«Conseguimos a virtude de voltar a agregar o povo angolano e Angola à sua seleção» – Entrevista BnR com Pedro Soares Gonçalves

    Angola fez história na CAN 2023. Nunca os Palancas Negras tinham vencido uma partida na fase eliminar, feito inédito que representa um novo capítulo no futebol do país. Pedro Soares Gonçalves, técnico português de 48 anos, foi o obreiro de todo o percurso de Angola. Já está na seleção há seis anos, dos quais mais de quatro na equipa principal e atingiu o ponto mais alto da carreira nos últimos dias. Das questões táticas à gestão do grupo, da convocatória à história escrita no presente, o treinador de Angola fez, com o Bola na Rede, uma viagem pelo caminho dos Palancas Negras na CAN 2023.

    «A partir daí o nosso objetivo era sermos campeões e atingir a imortalidade».

    Bola na Rede: Vamos fazer uma viagem pelo percurso de Angola na CAN 2023. Antes disso, qual o primeiro balanço que faz da participação na competição?

    Pedro Soares Gonçalves: O balanço é extremamente positivo. Desde o lançamento dos trabalhos iniciais com a seleção principal de Angola que destaquei como crucial marcar presença em todas as grandes competições de seleções, nomeadamente nas continentais. Ao longo deste trajeto que já vai longo, estou nas seleções de Angola há praticamente seis anos dos quais quatro anos e meio na seleção principal, passámos um conjunto de situações que nos afasta do alto rendimento, nomeadamente a falta de recursos e um conjunto de contrariedades que inicialmente nos barrou os resultados desportivos. Sobre o tempo e ganhando consistência nos trabalhos, identificando os nossos jogadores com a nossa metodologia de intervenção e comprometendo-os em torno da nossa realidade, conseguimos melhorar o espectro desportivo. Tanto assim é que nos últimos 25 jogos temos três derrotas, fomos ganhando consistência para participar nas grandes competições. Foi assim há um ano no CHAN na Argélia e agora na CAN na Costa do Marfim, o que revela que estamos a ir ao encontro daquilo que projetámos. É essa a principal alavanca para todo o futebol angolano. Estando presentes na CAN 2023, reunimos com os jogadores num estágio de preparação realizado no Dubai, fizemos uma análise SWOT dentro da equipa e estabelecemos as metas e objetivos. Passavam por ganhar o primeiro jogo e vencer dois jogos na competição, o que passaria a ser histórico, porque nunca tinha acontecido. Sabíamos que na fase de grupos, ganhado dois jogos, estávamos garantidamente na fase a eliminar, que era o segundo objetivo. Conseguimos ambos e depois lancei o repto de “Vamos fazer aquilo que nunca foi feito”. Angola nunca tinha conseguido ganhar um jogo na fase a eliminar. Já tinha estado por duas vezes nos quartos de final, mas os moldes eram diferentes. Queríamos ganhar um jogo na fase eliminar e conseguimos. A partir daí o nosso objetivo era sermos campeões e atingir a imortalidade, era esse o termo que estabelecemos. Fizemos a melhor CAN de sempre de Angola em nove edições, chegámos aos quartos de final, vencemos um jogo na fase eliminar, ganhámos o grupo, fizemos sete pontos pela primeira vez e somos uma das seleções com mais golos marcados. Há um conjunto de fatores que nos validam o facto de esta ser a melhor participação de sempre de Angola e sobretudo, e aquilo que me regozija mais, é termos potencial para fazer melhor. Não só a nível de jogadores, porque temos uma nova geração a vir, mas deixamos uma grande perspetiva. Tivemos a grande virtude de agregar o povo angolano aos Palancas Negras. Os ecos de manifestação e rejubilo que tivemos vindos de Angola deixaram-nos com muito sentimento e muita alegria. É algo que ficará e acredito que será capital para investir no futuro.

    Bola na Rede: Comecemos então a viagem pelo início. A preparação de Angola ficou marcada por algumas dificuldades de ordem logística. Como se começa a preparação com tantos problemas?

    Pedro Soares Gonçalves: Algumas é já pôr umas aspas. Tivemos muitas dificuldades mesmo. Às vezes pode parecer incompreensível como é que se vai estagiar para o Dubai e, estando no Dubai, temos tantas dificuldades para implementar um plano. O início do estágio de preparação foi extremamente atribulado, mas tivemos sempre uma atitude positiva perante as circunstâncias. Já atravessámos muito, mas estes jogadores nunca fizeram uma greve, nunca se recusaram a ir trabalhar. Sempre tiveram o compromisso da defesa do país. O sentimento patriota sobrepôs-se às reivindicações coletivas e individuais e valorizo esta dimensão, porque foi ela que nos tornou mais forte.

