Força da Tática | A arte de competir independentemente do desfecho do FC Porto de Sérgio Conceição

    Há várias maneiras de cair, mas na Europa o FC Porto de Sérgio Conceição parece só conhecer uma: a de cair de pé. São muito poucos os jogos em competições europeias em que os dragões, num passado recente, foram amplamente superados e não deram luta. A derrota nas grandes penalidades diante de um Arsenal que lidera a Premier League e que está no seu melhor desde que o lendário Arsène Wenger deixou o clube apresenta um cruel retrato da realidade. As marcas a 11 metros da baliza não olham a competitividade, a superioridade ou a tudo o que, durante 210 minutos se fez em campo. Infelizmente, pelo menos para o FC Porto de Sérgio Conceição.

    Depois da vitória conquistada no Dragão, o FC Porto sabia que estava em vantagem para a segunda eliminatória. Wenderson Galeno traduziu, num remate absolutamente fantástico, duas partes de domínio e competência defensiva e obrigou o Arsenal a adotar uma outra postura em Londres. Os gunners reforçaram o meio-campo com Jorginho a entrar no onze e apresentaram-se em campo com outra postura. Mesmo assim, o FC Porto foi competitivo, só sofreu num momento de pura magia e conseguiu levar o jogo para as grandes penalidades. Já se sabe que estas são madrastas e, dois dos principais destaques dos azuis e brancos ao longo da eliminatória acabaram por passar de bestiais a ligeiramente menos bestiais. Não há lugar a críticas individuais depois de exibições como estas que continuam a elevar o estatuto do FC Porto como competidor nas competições da UEFA e o de Sérgio Conceição como um dos grandes estrategistas do futebol europeu

    As adaptações do FC Porto ao Arsenal

    Sem perder a identidade, o FC Porto consegue ser camaleónico através de adaptações e nuances táticas que permitem condicionar os pontos fortes do adversário. Contra o Arsenal, os encaixes individuais no meio-campo conseguiram retirar o habitual conforto dos homens de Mikel Arteta na construção.

    Tal como era previsível (e provavelmente um dos erros identificados pelo treinador do Arsenal na primeira mão), Mikel Arteta reforçou o meio-campo com Jorginho, um jogador com capacidade de jogar sob pressão, de traçar linhas de passe interiores e de lançar com alta precisão. Face a esta mudança, o FC Porto respondeu com um reforço do meio-campo, não a nível de nomes, mas do seu posicionamento em campo. Ao invés de ser Pepê, elemento mais avançado do miolo dos dragões, a marcar Jorginho, era Alan Varela quem saltava para condicionar o italiano. Pela capacidade de recuperação em transição defensiva, de ocupar o espaço e agressividade nos duelos, o argentino conseguiu condicionar o médio do Arsenal que, sem a liberdade para fazer o jogo desenrolar, perdeu influência.

    Nico González ficou responsável por tentar impedir a bola de entrar em Martin Odegaard, quase sempre procurando cortar a linha de passe e não numa marcação cerrada, mas o principal duelo foi, porventura, o mais imprevisível. Pepê a impedir Declan Rice de funcionar como box-to-box, mordendo os calcanhares do médio do Arsenal e cortando-lhe toda a capacidade de progressão no terreno e de pisar a entrada da área. Foi obrigado a um sacrifício e a inúmeros vaivéns para impedir Declan Rice, que se tem destacado nesta função, de criar superioridade quer quando assumia um posicionamento mais baixo, quer quando estava enfiado em cima da área do FC Porto. Não será o jogo mais valorizado de Pepê, mas é um jogo que valoriza o jogador e o treinador que, colocando um jogador com um baixo centro de gravidade e muita agilidade a marcar o médio do Arsenal, nunca o deixou ter liberdade.

