Recordar é Viver: Carlos Gomes, o homem mais livre

Difícil é para nós, crianças do Portugal livre e Europeu, imaginar sobreviver sem os direitos democráticos que para os nossos avós não passavam de mordomias e luxos. Mais difícil será, para estas crianças, imaginar os seus ídolos da bola, dum futebol tão cheio de si e de dinheiro, prisioneiros políticos. Contratos das Árabias podem indiciar um outro tipo de prisão – mas em 2025, não metemos em causa a segurança física dum desses craques da nossa Liga, por mais impertinente ou disruptivo que seja. A crescente polarização da nossa praça não se pode comparar ainda com o retrato do Portugal do século XX, acorrentado a um canto da Europa, embebido em memórias duma grandeza que o tornavam esquizofrénico aos olhos dos verdadeiros protagonistas. Carlos Gomes nasceu muito antes do tempo a que teria direito – foi um dos precursores da liberdade enquanto cidadão e especialmente enquanto futebolista, uma década antes de António Simões e Artur Jorge sequer imaginarem um projecto como o Sindicato de Jogadores.

 «Acabara de me estrear pelo Barreirense e um senhor veio ter comigo a felicitar-me por ter assinado pelo Sporting. Mas como assim Vossa Exª? Era mesmo assim, os clubes decidiam pelos jogadores, não havia respeito nenhum. Estava claríssimo que o meu futuro seria mais negro que o fumo de todas as chaminés da CUF[1]« relatava certo dia no Jogo de Vida, o seu livro de memórias. Claro que, com o seu feitio revolucionário, Carlos teria que ser filho do independentíssimo Barreiro. Rezam as lendas espalhadas por quem teve a sorte de o ver e conhecer que nasceu Keeper, sempre se dissociando das tendências juvenis de ataque à baliza adversária – como bom rebelde, de carácter imaculado na defesa dos seus próprios interesses, percebia que havia mais caminho a percorrer no artificio de evitar o golo, ainda mais que fazê-lo. E percebeu também desde cedo que para perceber a ciência por trás da coisa, seria obrigatório ver o que faziam os melhores: e por isso não perdia um jogo caseiro do Barreirense, pondo-se atrás da baliza de Francisco Silva – o suplente da Selecção – a anotar todos os pormenores. A observação criou admiração. Antes de ir para os jogos, começou a roubar laranjas para dar ao “Ti Chico” nas pausas. Quis o destino que, uns anos depois, fosse Carlos o suplente dum já experiente Ti Chico e com ele treinasse todos os dias…

Chegaria ao Sporting de Góis Mota, ele próprio um exemplar membro do regime – um jurista que se torna Procurador Geral e Secretário Geral da Legião portuguesa teria todo o direito de entrar pela cabine do árbitro de arma em punho… – e, se na génese do Leão está o assumir, por parte de Alfredo Augusto das Neves Holtreman, dum clube de «boa sociedade», foi contra todo esse aparelho corporativo que Carlos Gomes teria problemas toda a vida, o que naturalmente lhe provocaria a grande popularidade junto do povo que o seu carisma já precipitava. E já que tinham acordado a transferência sem lhe darem cavaco – pior ficou quando soube que havia também a possibilidade Benfica, que lhe fazia tocar outra música no coração – fez finca-pé para o prémio de assinatura. Se o Barreirense ia receber 45 contos, ele queria 45 contos para si também. Ganhou o confronto com a teimosia, mas criou aí os primeiros anticorpos.

Tanto quanto o cheiro ao mofo institucional lhe fazia comichão no nariz, os provincialismos da vassalagem aos superiores hierárquicos causavam-lhe cócegas. Por isso ria das manias de grandeza e achincalhava com quem se levava muito a sério. Talvez daí a relação fria com Azevedo, o lendário Keeper sportinguista com quem nunca trocou uma palavra nos dois anos que coincidiram. As bocas que lançavam um ao outro pelos corredores duraram até Setembro de 1951. Azevedo, a iniciar a 14.ª época como titular, sentiu o final da carreira quando, nas Salésias, casa do Belenenses, viu um estreante chamado Matateu a surgir-lhe na grande área e a fazer dois golos num 4-3. Era hora de dar o lugar ao puto «doido» que tinha «a mania».