    Bola na Rede: Quanto à convocatória, o M’Bala Nzola recusou a possibilidade de representar Angola. Como é que a situação foi gerida?

    Pedro Soares Gonçalves: Quanto ao M’Bala Nzola, fui eu e a minha equipa técnica que o identificámos dentro da perspetiva de agregar as mais-valias do exterior. Ele estreou-se em março de 2021 e desde então tem sido algo irregular nas suas aparições, mas perante o que representava para nós um jogador com o seu potencial, procurámos do ponto de vista técnico agregá-lo e fazê-lo entender a duplicidade de interesses que poderia haver entre ele e a seleção. Depois de um conjunto de circunstâncias difíceis no trajeto, em março de 2022 o M’Bala Nzola pediu para sair. De facto, passámos por situações que não são compatíveis com o alto rendimento desportivo, mas o que é certo é que a maioria dos jogadores ficou. O M’Bala, de uma forma educada, pediu para sair, mas abriu portas para regressar neste momento. Ele queria muito estar presente. Quando nos qualificámos, ele mostrou disponibilidade e no lançamento da CAN, aquando da convocatória, abordei-o um mês antes. Ele manifestou muita vontade em estar presente e disse, com todo e empenho e determinação, que queria fazer uma nova história com a seleção de Angola. A cerca de duas semanas da convocatória pedi a um administrativo para reforçar o compromisso e ver se do ponto de vista operacional estava tudo alinhado. A resposta foi de extremo compromisso, que queria estar presente e marcar a diferença. Antes da convocatória nós sentimos um jogador completamente envolvido e com muita vontade de provar as suas qualidades na seleção. Um ou dois dias depois da divulgação da convocatória, o M’Bala solicitou não estar presente. Acredito que o clube [Fiorentina] terá pressionado para ele o fazer, mas contradisse completamente a postura antes da convocatória. Acabou por não estar presente e julgo que saiu muito mal desta situação. Pessoalmente não gostei da postura que teve, mas não desejo mal nenhum na sua carreira e na sua vida pessoal. São episódios que nos fazem crescer e, enquanto selecionador, percebo que só vale a pena seguir com quem muito quer e quem muito se dedica. Claro que os jogadores têm de ter talento, qualidade e estar a passar um bom momento, mas para além disso têm de ter um extraordinário compromisso em torno da defesa da pátria angolana.

    Bola na Rede: E porquê chamar o Depú [Gil Vicente]?

    Pedro Soares Gonçalves: A CAF decidiu que nesta CAN, à semelhança do CHAN anterior, as seleções poderiam levar 27 jogadores. As convocatórias eram de 23, mas quem quisesse podia levar até 27 jogadores. Nós fizemos o mesmo que no CHAN e deixámos quatro jogadores já antecipadamente contactados para servir de suplentes caso alguém deixasse de poder dar o contributo à equipa. Como as coisas correram bem no CHAN, deixei quatro jogadores sinalizados que poderiam ser chamados: o Gelson [Interclube], o Inácio Miguel [Petro de Luanda], o Chico Banza [Anorthosis] e o Depú [Gil Vicente]. O Depú estava em fase final de recuperação, mas já no CHAN ele jogou e vinha lesionado há algum tempo. Aliás, o Gil Vicente só o contratou por aquilo que ele fez no CHAN. Como tínhamos esses bons indicadores anteriores, acreditámos que caso houvesse necessidade ele poderia vir a ser uma mais-valia. Acabámos por não o chamar, não houve essa necessidade, e ele também demorou mais tempo a recuperar da lesão.

    Bola na Rede: Falando em ausências da convocatória ficaram de fora, entre outros, o Hélder Costa [sem clube], o Ivan Cavaleiro [Lille] e o Nélson da Luz [na altura no Vitória SC]. Pode explicar o porquê de não terem sido convocados?

