Perdidos no Tempo: Os últimos truques de Matigol

No Colo Colo, Matías corria como o vento, galopava e tirava adversários da frente como quem respirava. Transportava a bola com carinho e frenesim e desde cedo embasbacou a América do Sul com o seu futebol. Foi aplaudido em direto por um comentador e nas palavras de um outro: “el 14 de los blancos és un crá” e assim se imortalizou uma daquelas alcunhas a que todos os jogadores sul-americanos têm direito. Tinha o continente a seus mágicos pés.

Foi nomeado o melhor futebolista da América em 2006 e 112 jogos, 57 golos e 28 assistências depois, o “velho continente” chamou por Mati, como é carinhosamente tratado. Aqui já com honras de Matigol, um nome muito mais futbolero. O internacional chileno rumou assim ao Villareal CF. A mudança para a Europa e as constantes lesões – que não o iriam largar ao longo da sua carreira – ofereceram-nos um Matías que pôs de parte as corridas desenfreadas para ser um «dez» cerebral, com mais pausa, mas que mantinha a sua cristalina técnica intacta. Tal e qual como se deu a conhecer também em Alvalade.

O chileno não andava, não corria, tinha uma marcha própria e cambaleava de forma estranha. Porém, esse seu andar desengonçado desaparecia quando tinha a bola em seus pés. Com ela, Matías transformava-se num bailarino gracioso, de passada elegante e movimentos de fino recorte técnico. A bola é a sua cara metade, com ela e dando bom uso às suas arqueadas “canetas”, Matías escrevia os mais apaixonantes e musicados versos à flor da relva, dignos de um Pablo Neruda, também ele um extraordinário poeta chileno.

Esse dueto com a bola principiava uma série de movimentos hipnotizantes, tanto para a bancada como para os adversários. Desde a mudança de ritmo e o drible enleante ao esguio serpentear sem pressa mas eficaz. São vários os recursos técnicos na algibeira do chileno e todos eles se unem pelas suas execuções exímias. A ligação pensamento-ação de Mati está somente ao alcance dos predestinados dignos de ostentar um dez imaginário nas costas. A maior agilidade e rapidez do chileno acontece sobre os seus ombros, os pés são só meras ferramentas.

A bola é que deve correr pelo relvado fora, não é? E como corria a danada com Matías… Visão de jogo, capacidade de decisão, assistências em catadupa… Um mestre na arte do último passe, aquele que assina a sentença dos adversários. Esse é Matías Fernández. Geralmente, generoso mas não raras vezes exercia o auto-passe como um dos seus recursos preferidos.

Como muitos outros criativos, ofereceu à expressão brasileira “passe de mágica” um significado mais futebolístico, sem necessidade de envergar qualquer cartola ou varinha mágica para além do seu respetivo equipamento. A forma como pausava ou acelerava o jogo, consoante a sua real gana, mostra que não é por acaso que os sul-americanos denominam essa função como “volante creativo” e Mati sabia, sem dúvida, o que fazer quando ao volante de qualquer equipa.

Sob a batuta destes “magos”, os passes e as fintas também se festejam e o futebol eleva-se a uma das mais belas artes. “El crá” deixa-nos uma extensa videoteca repleta de magia, onde o seu toque destro faz a bola desaparecer e reaparecer a seu bel-prazer e para regozijo da plateia. O leque de truques é vasto: aos, aparentemente, simples domínios, receções e primeiros toques, Matías acrescenta-lhes bamboleantes fintas de corpo que iludem os adversários sem que tenha de aconchegar a redondinha com o seu carinhoso toque.

Ainda assim, o espetáculo não acaba por aí. A antologia de exímias letras ou rabonas, a coleção das sempre sublimes roletas e ainda os túneis, a milenar arte e máxima humilhação permitida com uma bola, todas são especialidades de Mati. O chileno sempre foi difícil de parar para os seus adversários, para nós, simples admiradores de bancada, o difícil é não gostar de Matías Fernández.

Curiosamente, mesmo quando a bola e Matigol – aqui mais do que nunca – estão parados, o alerta de perigo iminente continua elevado. Seja em que zona do relvado, sabemos que a bola sairá ainda mais redonda do pé abençoado do chileno. A sua meia distância já ofereceu vários golos para emoldurar, sobretudo quando falamos de livres diretos. Quando em jeito, a bola chega a descrever curvas tão perfeitas só equivalentes às suas imperfeitas pernas arqueadas. Quando é necessário chutar “a romper”, Matías troca o veludo pela potência, já a classe, essa não é negociável.

A última vez que Matías pisou Alvalade representava o conjunto viola da ACF Fiorentina
Fonte: Sporting CP

A faceta de lesionado crónico também é difícil de descolar do espetacular médio, o que muitas vezes lhe retirou espaço e regularidade nas várias equipas que representou. No Villareal CF, somou 91 jogos, sete golos e 15 assistências; na ACF Fiorentina totalizou 131 jogos, sete golos e 20 assistências e na sua passagem fugaz pelo AC Milan, perfez 13 partidas, nas quais marcou um único golo e fez duas assistências. A tudo isso, acrescenta-se o seu desvanecimento contínuo, ao longo dos anos, para longe dos grandes palcos europeus.

Ainda assim, Portugal foi testemunha de uma das melhores versões do chileno, tanto a nível de regularidade como de números: 116 partidas de leão ao peito, entre as quais balançou as redes por 19 vezes e distribuiu 18 assistências. No Sporting CP ficou, desde logo, gravado nos verdes corações, ainda que tenha feito parte do clube num período estruturalmente muito complicado, o que por sua vez enaltece de sobremaneira o seu impacto positivo.

Depois do ato vil e imperdoável de vender Matías ao desbarato, paira então, em Alvalade, a tão nossa saudade do seu talento e as simples recordações de todos os lances que nos fizeram levantar da cadeira para o aplaudir, porque nós sabemos que a magia não tem preço. Todavia, torna-se inevitável não fazer a amarga pergunta: até onde poderia ter chegado o talento do chileno?

No fundo, “el crá” personifica todo aquele romantismo lamechas que nós, os adoradores da bola, não dispensamos, porque verdade seja dita, o futebol desperta as paixões mais sinceras, duradouras, fiéis e enfim, loucas e desviadas da Razão, tal como são as verdadeiras paixões. As relações quase platónicas que entrelaçam a bancada e os onze que carregam o símbolo ao peito, são uma evidência e Matías é alvo de uma dessas ardentes paixões coletivas.

Infelizmente, esta é uma relação com o prazo de validade à vista, o qual se aproxima a passos agigantados. Quiçá por isso, ao longo do texto, não me decido entre o uso do passado ou do presente, talvez numa egoísta e vã tentativa de fazer com que a magia de Matías Fernández dure um pouco mais…

Doravante, resta-nos aproveitar, atentamente, os últimos truques do mago chileno, já bem longe daqui, e posteriormente vê-lo a sair de cena bem à sua maneira: silenciosamente mas de sorriso nos lábios, com certeza.

Foto de Capa: Junior Barranquilla

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Xavier Costa
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Amante de desporto em geral mas desde cedo o futebol fez parte da sua vida. Estudante de jornalismo movido por uma curiosidade desmedida e com o sonho de chegar ao jornalismo desportivo. Apaixonado pelo futebol na sua essência e sempre interessado em pensar o jogo e em refletir sobre o fenómeno em si. Num jogo que tantas emoções desperta, nada melhor que palavras para as exprimir, assim o gosto pela escrita e a paixão pelo futebol fundem-se num só.                                                                                                                                                 O Xavier escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.

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