    Além do duelo individual entre Declan Rice e Pepê, há outro que marcou a segunda mão da eliminatória. Wendell foi convocado para a seleção brasileira e mostrou perante um dos mais fortes jogadores do mundo no 1X1 que o fez por merecer. Não são muitos os laterais que se podem orgulhar de ter reduzido de tal maneira a influência de Bukayo Saka. Embora mais agitador em Londres, o extremo do Arsenal, que mesmo assim apresentou alguns lances diferenciados, perdeu vários duelos com Wendell que foi um dos nomes em maior destaque dos dragões em ambos os jogos.

    Pepe FC Porto
    Fonte: FC Porto

    Os méritos do FC Porto com bola

    Além da estratégia defensiva bem montada, o FC Porto preparou o jogo com bola. Diogo Costa, mesmo sendo guarda-redes, foi um dos protagonistas pela influência na saída de bola dos dragões. Pelo conforto com os pés, é um guarda-redes que dá outros recursos aos azuis e branco. Temporiza o passe, resiste aos assobios e espera por uma decisão do avançado (entre pressionar ou deixar jogar) para tomar uma decisão. Faltou, noutros momentos, outro discernimento na procura de um jogo mais direto. O FC Porto optou por procurar constantemente uma bola mais longa à procura de um duelo no corredor ou de uma segunda bola, mas teve sempre mais sucesso quando conseguiu atrair a pressão através de uma curta sequência de passes curtos, obrigando os médios a subir, para depois procurar colocar a bola na frente. Atrair os médios era fundamental para abrir espaços para atacar a segunda bola.

    Além das bolas despejadas por Diogo Costa, também Otávio – claramente um dos elementos fundamentais no jogo – procurou colocar a bola longa na frente. Os dois elementos mais avançados no 4-2-2-2 sem bola do Arsenal, Kai Havertz e Martin Odegaard, fechavam as linhas de passe interiores e os dois centrais do FC Porto abriam, jogando perto da linha lateral onde podiam receber sem pressão. Principalmente à esquerda, lado preferido do FC Porto na saída, Otávio recebia a bola e Wendell movimentava-se procurando fugir para dentro, arrastar Bukayo Saka e permitir a Wenderson Galeno só ter um adversário pela frente, ou projetar-se e abrir espaço no corredor central para Evanilson. Os passes falhados por Otávio não demonstram pouca qualidade, mas sim uma opção estratégica. Só não resultou tão bem porque Wenderson Galeno não esteve num dia endiabrado e porque Evanilson é muito mais forte com bola no chão, em apoios frontais e em apoio do que como referência a receber bolas diretas e a ter de segurar.

    Por dentro, quando o FC Porto conseguiu sair, Nico González foi regista. Lê o jogo, coloca a bola entrelinhas e tira adversários do caminho. Conseguiu sempre levar a bola com qualidade aos colegas e permitir associações. Sempre que os dragões conseguiram ligar por dentro, destacaram-se duas ligações: Pepê-Evanilson e Francisco Conceição-João Mário. Não tiveram muitas oportunidades para brilharem, mas sempre que o conseguiram fazer elevaram o jogo de patamar. Por estar tão recuado na marcação a Declan Rice, Pepê arrancou constantemente de trás para a frente e com espaço para decidir (nem sempre bem). Conseguiu combinar com Evanilson – transformado num homem de área, com sentido notável de baliza – e criar perigo. À direita e numa altura em que se fala tanto em coligações, João Mário e Francisco Conceição dão o exemplo. O lateral passa por fora e cria espaço ao extremo para definir. Tem, em todos os jogos, pelo menos dois ou três lances que podem definir.