    Pedro Soares Gonçalves: Todos eles são situações diferentes e jogadores de dimensões diferentes, mas para posições e funções semelhantes. O Hélder Costa foi o único jogador que participou nos seis jogos de qualificação e que não esteve presente na fase final. Por iniciativa própria, ele solicitou-o dado que não tinha clube, não se sentia confortável e queria resolver a situação profissional. O Hélder sempre foi um jogador exemplar e uma referência. É acarinhado por todos em Angola e sempre foi acarinhado por todos no seio da equipa, é apenas uma questão momentânea. O Ivan Cavaleiro é um jogador com quem falei muito tempo para o agregar e neste momento só pode jogar por Angola. Mesmo lesionado, ele esteve presente num estágio de preparação realizado em Portugal, mas solicitou não estar presente na CAN porque estava a recuperar de lesão e não se sentia confortável. O caso do Nélson da Luz é diferente. É um jogador que tem um trajeto de vários jogos com a seleção de Angola, mas com alguns hiatos e estava afastado por um conjunto de situações já faladas. No início da campanha para o Mundial, que serviu de preparação para a CAN, foi abordado para saber a disponibilidade e passarmos uma esponja sobre o passado, mas ele manifestou que não estava disponível, portanto nem entrou nas considerações para ser convocado.

    «A partir do momento em que reestruturámos e que estancámos as subidas dos laterais argelinos o jogo mudou, passámos a estar mais confiantes e a segunda parte foi completamente diferente».

    Pedro Soares Gonçalves Angola Mabululu
    Fonte: Federação Angolana de Futebol

    Bola na Rede: Entrando a fundo na participação na CAN, começamos no Argélia x Angola (1-1), jogo em que Angola entrou num 5-3-2. Qual o objetivo desta aposta?

    Pedro Soares Gonçalves: Um 5-3-2 em bloco baixo, porque se estivéssemos a atacar era um 3-3-4. Entrámos assim porque fizemos vários jogos de preparação, inclusive um em Cabo Verde, nessa dimensão tática. Fomos desenvolvendo ao longo do tempo um conjunto de competências para que a equipa desse resposta ao nível da flexibilidade tática. Podemos jogar com diferentes sistemas e os jogadores dentro de campo conseguem dar resposta a diferentes missões e funções relativas à disposição tática em campo. A Argélia passa um pouco ao lado da CAN, mas é um colosso africano dotada de recursos incomensuráveis ao nível do investimento à volta da seleção e tem jogadores de elevado quilate desportivo. Dadas as características de jogo da Argélia, com muita qualidade de jogo interior, associado à flexibilidade de desmontar uma equipa com jogo exterior/jogo interior e às situações de jogo aéreo, como cruzamento, que exploram muito com jogadores finalizadores, entendi que seria o ideal entrarmos com essa disposição tática. Tive de reformular as coisas ao nível da dimensão tática ainda na primeira parte porque a Argélia, ao contrário do que tínhamos perspetivado, conseguiu dar muita qualidade às entradas dos seus laterais e nós não estávamos a dar a melhor resposta ao nível da basculação e do desdobramento. Na altura decidi colocar mais um jogador no setor ofensivo, que pudesse suster as subidas dos laterais da Argélia que, através das suas investidas, estavam a criar superioridade numérica no corredor lateral, o que levava a que a equipa não se estabilizasse e fosse sempre atrás do prejuízo para recuperar a bola. A partir do momento em que reestruturámos e que estancámos as subidas dos laterais argelinos o jogo mudou, passámos a estar mais confiantes e a segunda parte foi completamente diferente. Nos jogos seguintes voltámos a adotar o sistema de jogo mais comum porque senti que a equipa se sentia mais confiante em jogar nesse modelo e em função das características dos adversários que apanhámos. A Nigéria, por exemplo, também mudou com o decorrer do torneio, começou em 4-3-3 e terminou em 3-4-3. O José Peseiro conseguiu enquadrar os jogadores que tem e as suas características à competição que é, e é isso que procuramos ir afinando em função do que é o jogo após jogo. No cômputo geral, assinalo a competência para ter qualidade independentemente da disposição tática que vamos adotar.

    Bola na Rede: Já disse que a Argélia surpreendeu pela dinâmica nos corredores. Senti que ameaçou principalmente pelo corredor esquerdo, com o Ait-Nouri por fora ou por dentro, com o Belaili a compensar os movimentos do lateral e o próprio Baghdad Bounedjah a romper e a ganhar a frente aos centrais de dentro para fora. Pergunto-lhe se foi este o principal ponto que explica a diferença na primeira parte e se a presença do Riyad Mahrez, um jogador de outro nível, no corredor direito obrigou a tomar cautelas na basculação?

