Foi há pouco mais de uma semana que, no seguimento de um jogo na Reboleira, Bruno Lage confessou ter apresentado a Primeira Liga aos reforços encarnados. “Welcome to Portuguese League”, disse o treinador do Benfica aos seus novos pupilos. Não foi preciso esperar muito tempo para, no mesmo palco, ver a representação extremada do surrealismo que por vezes a Primeira Liga nos presenteia. O Estrela da Amadora x Alverca teve de tudo.
No cardápio daquilo que um jogo de futebol pode ter, são poucos os acontecimentos que não figuraram na partida de segunda-feira que só não encerrou a jornada porque o Estoril Praia x Santa Clara ainda não foi disputado por culpa das competições europeias. De resto, e numa altura em que a centralização dos direitos televisivos, a competitividade do campeonato e o mercado de transferências ainda está aberto, o encontro teve de tudo.
Reforços em catadupa, estreias, golos, expulsões, uma imensidão de cartões e de faltas (e faltinhas), penáltis falhados, pinturas de levantar o estádio e um árbitro a precisar de assistência e de substituição depois de 15 minutos em campo, num protagonismo estranho de explicar, apenas atenuado por aquele que tantas interrupções motivaram. Houve descontos intermináveis, pouco tempo útil de jogo, mas não faltou emoção, muito menos ilações a tirar de um jogo em que o antijogo não apareceu e foi antes substituído pelo “O que se passa mesmo neste jogo?”.
Estrela da Amadora e Alverca têm, até um certo ponto, pontos de atração comuns. Ao lado do mercado dos ribatejanos, o mercado da equipa de José Faria parece calmo, mas ambos os clubes apresentaram várias mãos cheias de reforços. Numa altura em que ainda só foram apresentados alguns cartões de apresentação, a necessitar de julgamentos mais coerentes que só serão comprovados com o andar dos ponteiros dos relógios e o acumular de minutos nas pernas, há, em ambos os clubes, jogadores que demonstram potencial para chegar a outros patamares.
A diversificação de mercados e a valorização mais frequente da meritocracia têm trazido a Portugal e à Primeira Liga jogadores de qualidade. Com mais de 50 reforços entre os dois clubes, haverá, com toda a certeza, vários nomes que se destacarão e darão o salto na árvore do futebol português ou lá fora.
Entre a catrefada de novidades do Alverca há nomes entusiasmantes como Naves, destaque da formação do Palmeiras, André Gomes, que teve protagonismo desmedido na baliza dos miúdos do Benfica, ou Bastien Meupiyou, ligado contratualente ao Wolverhamtpon. Com mais experiência, o vencedor da Europa League Sergio Gómez, ou um Chiquinho que, não fosse a grave lesão, estaria noutros patamares, também figuram nas opções de Custódio Castro. Na Reboleira, destacaram-se outros três nomes.
Os corredores laterais têm várias opções para Custódio Castro e, do ponto de vista teórico, até é Francisco Chissumba quem parte na frente na corrida por um lugar à esquerda. Com o lateral do Braga a procurar ainda o melhor entrosamento com o plantel, tem sido Isaac James o dono do lugar. Não é dono de uma capacidade técnica por aí além, nem é o mais constante nas decisões nem nos duelos, mas o perfil atlético e a capacidade de fazer o vai-vem no corredor bem como a capacidade de se entender com Chiquinho dão-lhe um espaço interessante no plantel.
Mais unânimes e, certamente, com um teto maior, destacaram-se Cédric Nuozzi e Marezi, dois dos jovens com mais reputação fora de portas do Alverca. O extremo belga funciona como um jogador de entrelinhas, com centro de gravidade mais baixo, capacidade de trabalho em espaços curtos, técnica aos pontapés e chegada à área. Marcou um golo no jogo e tem dado sensações de Pedro Gonçalves da classe média e a jogar à direita.
Pelo perfil de Marezi, será complicado – a menos que uma lesão ou uma perda de espaço estranha aconteçam – não ver o avançado sérvio chegar aos dois dígitos nos golos. Tem o perfil autosuficiente que costuma ser valorizado na Primeira Liga. Do alto dos seus quase dois metros, não é um tosco nenhum e consegue trabalhar a bola. Serve de referência para um jogo mais direto, consegue segurar e entregar o esférico e dentro de área tem oportunismo e diagonais curtas valiosas. Já vai em dois golos em três jogos.