    Arsenal x FC Porto
    Fonte: FC Porto

    A anatomia do golo do Arsenal

    Sem ter criado grandes oportunidades, o golo do Arsenal evidenciou alguns dos destaques dos gunners tanto a nível técnico como a nível tático. Não estava a ser frequente ver Ben White por dentro ao lado de Jorginho, mas no lance do golo o deslocamento do lateral aconteceu. Não foi propriamente decisivo no golo ou originou o golo, mas teve impacto. Com Ben White a aparecer por dentro, Evanilson era obrigado a cortar a linha de passe para o inglês, algo bastante evidente na segunda parte, quando o movimento se repetiu vezes e vezes. Não acontecendo ou demorando um segundo a mais, o Arsenal conseguia respirar.

    Com Bem White por dentro, Jorginho conseguiu receber e ter espaço e tempo para lançar. Novamente, não foi fator decisivo, mas sim a demonstração de uma das principais forças do Arsenal na temporada. A outra é Martin Odegaard, o principal responsável pelo golo dos gunners. Tem de estar na discussão para melhor médio do mundo e encontrou no Arsenal o ecossistema perfeito para ser protagonista.

    Recebe por fora dos médios, para se enquadrar e combinar com o extremo. Não conseguindo combinar com Bukayo Saka, Martin Odegaard flutuou por dentro e a jogada foi-se construindo até chegar ao lado esquerdo. No jogo do Arsenal, os extremos raramente recebem a bola parados. Estão constantemente em movimento, atacando o passe de fora para dentro para receber a bola já em movimento e não terem de arrancar. Martin Odegaard lançou um feitiço sobre a bola, traçou-lhe as coordenadas e retirou quatro jogadores da jogada. Recebendo a bola em movimento, Trossard só teve de definir. A qualidade individual e coletiva do Arsenal só dá mais mérito à exibição do FC Porto.

    Sangue, suor e lágrimas, nesta ordem

    Quão longe é possível ir por uma bola? Pepe aos 41 anos continua a responder. Já está longe nos índices físicos de outrora e tem acumulado algumas abordagens erradas na temporada, mas continua a viver o jogo como poucos. O lance em que embate com um estrondo na trave para tirar uma bola da cabeça de Kai Havertz não se traduziu em sangue, mas é exemplo do espírito competitivo de Pepe. Não resultou numa ferida exposta nem num banho de sangue, mas ninguém duvida de que, se tal fosse necessário, aconteceria.

    O FC Porto joga a um ritmo diferente do Arsenal semanalmente. É impossível comparar a intensidade da Premier League com a Liga Portuguesa. Os últimos trinta minutos de jogo apresentaram-se como Evereste a escalar, mas o FC Porto foi competente. Defendeu-se num bloco mais baixo, muitas vezes num declarado 4-5-1, foi refrescando peças e ganhando cada vez mais conforto e capacidade de perturbar o Arsenal. Mentalmente, o prolongamento foi em crescendo e dentro de campo notou-se. Pelo cansaço acumulado e pela sensação de penáltis, não houve a mesma capacidade para sair e ameaçar ofensivo. As grandes penalidades eram objetivo claro em 120 minutos em que ficou muito suor em campo.

    Por fim, apareceram as lágrimas. David Raya foi gigantesco em duas grandes penalidades e, se em Portugal fica mal batido no golaço de Galeno (com um posicionamento diferente tinha condições para atacar a bola), é o nome mais óbvio da vitória do Arsenal. Wendell e Wenderson Galeno comprovaram a teoria de Ícaro e mostraram que, mesmo os nomes mais sonantes da eliminatória, podem vacilar. Foram dos que fizeram para merecer outro resultado.

    Sérgio Conceição voltou a revelar-se um estratega de alto nível e banalizou um Arsenal que está a ser dos melhores clubes na temporada (continua sem dar garantias em competições a eliminar). O FC Porto tem a chegada à próxima Liga dos Campeões (obrigado a chegar ao segundo lugar) e a Taça de Portugal como objetivos de uma temporada que nem está a ser de grande nível. A praia dos dragões continua a ser a Liga dos Campeões onde Sérgio Conceição tem o cenário perfeito para se destacar. É obrigatório voltar agora o foco para o plano interno.

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