    Pedro Soares Gonçalves: Não foi a sua presença. Claro que estávamos acautelados para isso, mas não mudámos por nenhum jogador em específico. Sinceramente, senti que o nosso fator de desequilíbrio foi a presença ofensiva dos laterais com capacidade de penetração e velocidade nas ações que nos criou dificuldades. Não estávamos a fazer a basculação entre o setor médio para fechar e ter a cobertura de um dos avançados no lado contrário e isso desequilibrou-nos. Depois vai em onda e em arrasto e a partir do momento em que o desequilíbrio está criado, perante uma equipa com capacidade e eficácia, torna-se mais difícil. Quanto ao Riyad Mahrez, quando interpretamos um adversário analisamos as características individuais dos jogadores e procuramos alertar para os pontos fortes e para os pontos fracos, mas pensamos essencialmente na dimensão e disposição coletiva.

    Bola na Rede: Aos 40 minutos entrou o Mabululu e não voltou a sair do leque de titulares de Angola. Notou-se um jogador muito confiante, qual o fator fundamental para tal?

    Pedro Soares Gonçalves: O Mabululu é um jogador cuja história dava uma bela novela ou um belo documentário. O Mabululu desde cedo foi detetado em Angola como um talento, deu indicadores muito grandes no início da carreira como sénior, mas teve um hiato muito grande em que quase deixou de jogar futebol. Andou por clubes com pouca ou nenhuma expressão, mas de repente começou a dar novamente indicadores fortes. Foi para o 1º De Agosto, regressou à seleção nacional e esteve mesmo presente na CAN 2019. Com pouca expressão e volume de jogo, mas esteve presente. Comigo o Mabululu já passou por todas as circunstâncias. Já foi jogador suplente a entrar cinco minutos, já esteve no banco o jogo todo sem entrar e agora é titular a marcar muitos golos.  O Mabululu tem sido um exemplo de carácter e dedicação extrema e é um exemplo para todos. Está no melhor momento da carreira, altamente motivado, tem sido valorizado e é um contributo muito importante para a seleção. No jogo contra a Argélia não foi titular por uma questão estratégica, mas sabíamos que o íamos lançar no decorrer do jogo. Fiquei muito satisfeito com a CAN que fez. No início lancei-lhe esse desafio, disse-lhe que era importante para a carreira dele ter um grande momento, e estou muito satisfeito com a sua atitude ao longo do tempo. A sua dignidade, dedicação e profissionalismo são um exemplo para todos.

    Bola na Rede: Contra uma das seleções mais temíveis do continente, qual foi o impacto deste empate no grupo?

    Pedro Soares Gonçalves: Pela forma como foi conseguido foi motivador. Nos primeiros 25/30 minutos fomos atropelados, sofremos um golo, sofremos outro que seria o golo do ano não estivesse em fora de jogo, mas, e mais importante, não estávamos a conseguir pegar no jogo. Como fomos atrás do prejuízo e soubemos reagir e dar a volta ficámos muito satisfeitos. No final, com aquela peripécia do livre em cima da linha, foi um empate que nos deu um ponto saboroso perante um dos candidatos ao título. Se era o empate que tínhamos na cabeça? Não. Mas acabou por nos agradar, porque pela história do jogo foi um empate motivante.

    Bola na Rede: Antes de avançar, queria só perguntar pelo Loide Augusto. Passou de titular a dispensado, pode revelar o que aconteceu com o jogador?

    Pedro Soares Gonçalves: O Loide Augusto tem passado por situações delicadas na sua vida. É um jogador jovem, com qualidades extremamente assinaláveis e um potencial enorme. Fruto da instabilidade na carreira dele acabou por nem sempre ser regular na carreira internacional, mas fez um caminho evolutivo, revelou mais consistência e acabou por ser convocado. O Loide está a atravessar um momento delicado do ponto de vista pessoal, necessita de levar a sério essas circunstâncias e não é conversa para menos. Ainda é muito jovem e quero acreditar que tem muito para dar ao futebol e ao futebol angolano em particular. Contudo, tivemos de intervir e eu tive de tomar uma decisão. Não me arrependo da decisão que tomei porque foi muito bom para a equipa e pode ser um episódio que permita ao Loide dar esse passo em frente de melhoria na vida pessoal. Não me agradou minimamente, mas tive de tomar essa decisão.

    «Para o Gelson Dala ter o respaldo de uma carreira como referência em Angola tinha de fazer algo muito extraordinário pela seleção».

    Pedro Soares Gonçalves Angola 2
    Fonte: Federação Angolana de Futebol

    Bola na Rede: Passando à vitória de Angola sobre a Mauritânia (3-2), o sistema tático mudou com Angola uma espécie de 4-4-2 e o Zini a funcionar quer como terceiro médio, quer como segundo avançado. Foi um jogo em que Angola partia como favorita ou, pelo menos candidata à vitória, e foi essa a razão pela postura mais ofensiva?