E assim se iniciou a trajectória de sete anos de Carlos Gomes como figura ímpar do futebol português, como guarda-redes de estilo futurista, com o ardor dum artista da vanguarda que insiste em delinear novas e incompreensíveis formas de expressão. Todo ele era o apelo ao espectáculo, na transformação da arte de defender uma baliza em complexa exibição de superiores qualidades físicas que, aliadas a uma genética hollywoodesca, o carimbavam como ídolo das multidões.

«Representei a selecção militar e fomos terceiros no Europeu, disputado na Bélgica. Obtive a mais alta condecoração a um soldado do tempo de paz: Serviços Distintos pela Pátria. Eu e os outros jogadores. Fomos então recebidos pelo Santos Costa, o Ministro da Defesa Nacional. Recebemos ordem para estarmos todos fardados e falarmos o menos possível. Foi uma triste jantarada. No final, todos em rigoroso sentido, ouvimos o discurso da praxe. Falava como se fossemos para a guerra no dia seguinte e, depois, ao dar-se conta da pesada atmosfera existente, decidiu brincar e contou-nos uma história futebolística idiota, qualquer coisa como um golo de penálti com a cabeça. Naquele silêncio impressionante, desatei a rir às gargalhadas. Os meus colegas auguravam o pior para mim, um Tarrafal ou coisa parecia. Mas o chefe da delegação dessa selecção era o director d’A Bola e ele assegurou-me protecção.»

Ficou uma semana de castigo. Outra semana ficou, certo dia, quando teve de levar amiga sua, estrangeira, às instalações da PIDE, para tratar d’algo a ver com o atestado de residência. Carlos, que juntava ao feitio chamativo a paixão pelos carros, levou-a orgulhoso num descapotável de alta cilindrada. Estacionou-o em área interdita e alguém lhe disse para se pôr a andar dali mais o seu… calhambeque. O guarda, de resposta, levou com todos os impropérios já imaginados pela humanidade – e depois de ser espancado, só se salvou Carlos dos terrores do campo de concentração de São Nicolau precisamente por ser ídolo do Leão.

As histórias são muitas e fascinantes. Por exemplo: recusou ir conhecer o Papa – «naquele tempo, só um caminho se oferecia aos pobres: servir a Igreja, que mandava nas escolas, na política, nos negócios, em tudo. Não, mais teimoso que um burro, fiquei no hotel»; doutra vez, aproveitou a boleia do Vasco da Gama, a fazer escala em Lisboa, para ir conhecer a União Soviética, jogada que, reconheceria depois, não fora a mais prudente – «Em poucas horas, o aparelho propagandístico e fascista nacional pôs-se em marcha e punha na minha boca todos os horrores possíveis e imagináveis. Nem uma frase amável para os russos. Se voltasse à URSS, teria ido certamente para a Sibéria. Compreendi então o porquê da minha viagem. Se, diziam, ser eu comunista do Barreiro e falava assim, como seria aquilo na URSS?». Em 1953, já consolidado na titularidade e tricampeão, a caminho do tetra, chegou ao gabinete do presidente Góis Mota e pediu-lhe um aumento: naturalmente, se recebia os mesmos cinco contos com que assinara três anos antes. «Queres mais dinheiro? Pois mete na tua cabeça, se é que a tens, que enquanto for presidente são cinco contos ou nada. Para que queres tu mais dinheiro? Para putas e automóveis?» Até 1958 foi um acumular de choques frontais com o autoritarismo. Alejandro Scopelli, um dos primeiros grandes treinadores do futebol português, por esses anos a treinar em Espanha, levou-o para o seu Granada.

