, o maior derby de Portugal, para testar a sua popularidade junto das massas e mostrar aos revoltosos que o povo estava com ele. E qual foi a reacção dos adeptos quando viram que o Presidente do Conselho, a menos de um mês de deixar de o ser, assomou à tribuna acompanhado de João Rocha e Borges Coutinho, presidentes dos dois maiores clubes de Lisboa? Viraram-se na direcção da bancada presidencial, bateram palmas e aclamaram o sucessor de Salazar. Pode por isso dizer-se que foi no Estádio José Alvalade que teve lugar a última grande vitória do antigo regime.
Nas palavras de Otelo Saraiva de Carvalho, um dos oficiais que comandaram a Revolução de Abril: “Pensei com os meus botões, «caraças pá! Então estamos nós aqui a trabalhar convencidos de que vamos ter um intenso apoio popular que vai derrubar o governo, e o Marcello tem uma ovação destas». Ficámos preocupados (…). Mais tarde chegámos à conclusão de que aquilo foi só fogo de vista. A malta que lhe bateu palmas naquele dia era capaz de lhe cuspir em cima no dia seguinte”. E a Intentona das Caldas, que tinha ocorrido semanas antes e por sinal coincidiu com o dia do jogo entre leões e dragões? Palavra de João Rocha: “na manhã do jogo vinham os tipos das Caldas, e disse aos responsáveis do Exército que não se fazia uma revolução num dia de Sporting-Porto”.
Voltando ao percurso leonino na Taça das Taças de 1973/74, importa dizer que Yazalde continuava lesionado e não seguiu viagem para a RDA, onde a 24 de Abril se jogaria o acesso à final. Os leões, treinados por Mário Lino, entraram mal e aos 10 minutos já perdiam por 2-0. A 12 minutos do fim, Marinho reduziu e devolveu a esperança ao Sporting, mas Tomé falhou à boca da baliza o golo tão ansiado. Desta forma, o Sporting terminava a sua caminhada europeia às portas da final, onde os alemães venceriam o Milan por 2-0. Mas o último apito do árbitro foi apenas o início de uma verdadeira odisseia, uma vez que, em Portugal, faltavam poucas horas para a queda do regime de Marcello Caetano – o mesmo que tinha sido ovacionado semanas antes num Sporting-Benfica.
Com viagem marcada para o dia 25, a comitiva leonina acordou às 4h30 da manhã, pouco mais de quatro horas depois de Grândola, Vila Morena, de José Afonso, ter passado na Rádio Renascença, anunciando dessa forma aos militares que a Revolução estava em marcha. A equipa do Sporting soube do golpe de Estado ainda na RDA, quando chegou ao posto fronteiriço para entrar em Berlim Ocidental (enclave situado em plena RDA mas pertencente à República Federal Alemã, RFA). “Houve uma revolução em Lisboa e está a alastrar por todo o país”, era o que diziam os funcionários do posto. De Berlim voaram para Frankfurt, onde constataram que todos os voos para a capital portuguesa tinham sido cancelados. Foi, portanto, necessário recorrer a um plano B para levar a comitiva de volta a casa.
Para a equipa do Sporting era uma incógnita o que se passava no país, e chegou a haver momentos de tensão quando surgiu o rumor de que havia milhares de mortos e feridos. A preocupação, no entanto, esbateu-se por momentos quando um dos acompanhantes da comitiva, ao ouvir esses relatos, teve a presença de espírito e o sentido de humor suficientes para atirar um “porra… e eu que deixei o carro na Baixa”. João Rocha conseguiu contornar o problema marcando à última hora um voo para Madrid, de onde todos partiriam depois de autocarro até Badajoz. Mas como, devido à situação política, as fronteiras portuguesas estavam fechadas, a comitiva teve de esperar cerca de 40 horas em território espanhol. A esta contrariedade acresceu o facto de os hotéis de Badajoz estarem sobrelotados, pelo que alguns jogadores tiveram de dormir no autocarro. A situação só se resolveu quando João Rocha conseguiu contactar com oficiais do Movimento das Forças Armadas – alguns relatos mencionam mesmo o próprio general Spínola – que permitiram à equipa do Sporting rumar finalmente a Lisboa, já na manhã do dia 26. Era o fim da odisseia. Nas palavras do luso-brasileiro Joaquim Rocha, à época jogador leonino, “uma viagem destas não vem na Bíblia!”.
Portugal entrava, assim, num período revolucionário que foi conhecendo momentos de maior ou menor fulgor, mas que só teve fim a 25 de Novembro de 1975, mais de um ano e meio depois. O Sporting, por seu turno, acabou a época em grande, vencendo os três jogos que faltavam até ao fim do campeonato e conquistando ainda a Taça de Portugal, frente ao Benfica. Os leões fizeram a dobradinha e tornaram-se no primeiro clube português a vencer uma competição em liberdade – ou, neste caso, duas – provando que não se deixaram afectar nem pela eliminação europeia nem pela odisseia germano-espanhola. A época de 1973/74 foi, portanto, recheada de acontecimentos para o emblema verde-e-branco, incluindo esse dia de fins de Abril em que, sem o saberem, jogadores e dirigentes deixaram eternamente para trás um Portugal ditatorial, regressando depois a um país em mudança e onde tudo parecia possível.
Foto de capa: sporting.footballhome.net
Fontes consultadas:
– Almanaque do Sporting
– Estórias de Alvalade
– 50 Anos a Rugir na Europa
– depoimento gentilmente cedido pelo ex-jogador do Sporting Fernando Tomé, que viveu os factos aqui relatados, e a quem agradeço