    Pedro Soares Gonçalves: Como candidata à vitória certamente, porque isso somos em cada jogo, mas não nos considerava favoritos. Os favoritos provam-se dentro de campo e Angola, desde que sou selecionador, está abaixo da Mauritânia no ranking. Na próxima atualização vamos, acredito eu, chegar aos 100 primeiros e ultrapassá-los, mas não considero que fôssemos favoritos. A Mauritânia era seleção do pote 3 e nós seleção do pote 4. Mas eramos candidatos a querer ganhar o jogo e era um jogo importante. Sabíamos que ganhando ficávamos muito bem posicionados para garantir a classificação. Entrámos com a mesma disposição tática com que encarámos vários jogos antes e, de facto, o Zini foi uma peça muito importante no cumprimento das funções híbridas entre médio ofensivo e segundo avançado. Era essa a posição com que eu o utilizava no 1º de Agosto e ele interpreta essas funções muito bem. Como a Mauritânia é uma seleção muito poderosa e dotada do ponto de vista físico, em determinada altura deixámos de conseguir manter a mesma dimensão e intensidade e, especialmente a nível do meio-campo, começámos a ter algumas dificuldades. A determinada altura o jogo tornou-se mais equilibrado, mais vivo e mais partido, mas no cômputo geral fiquei muito satisfeito com o papel da equipa e do Zini, individualmente.

    Bola na Rede: Foi um jogo em que o Fredy, já numa fase mais avançada da carreira, se mostrou como um organizador e um pensador de jogo de nível muito elevado. Qual a sua importância no jogo de Angola nesta função?

    Pedro Soares Gonçalves: O Fredy é o jogador mais velho da equipa e o capitão, tem 33 anos e uma vasta experiência, inclusive nas seleções jovens de Portugal. Essa função começou a ser preparado quando o Mateus Galiano, o “Velho Capitão” como lhe chamo e um jogador de referência inolvidável na equipa, estava a entrar na reta final da carreira internacional. Na saída do Mateus Galiano, o Bastos ainda foi capitão, mas por um conjunto de circunstâncias ele não foi mais chamado, e o Fredy apareceu como capitão com total justiça. Foi crescendo neste papel, foi ganhando essa dimensão e esta CAN contribuiu para todos olharem para o Fredy como capitão da seleção angolana. As prestações dele a mim não me surpreendem, porque é um jogador muito talentoso que interpreta muito bem diferentes posições no meio-campo e na frente de ataque. Neste momento da carreira já se sente muito mais confortável como construtor de jogo e fez uma CAN como ele próprio se propunha a fazer. Infelizmente, no último jogo entrou já com muitas limitações físicas.

    Bola na Rede: Foi também um jogo em que o Gilberto se mostrou pela primeira vez, diria eu, num grande palco internacional com uma grande exibição e o Gelson Dala fez, e vou chamar-lhe assim, o “jogo de uma vida” pela seleção. Qual a importância destes dois extremos para o jogo de Angola?

    Pedro Soares Gonçalves: Essa é a posição em que Angola tem mais riqueza de escolhas e de opções. Temos muitos jogadores de elevada qualidade e que nos dão conforto perante as suas características e qualidades. Acabei por escolher para extremos titulares o Gelson, muitas vezes a deambular com o Zini e a trocar funções, e o Gilberto que também tem muita qualidade a jogar por dentro. Foi o jogo com maior dimensão que jogou pela seleção nacional, mas já tem muitos jogos por Angola e já tinha aparecido em grande nível no último CHAN e nas qualificações. O que está ali ainda tem muito para dar e para crescer. Foi importante aquela sagacidade, espontaneidade e criatividade que, muitas vezes, provoca imprevisibilidade. O Gelson foi ao encontro do repto que lhe lancei, ainda antes da CAN, tal como lancei ao Mabululu. Ele é uma das referências do futebol angolano da atualidade e transmiti-lhe muito diretamente, e agora não é nenhuma inconfidência, que para ter o respaldo de uma carreira como referência em Angola, tinha de fazer algo muito extraordinário pela seleção. Reconhecemos que é um jogador muito talentoso e uma referência da seleção angolana, mas precisava de um grande torneio como este para ser uma das referências de sempre de Angola. O Gelson quando está bem e as lesões que o permitem é um jogador distinto, de outro patamar, e provou-o. Lamento que no jogo com a Nigéria, tanto ele como o Fredy já apresentavam muitas mazelas e não tenham conseguido a mesma performance.

    Bola na Rede: Para ter o Gelson Dala e o Gilberto tão ligados ao jogo, foi importante ter os laterais tão balançados ofensivamente?

