Há poucas palavras, mas muitos quilómetros nas pernas para descrever o ano de João Almeida. O ciclista português venceu, de rajada, no País Basco, na Romandia e na Suíça antes do brilharete por terras espanholas onde, até ao final, lutou para vestir o vermelho. O segundo lugar e a vitória no Angliru são páginas douradas no ciclismo português e que justificam a entrega do Prémio Personalidade do Ano Bola na Rede. Em entrevista exclusiva, o ciclista luso passa em revista um ano histórico na sua carreira.
«O ciclismo tem a particularidade de ser um desporto mais duro que o normal».
João Almeida
Bola na Rede: Qual a primeira reação por receber este prémio?
João Almeida: É gratificante e o reconhecimento, não só dos resultados, mas do meu trabalho e do meu sacrifício. Receber este prémio e ser destacado por isto é gratificante e estou muito feliz por recebê-lo.
Bola na Rede: É um momento de maior atenção mediática ao ciclismo?
João Almeida: Sim. Acho que nacionalmente só um bocadinho mais, não muito. Há muito por onde crescer e evoluir. Internacionalmente, sim. Há cada vez mais adesão à bicicleta e ao ciclismo. É bom.
Bola na Rede: Como avalias o ano de 2025 a título pessoal? Foi um ano quase perfeito?
João Almeida: Sim. Foi certamente o meu melhor ano como profissional, com mais vitórias e vitórias de qualidade. Tenho feito uma boa evolução física e estado a evoluir bem. É continuar o foco no trabalho, que é isso que nos dá os resultados e a evolução física, e esperar o melhor.
Bola na Rede: Quais os maiores desafios de um ciclista profissional?
João Almeida: Os sacrifícios. É preciso muito trabalho e é uma vida dura. São dias de sofrimento, dias menos bons, dias melhores. No fundo, ser atleta é um estilo de vida. O ciclismo tem a particularidade de ser um desporto mais duro que o normal. Tenho uma paixão pelo desporto e é isso que me faz estar no desporto.
Bola na Rede: Porquê um desporto mais duro que o normal?
João Almeida: São muitas horas a treinar na bicicleta, endurance, corridas muito longas e de muito tempo, provas de três semanas. É um desporto especial.
Bola na Rede: O ano fica marcado pela renovação com a UAE. Como a encaras?
João Almeida: Foi uma renovação muito querida por ambas as partes. É uma equipa onde me sinto bem e posso continuar a evoluir, com uma competitividade natural e saudável muito boa, que nos ajuda a estar motivados e focados no desenvolvimento. Gosto muito de estar na equipa. Era natural que quisesse continuar mais uns anos.
«Na minha opinião, o Pogacar é o melhor de sempre».
João Almeida


Bola na Rede: Como te sentes por poder crescer na roda do Pogacar?
João Almeida: Pessoalmente, eu gosto. É bom. Como se costuma dizer, se não consegues bater o melhor junta-te a ele. Neste momento, não seria realista dizer que lhe consigo ganhar. Gosto de ser colega de equipa dele, aprender com ele, melhor com ele e fazer parte das suas vitórias quando estou presente.
Bola na Rede: Será possível um dia ganhar-lhe?
João Almeida: Sim. Acho que é muito difícil, mas os impossíveis não existem. Tenho de continuar a trabalhar e a esforçar-me para estar ao melhor nível possível.
Bola na Rede: Estamos perante um ET do ciclismo…
João Almeida: Sim. Não é só o melhor da atualidade, na minha opinião é o melhor de sempre. Nasci numa bela época, diria que a melhor época do ciclismo de sempre.
Bola na Rede: Na rivalidade entre o Pogacar e o Vingegaard há espaço para o aparecimento de uma terceira e quarta forças?
João Almeida: Acho que espaço há, mas capacidade é difícil. Há exemplos que vão aparecendo, mas estamos a falar dos melhores dos melhores. Estar perto deles é muito positivo.
Bola na Rede: Passando o ano em revista, consegues três vitórias de peso em corridas de uma semana. O que significaram as vitórias no País Basco, na Romandia e a Suíça?
João Almeida: Foram o afirmar do corredor por etapas que sou e que as vence. Obviamente, sou mais talhado para as grandes voltas onde a dificuldade é muito maior, mas são vitórias que já procurava há algum tempo e que são o resultado de muito sacrifício e trabalho árduo.
Bola na Rede: Porquê mais talhado para as grandes voltas?
João Almeida: Sempre fui um corredor de provas por etapas e de corridas do dia-a-dia. As Clássicas não são o meu melhor. É natural e como eu sou.
Bola na Rede: Quais os maiores desafios de uma prova longa por etapas?
João Almeida: É uma questão de foco e mentalidade. A recuperação é o mais importante. Manter o foco mental durante um longo período de tempo é difícil e não é para todos.
«Às vezes sacrificamo-nos pelos nossos colegas, outras vezes são os nossos colegas que se sacrificam por nós. O ciclismo é assim que funciona».
João Almeida