No país vizinho foi rei lá pelo Sul e mais a Norte, por Oviedo, sendo constantemente namorado por Reais madrilenos e Barcelonas, sem nunca o nó desatar porque, suspeitamente, alguém de Lisboa impedia sempre o desenlace. De lá tornou-se enviado especial de A Bola, escrevendo torto contra os que lhe tentavam fazer a vida negra. Quando os espanhóis lhe perguntaram porquê o hábito de jogar de preto, Carlos respondia que estaria de luto «enquanto o futebol português estiver nas mãos dos doutores».  Aos doutores espanhóis, certo dia que lhe tentaram transmitir que não havia plim plim para salários, abriu um sorriso e jogou-lhes um icónico «no hay dinero, no hay portero»…

Voltaria, inevitavelmente. Tinha investido em negócios, era comerciante. Uma gasolineira, uma leitaria, uma loja de fotografia. Na mesma cidade que fora e ainda era ídolo, fecharam-lhe todas as maiores portas. Conturbado regresso, fizeram-lhe de tudo para que deixasse o futebol e só conseguiu finalmente voltar às balizas defendendo as cores do Atlético da Tapadinha.

Ora, certo dia, estando ele na sua loja de fotografia à espera de candidatos ao anúncio de vaga para assistente, surge-lhe porta dentro uma dessas beldades que fazem soluçar o coração. Carlos tinha fama de mulherengo, o proveito dizia-se que também e uma coisa levou à outra, na mata do Jamor. No dia seguinte, novo escândalo: dissera a rapariga às autoridades que tinha sido violada e que o suicídio lhe tinha passado pela cabeça, pela desonra. Carlos, jurando até aos seus últimos dias a consensualidade do episódio, fez contas de cabeça e chegou à conclusão que era outra jogada dos tais doutores, tanto do Sporting como da PIDE. Percebeu que não havia tempo a perder: numa recepção do Atlético ao Vitória vimaranense, simulou uma lesão a meio da segunda parte, meteu-se rapidamente na bagageira de amigos e prego a fundo até à fronteira, para depois em Espanha passar saltar de Gibraltar para o outro lado.

Andou pelo Magrebe, foi adorado por tunisinos, marroquinos e argelinos; em Tânger conseguiu o estatuto de refugiado político e as suas façanhas nas balizas fizeram-no ser convidado para se tornar cidadão de facto, convertendo-se à outra fé e podendo mudar até de nome. Rejeitou sempre, apesar de lá fazer carreira, depois como treinador, até 1983.

As pazes nunca se fizeram entre Carlos e Sporting. Em 2003, rejeita um convite para a despedida do velhote Alvalade. Porquê?, perguntou o Record, e Carlos explicou, descomplexadamente:

« Não entrarei em pormenores, mas seria vergonhoso para mim ir à festa, depois do que fizeram a mim e ao meu filho. Da última vez que estive em Lisboa, solicitei ao Sporting os serviços clínicos para um grave problema que tenho na coluna; fui observado e mandaram-me tirar umas radiografias; alguns dias depois, recebi do hospital o preço de tanta gentileza: um recibo de 15 mil escudos. Isto para já não falar no vexame que foi ter sido impedido de entrar na porta 10-A, por onde só poderia passar com autorização de Manolo Vidal, segundo me informou um funcionário».[2]

Tinha 71 anos, despedir-se-ia deste mundo dois anos depois. E, nessa mesma oportunidade providenciada pelo Record, talvez adivinhando a urgência do seu relógio, desvendou mais histórias, tão fascinantes como provas do seu legado.

 «Nos dias de jogos, havia um grupo de miúdos que se reunia junto à porta 10-A. Ficavam ali à espera que eu chegasse dos balneários, já equipado, e desse ordem aos porteiros para que os deixassem entrar. Sempre na condição de meus convidados. Era um ritual e, ao mesmo tempo, a maior alegria que sentia de cada vez que actuava em casa: dar um pouco de felicidade a crianças pobres que amavam o futebol e o Sporting. Sabe quem era um desses meninos? O grande Vítor Damas, de quem fiquei amigo para o resto da vida».


[1] Esta e restantes citações a partir de: https://tovarfc.pt/2020/07/14/carlos-gomes-o-politico/

[2] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/sporting/detalhe/carlos-gomes-boa-parte-de-mim-fica-em-alvalade

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