    Pedro Soares Gonçalves: Sim. Nós trabalhamos o processo ofensivo e o processo defensivo de forma global onde cada um tem as suas funções. Os comportamentos que adotamos são por encadeamento e por decisão de quem tem a bola e de quem está no centro de jogo, através de desmarcações de rutura ou de apoio. No fundo, queremos ter sempre opções para acelerar ou abrandar o ritmo e queremos ter soluções no ângulo contrário para atrair o adversário para um lado e rapidamente variar o jogo para o outro. O Gelson acabou por jogar muito com o Tó Carneiro, até pela lesão do Núrio Fortuna que não pôde voltar a atuar a partir do terceiro jogo.

    Bola na Rede: No final do jogo Angola acabou por variar novamente o sistema, com a entrada de um terceiro central e de médios com outra capacidade para preencher o meio-campo. Foi pela necessidade de agarrar a vitória?

    Pedro Soares Gonçalves: Sim, porque o jogo ganhou uma vivacidade tremenda e a Mauritânia, vendo-se a perder, carregou forte. Tem jogadores dotados de poderio físico, jogadores com grande capacidade de executar cruzamentos com qualidade e de criar dificuldade e a entrada do Quinito permitiu-nos estancar o jogo e impedir a Mauritânia de criar perigo.

    Bola na Rede: Depois deste jogo o Beni Mukendi abandonou a concentração da seleção insatisfeito com a pouca utilização que tinha. Como é que se reage a uma situação dessas?

    Pedro Soares Gonçalves: Fiquei muito insatisfeito. O Beni precipitou-se, estava a ter conversas com ele há muito tempo, mas ele, tal como qualquer outro jogador, tem de perceber as coisas. O Beni tem trajeto nas seleções jovens e um trajeto comigo que lhe permitiu abrir portas e mostrar todo o seu potencial e talento. Tem de perceber que há outros colegas com qualidade e com os seus momentos. Eu procurei demovê-lo, ver que estávamos muito bem cotados para nos qualificarmos e que, apesar de ainda não ter entrado por decisões táticas, tinha muita possibilidade de entrar. Mas não que me condicionem as decisões. A partir dali se ele entrasse era porque se estava a manifestar e se não entrasse era porque se tinha manifestado. Tínhamos de seguir o mesmo padrão de postura e ele tinha de continuar a dedicar-se. Isto ocorreu na noite a seguir ao jogo, pedi-lhe que não se precipitasse, que descansasse e no dia seguinte tomaria uma decisão muito mais ponderada. Mas ele, infelizmente, manteve a decisão, eventualmente influenciado por fatores exteriores. Muito provavelmente se mantivesse a postura e o foco teria tido espaço na seleção. Isto é um exemplo para todos e especialmente para os mais jovens. Disse-lhe para ficar bem ciente das repercussões da decisão que iria tomar e para não se precipitar porque ninguém de nós queria que ele saísse. Houve jogadores que jogaram mais e uns que jogaram menos, mas a não jogar só o Kadú [Oliveira do Hospital], que tem sido um exemplo de retidão e dedicação extrema, o Inácio, que foi chamado para colmatar uma necessidade e veio com o espírito certo, e o Gelson Mangala, que veio para uma eventualidade por só termos dois guarda-redes. Esta é a postura certa que queremos incutir no seio da seleção de Angola. Jogadores que entendam que se sobrepõem individualmente aos outros não têm espaço.

    Bola na Rede: Referiu os fatores externos como fator de condicionamento. Jogar uma CAN a meio da época tem este impacto negativo e algum desafio extra.

    Pedro Soares Gonçalves: Claro que sim, não fomos só nós a ficar penalizados por isso, outras seleções também o foram. Há um conjunto de seleções africanas que tem recursos e condições fabulosas, o que prende os jogadores. O primeiro fator para se jogar pela seleção é o compromisso em torno da defesa do país, mas há outros que dão outra robustez e enquadram melhor as nossas decisões e, quando não os temos, é difícil. Durante muito tempo não tivemos o mínimo. Nas campanhas para a CAN 2021 e para o Mundial 2022 nem prémios de jogo havia e isso, obviamente, não reforça o sentimento de compromisso em torno da seleção. Felizmente o quadro foi evoluindo, mas não estamos no patamar de seleções como Nigéria, Costa do Marfim, Marrocos, Senegal, Egipto, Argélia ou Tunísia. Isso leva-nos a enfraquecer quando há outros fatores externos a pressionar para que os jogadores abdiquem da sua presença.