Bola na Rede: Como é possível manter o foco durante as 6/7 horas diárias ao longo de três semanas intensas?
João Almeida: Para além de ser bastante sofrimento, é duro. Em termos de dieta e de alimentação, não podemos ter falhas. Tem de ser perfeito, temos de ter a rotina de dormir bem, não nos desleixarmos. É bastante duro e, claramente, não é para qualquer um.
Bola na Rede: Antes de uma grande volta e a nível de preparação, quais os pontos principais a refletir em equipa?
João Almeida: A preparação já vem há muito tempo, há meses e anos. É um trabalho contínuo. Antes de uma grande volta, fazemos altitude, para dar um boost na forma física. São detalhes e pormenores para aprimorar um bocadinho a capacidade física, mas se ela não existir antes, é um bocadinho inútil, porque não vamos lá fazer nada. É uma preparação com muito tempo porque temos de estar num nível elevado.
Bola na Rede: No dia-a-dia, quais as grandes exigências do trabalho em equipa?
João Almeida: Só ganha um, mas é um trabalho coletivo. Sem a ajuda dos colegas de equipa, ninguém consegue vencer. Temos de estar todos na mesma página por um objetivo. Às vezes sacrificamo-nos pelos nossos colegas, outras vezes são os nossos colegas que se sacrificam por nós. O ciclismo é assim que funciona.
Bola na Rede: O ciclismo é um desporto coletivo, mas muito definido por marcas e objetivos individuais. Como é feita esta gestão?
João Almeida: Temos de nos focar no atleta mais forte e apostar as nossas fichas no nosso melhor atleta. Depois, é um trabalho de equipa.
Bola na Rede: Antes da Vuelta, o teu grande momento neste ano, tens uma saída precoce do Tour devido a uma lesão. Sentias que era um Tour onde podias atingir coisas interessantes?
João Almeida: Estava na melhor forma física do ano e bastante bem. É uma questão de perceber que os azares acontecem e fazem parte do caminho. Há momentos bons e momentos menos bons. Não nos podemos focar muito nisso.
Bola na Rede: Foi desse azar que surgiu a possibilidade de fazeres uma Vuelta ao nível que fizeste?
João Almeida: Sim e não. Tirou-me muito tempo de preparação e de treino que podia ter e deitou-me a forma física abaixo porque estive algum tempo parado. Já ia fazer a Vuelta de qualquer das maneiras, mas correu bastante bem. Mostrou, mais uma vez, o nível que tenho.
«Podes ser muito talentoso, mas se não trabalhares no duro, alguém menos talentoso vai ser melhor do que tu se trabalhar mais».
João Almeida


Bola na Rede: Como te definirias como ciclista?
João Almeida: Sou ciclista de corridas por etapas. Os terrenos mais planos, com mais vento, às vezes são de dificuldade maior, sou um ciclista relativamente leve e não é o meu terreno. Não me defendo mal, mas claramente estou em casa nas montanhas.
Bola na Rede: Também por isso as grandes voltas puxam-te mais?
João Almeida: Também. Sendo um trepador, as grandes voltas e as etapas de montanha são onde me dou melhor. Mas, depois, também é preciso ser bom no contrarrelógio. A base, é ser consistente e nunca ter dias maus. Quando se tem dias maus, é preciso saber lidar com eles.
Bola na Rede: Como se explica a capacidade nos contrarrelógios?
João Almeida: Vem da capacidade física e do aprimorar da posição. No fundo, tem quase de nascer connosco.
Bola na Rede: Para ti o ciclismo é uma arte inata?
João Almeida: Um pouquinho. Mas hoje em dia, podes ser muito talentoso, mas se não trabalhares no duro, alguém menos talentoso vai ser melhor do que tu se trabalhar mais. É um bocadinho dos dois, mas sem ter as duas coisas, é impossível seres o melhor.
«A Vuelta foi das melhores corridas da minha carreira».
João Almeida