As novidades no Estrela da Amadora vão muito para lá das novidades. Antes dos novos nomes, há uma pequena alteração estrutural no emblema da Reboleira que passou a colocar os avançados mais técnicos como interiores e joga agora num 3-5-2 bastante curioso. Jovane Cabral, referência do clube, e Abraham Marcus são médios interiores (como o é Rodrigo Pinho) que partem de dentro para fora e ajudam o Estrela da Amadora a chegar com mais gente à frente. Os avançados compensam e, pelo menos um dos nomes, oferece-se em apoio para permitir alguma sequência às jogadas terminadas quase sempre de forma rápida.
A capacidade física e atlética foi elevada e o Estrela da Amadora sabe claramente o que quer. O modelo de jogo está vincado e os perfis individuais conciliam-se. Não há muitos rodriguinhos em chegar à frente e, com alas a pé trocado (mais ou menos, à direita), e avançados a partir do meio-campo, há presença na área para responder a situações de cruzamento.
Entre os vários destaques individuais, seria injusto não focar toda a atenção em Sidny Lopes Cabral. Ainda há dúvidas sobre os dois nomes que caracterizarão o ala cabo-verdiano entre o Sidny Cabral e o Lopes Cabral, e sobre o seu pé dominante. Depois do jogo, o próprio confessou que tanto faz, o que importa é a bola chegar ao destino, quer seja chutada com o esquerdo ou o direito. Tem o tal perfil atlético que agora traça a equipa do Estrela da Amadora da defesa ao ataque, chega-se à frente e tem argumentos com os dois pés. Conduz por dentro e por fora e bate bem na bola (tem um dos golos da jornada). Aos 22 anos já é internacional por Cabo Verde e está a jogar pela primeira vez a Primeira Liga. Em breve deixará de precisar de apresentações.
BnR na Conferência de Imprensa
Bola na Rede: Neste 3-5-2, é frequente vermos os dois interiores abrir posição e os dois avançados procurar movimentos em apoio no corredor central. Taticamente, o que pretende com estas dinâmicas?
José Faria: Sim, essas são algumas coisas que pretendemos: ter mobilidade, tirar referências individuais ao adversário. Em termos estratégicos hoje foi um bocadinho por aí, mas não quer dizer que seja sempre. Acho que correu bem. Conseguimos jogar muitas vezes por dentro do bloco adversário ou fora dele e a ideia passava um pouquinho por aí, criando também várias vezes superioridade no corredor. É precisamente essas dinâmicas, com um dos homens da frente a vir em apoio e outro a atacar o espaço, diagonais curtas, com os homens a vir de fora também, muito contra-movimento. Tentámos ir um bocadinho ao encontro das características dos jogadores que temos neste momento.
Bola na Rede: Na linha defensiva do Alverca, guarda-redes incluído, todos os jogadores apresentam argumentos claros na saída a partir de trás. O que é que estas características potenciam na construção do jogo coletivo do Alverca e, aproveitando o foco na linha defensiva, qual a razão pela qual o Naves foi desviado para o lado direito do trio de centrais?
Custódio Castro: Acabámos por ir buscar alguns jogadores dentro do que o mercado nos permitiu. Não temos uma capacidade muito grande de ir ao mercado buscar jogadores que custem milhões, mas dentro do que o mercado nos permitiu, daquilo que são os jogadores com uma projeção de futuro, tentámos arranjar equilíbrio e jogadores que nos possam permitir jogar futebol. Mais do que saída só de trás, e hoje tentámos aproveitar os espaços às vezes de forma mais longa, o que eu quero é jogadores capazes de jogar futebol, de interpretar o jogo e de perceber os momentos do jogo. É nessa variabilidade de jogadores que temos para a linha defensiva, e hoje estrearam-se mais dois, o [Julián] Martínez e o Chissumba, que conheço bem. Claro que o Sergi [Gómez] não é um jogador tão rápido como o Bastien [Meupiyou], o Naves não é tão rápido como o Bastien ou o Martínez, mas acabámos por ter essa alternância. Em termos técnicos conseguimos ter jogadores que consigam ver mais longo, ver por dentro também. Estamos à procura da nossa melhor versão e é natural, até pela questão das nacionalidades e da comunicação. Não só na adaptação ao clube e à cidade, mas também à adaptação uns aos outros. Estamos com alguns bons sinais de crescimento dentro da individualidade e coletivamente, e é nisso que nos temos de agarrar.