    «O Kialonda Gaspar interpreta as situações muito bem, mas não vamos esconder que ouvir o seu nome todos os dias associado a vários clubes afeta».

    Angola Jogadores
    Fonte: CAF

    Bola na Rede: Passando ao jogo com o Burkina Faso (2-0), Angola já estava apurada tal como o adversário. Permitiu entrar com menos pressão para o jogo?

    Pedro Soares Gonçalves: Foi bom sabermos que estávamos qualificados, mas estrategicamente não mudámos nada a forma como nos preparámos, até porque já tínhamos feito toda a preparação. Só soubemos da qualificação na noite anterior, o que nos deu outra tranquilidade, mas estrategicamente não mudou nada.

    Bola na Rede: Angola aborda o jogo com três médios declarados, com o Estrela no lugar do Zini, naquele que é o terceiro sistema tático inicial em três jogos. Permite desmistificar o mito, que ainda resiste, de que na CAN não há palco para o lado mais tático?

    Pedro Soares Gonçalves: Vai ao encontro do nosso trabalho, até porque já tenho 46 jogos na seleção principal, já levamos 210 treinos de campo realizados, atividades de observação e análise audiovisual, reuniões individuais e por setor para definir comportamentos em determinados momentos do jogo. Muitos jogadores já estão comigo desde as seleções jovens e nesta CAN não tivemos nenhuma estreia. Sobre o tempo dá-nos muita maturidade e permite-nos decisões de disposição tática diferente em função do tipo de jogo e do adversário. Ficámos muito satisfeitos pela chegada que tivemos e pelos desequilíbrios que causámos à Mauritânia, mas sentimos ao mesmo tempo que ficámos algo desequilibrados, especialmente a partir do momento em que, por acelerarmos tanto o jogo, acumulámos fadiga. Procurámos ser mais equilibrados e foi nesse sentido que mudámos no setor intermédio.

    Bola na Rede: Vendo de fora, o primeiro golo de Angola surge contra a corrente de jogo. Como analisa a importância deste momento?

    Pedro Soares Gonçalves: Nas cinco edições anteriores a esta o Burkina Faso chegou por três vezes às meias-finais. Isto diz muito sobre o poder do Burkina Faso. Não foi um jogo nada fácil, e em determinados momentos eles tiveram o controlo do jogo pela posse da bola. Nós, pelo rigor nos posicionamentos, nas abordagens e no estancar do volume ofensivo do adversário resistimos, mas sempre a procurar sair em transições mais rápidas do que as que nos caracterizam.

    Bola na Rede: Deu para ver constantemente o Mabululu como referência em apoio e os dois médios a subir e encurtar distâncias para a segunda bola o que levou o jogo a partir um bocadinho. Beneficiou o plano de jogo de Angola?

    Pedro Soares Gonçalves: Sinceramente nós cumprimos. As incidências do jogo foram a nosso favor, mas cumprimos com o que tínhamos delineado. Gostaria de ter mais volume ofensivo? Gostaria, mas a dimensão do adversário e o facto de estar a perder e ter de arriscar mais em busca do empate obrigou-nos a defender muito e de forma relativamente confortável para nós porque fomos muito rigorosos no cumprimento desse papel. O Burkina Faso acabou por não ter grandes situações de golo e estivemos confortáveis. Nestes momentos, é importante ter a equipa com esta capacidade de compromisso no processo defensivo e de ser paciente e explorar os momentos certos.

    Bola na Rede: Em relação ao conforto defensivo, parece-me ter sido a melhor exibição por Angola do Kialonda Gaspar. Apesar de cometer alguns erros ao longo do torneio, destacou-se contra o Burkina Faso na defesa da área, no controlo da profundidade e na capacidade de antecipar e vencer duelos. Esta capacidade pode ser em certos momentos uma vulnerabilidade, como o foi nos golos da Argélia e da Nigéria? Sentiu dificuldades de adaptação do Kialonda Gaspar a uma linha de quatro?

    Pedro Soares Gonçalves: Foi considerado o melhor em campo nesse jogo. O Kialonda tem-se destacado e tornou-se internacional comigo. Não entrou de caras na seleção, mas em pouco tempo assumiu-se com a notoriedade que teve, chegou a Portugal e afirmou-se da forma como se afirmou. Neste momento é o jogador com mais tempo de jogo nos 46 jogos que tenho por Angola e um dos três jogadores com mais jogos. Tem primado pela postura, pelo carácter e pela dedicação. Teve alguma inconstância na CAN, mas há fatores que contribuíram para tal. Ele é um jovem que interpreta as situações muito bem a realidade e que se procura manter sereno, tranquilo e focado nas suas obrigações, mas não vamos esconder que ouvir o seu nome todos os dias associado a vários clubes afeta. Representa situações pessoais, não só para ele como para a família. Ter uma dimensão financeira e poder passar a ter uma dimensão colossalmente diferente afeta qualquer um. Há coisas que mudam radicalmente a nossa vida e, mesmo assim, considero que ele foi muito equilibrado neste período.