Bola na Rede: Sobre a Vuelta, e numa altura em que já passaram alguns meses, que reflexões já fizeste e que memórias te deixa?
João Almeida: Memórias boas, obviamente. Foi das melhores corridas da minha carreira. Dá-me confiança para o futuro, foi mais uma afirmação de corredor de grandes voltas que sou. Mesmo com azares, consegui fazer um bom resultado e bater o Vingegaard, um dos melhores do mundo, em algumas etapas. Dá-me motivação para continuar a esforçar-me e a perceber do que sou capaz.
Bola na Rede: A vitória no Angliru é o dia mais marcante da tua carreira?
João Almeida: Sim, sem dúvida. Um dos mais marcantes da carreira.
Bola na Rede: Tens ainda presente como foi vivida essa etapa?
João Almeida: Sim, essa e várias. Essa, obviamente, mais. Tínhamos um plano, sentia-me bastante bem e dei o meu melhor, confiante e sem medo. Acabámos por colher os frutos.
Bola na Rede: O que te passou na cabeça nos últimos segundos antes de cortar a meta?
João Almeida: Só quando cortei a meta é que percebi que ganhei a etapa do Angliru. É uma subida histórica e mítica. Fiquei mesmo muito entusiasmado e feliz por vencê-la.
Bola na Rede: A Vuelta ficou marcada por protestos e etapas a terminar mais cedo que o suposto. Lá dentro, como geriam toda a situação?
João Almeida: Pessoalmente, não mudou nada. Obviamente era um bocadinho incerto e são coisas que esperamos que não voltem a acontecer.
«Como líder, temos de saber dar a oportunidade aos nossos colegas que também trabalham duro todos os dias».


Bola na Rede: Em relação à UAE Emirates, muito se discutiu sobre a gestão da equipa na prova. Qual a tua avaliação?
João Almeida: Foi feita bastante bem. Fomos a equipa com mais sucesso na Vuelta e mais etapas ganhas. A Visma ganhou com o Vingegaard, mas a nível de etapas fomos a equipa que mais ganhou. O resultado não ia mudar se mudássemos a tática. Acho que maximizámos o que tínhamos e estamos de parabéns.
Bola na Rede: A gestão entre etapas e a geral é bem aceite por um ciclista que luta pela geral?
João Almeida: Sim. Temos de ser compreensivos. Nos dias em que sentimos que faz falta, como líder, temos de o dizer e a equipa tem de te apoiar. Ao mesmo tempo, quando não é necessário, temos de saber dar a oportunidade aos nossos colegas que também trabalham duro todos os dias. Temos de saber dar-lhes essas oportunidades.
Bola na Rede: A rescisão do Ayuso, durante a prova e depois de uns dias mais turbulentos com coisas ditas a quente, teve impacto no espírito da equipa?
João Almeida: Não, nem por isso. Damo-nos todos bem. Em termos mediáticos, as pessoas gostam sempre de exagerar e criar polémicas, mas internamente temos todos uma boa relação, inclusive com ele, e estava tudo na maior.
Bola na Rede: Foram dias normais lá dentro e diferentes cá fora?
João Almeida: Sim. Internamente foi tudo normal e estávamos entusiasmados como sempre.
«Estava constipado e engripado na última semana da Vuelta. Tira-nos muita capacidade física e deixa-nos bastante vulnerável».
João Almeida


Bola na Rede: Há um momento de destaque na Vuelta, o contrarrelógio onde recuperas 10 segundos ao Vingegaard. Quando o dia terminou, sentias que era possível uma vitória?
João Almeida: Sim. Já me sentia doente, estava constipado e engripado nessa semana. Sabia que ia ser difícil porque não me sentia no meu melhor, mas temos sempre esperança até ao fim e damos tudo sem ter medo. Até cortar a meta há sempre possibilidade, não sabemos como vai estar o adversário.
Bola na Rede: Qual o impacto que uma constipação ou um dia mais difícil podem ter numa grande volta?
João Almeida: Muito. Pode ser a diferença entre estar no pódio ou não, entre ganhar ou não ganhar. Tira-nos muita capacidade física e deixa-nos bastante vulnerável.
Bola na Rede: Numa luta a segundos e não a minutos a diferença ainda é maior?
João Almeida: Sim, é uma diferença mesmo muito grande.
Bola na Rede: No dia seguinte ao contrarrelógio perdes quatro segundos numa contagem intermédia. Foi um dia algo estranho, um ataque diferente da Visma. Já analisaram a etapa e tiraram reflexões sobre o que correu mal nesse dia?
João Almeida: Sim. Não nos posicionámos muito bem, mas sinceramente também não era decisivo para uma grande volta. Não há que dar importância aquilo que não é realmente importante.
Bola na Rede: Na altura lutavam por cada segundo…
João Almeida: Sim, mas no final vai-se ver e não fez diferença nenhuma.
Bola na Rede: Chegaste a pensar no que aconteceria se não estivesses doente nessa última semana?
João Almeida: Sim, mas não podemos pensar muito nos “ses”. Há coisas que não controlamos.
Bola na Rede: Nessa semana o Vingegaard disse várias vezes que nada estava ganho porque te via com boas pernas e muito capaz. Como recebeste estes elogios?
João Almeida: É muito bom. É gratificante ouvir isso e dá-nos mais motivação e confiança para o futuro e para continuarmos a fazer as coisas bem.
«Felizmente, ainda fui colega de equipa do Rui Costa. Gostava de ter sido mais anos, mas não foi possível».
João Almeida


Bola na Rede: Quem são as tuas referências no ciclismo?
João Almeida: Atuais, sinceramente não tenho nenhuma referência. Quando me estava a desenvolver e era júnior, via o Chris Froome ganhar o Tour e sempre foi uma das minhas referências no ciclismo.
Bola na Rede: A nível nacional, foi bastante emocional a mensagem que dedicaste ao Rui Costa pelo fim da carreira. Foi, também ele, uma inspiração?
João Almeida: Vi o Rui Costa ser campeão do mundo na televisão e foi um dos momentos de maior auge do ciclismo português desde que nasci. Ainda sou relativamente jovem. Felizmente, ainda fui colega de equipa dele. Gostava de ter sido mais anos, mas não foi possível. Aprendi muito com o Rui enquanto colega de equipa e na seleção. Deu-me aprendizagens que vou usar, não só no ciclismo, mas também na vida. Vai ser sempre um senhor do ciclismo português.
Bola na Rede: O que ficou dos anos em que estiveram mais próximos e em que estavas em contacto direto com uma das tuas referências?
João Almeida: Ficaram muitas aprendizagens no ciclismo e na vida e muito conhecimento e experiência, que serão úteis para sempre.
Bola na Rede: Quais as tuas ambições para 2026?
João Almeida: Ganhar mais corridas. Passa por aí. Nenhuma ambição em específico.
Bola na Rede: Entre estas corridas já passa pela cabeça ganhar uma grande volta?
João Almeida: Sim, é o meu próximo objetivo. Acho que é possível e realista, mas é um objetivo bem definido.
Bola na Rede: Entre as três grandes voltas tens preferências?
João Almeida: A Volta a França. Pelo mediatismo. Se tivesse de escolher uma para ganhar, escolhia a Volta a França. Os percursos variam de ano para ano, por isso aí dependem as preferências.
«Só posso prometer que vou dar o meu melhor e esforçar-me para ganhar mais corridas».
João Almeida


Bola na Rede: Onde é que o ciclismo mais pode crescer?
João Almeida: Em Portugal, há muito para desenvolver. Mentalidade, equipas profissionais, capacidade económica.
Bola na Rede: O ciclismo português pode chegar mais vezes aos grandes palcos?
João Almeida: Sem dúvida. Temos capacidade e qualidade para isso, mas falta mudar e crescer em muitas coisas.
Bola na Rede: Como mensagem final, o que podes prometer para quem te segue e acompanha para o próximo ano?
João Almeida: O normal. Agradecer pelo apoio e só posso prometer que vou dar o meu melhor e esforçar-me para ganhar mais corridas.