    Bola na Rede: Entre estes clubes encontrava-se o FC Porto ao qual foi associado?

    Pedro Soares Gonçalves: Não sei que clubes, não lhes faço essa pergunta. Não faço ideia se era o FC Porto ou outros clubes. Sei que foi sondado, não sei se diretamente, por vários clubes e de várias nacionalidades diferentes. Ainda que ele tenha feito um esforço para se manter sereno, claro que teve a sua influência. Não vou apontar um falhanço aqui ou um falhanço ali. São evidências e de certeza que ele não interveio para errar. Teve um ou outro deslize, mas teve momentos muito altos que foram muto importantes para nós. Não estamos à procura da falha para julgar. Teve descuidos, mas teve correções e isso é o mais importante.

    Bola na Rede: Por falar em mercado de transferências o Jonathan Buatu, parceiro do Kialonda Gaspar no centro da defesa, foi oficializado no Gil Vicente entre o jogo com o Burkina Faso e o encontro com a Namíbia. Como é que o jogador viveu isto e como é que é possível lidar com o mercado aberto durante a competição?

    Pedro Soares Gonçalves: São situações delicadas e que podem ter mais ou menos influência consoante o impacto na vida de cada um. O Buatu é um jogador experiente, tem 30 anos, está há muito na seleção nacional e tem um perfil de tranquilidade, maturidade e muita experiência. Não senti o Buatu minimamente desequilibrado com estas circunstâncias. É daqueles jogadores em que os jogos passam e não lhe damos a mínima atenção, mas é um pêndulo da equipa.

    Bola na Rede: Considera-o um reforço de peso para o Gil Vicente na segunda metade da temporada?

    Pedro Soares Gonçalves: Se estiver ao mesmo nível da seleção nacional, claro que sim. O Buatu, o Kialonda Gaspar e o Tó Carneiro são os três jogadores que têm mais jogos comigo na seleção nacional e dá para perceber que o Buatu tem tido desempenhos muito bons e de uma extrema regularidade. Se os conseguir manter no Gil Vicente, para a dimensão que está habituado e tendo em conta os adversários que já apanhou, vai dar boa resposta na Primeira Liga.

    «Podíamos pensar em ficar um pouco mais fechados e explorar uma bola parada ou um contra-ataque, mas procurámos assumir o jogo e conseguimo-lo».

    Pedro Soares Gonçalves Angola
    Fonte: Federação Angolana de Futebol

    Bola na Rede: Saltando para o jogo com a Namíbia (3-0), o primeiro na fase a eliminar, a entrada do Buatu é a única mexida no onze de Angola. Foi procurar a estabilidade numa fase decisiva do torneio, num encontro a eliminar que viria a ser histórico?

    Pedro Soares Gonçalves: O Buatu foi uma entrada, mas encarado como algo absolutamente normal. Sabíamos que estávamos a entrar num momento em que podíamos fazer história, nunca Angola tinha ganho um jogo na fase a eliminar da CAN. O nosso pensamento era consegui-lo, mas do outro lado também estava uma seleção a fazer história com quem somos vizinhos e temos muito boa relação. Entre Angola e a Namíbia existem muito boas relações diplomáticas, mas não deixa de ser um dérbi local. A Namíbia joga um futebol completamente diferente, procura provocar muita vertigem, está sempre a acelerar e a procurar um jogo muito direto, provoca duelos individuais e tem jogadores muito fortes neste quesito. A Namíbia é uma seleção com algumas semelhanças à Mauritânia, que, ainda assim, tem um futebol um pouco mais equilibrado com o europeu. A Namíbia é quase um regresso ao futebol britânico à antiga, estica muito o jogo, sempre com uma vertigem e aceleração que são características da seleção. É algo a que não estamos muito habituados e que causa algum desconforto, mas sabíamos que podíamos apostar em alguns pontos de fragilidade da Namíbia. O que não contávamos era ter o nosso guarda-redes [Neblú] expulso fruto de uma falha comprometedora. Aí percebemos que teríamos uma montanha para escalar pela frente, íamos passar praticamente 80 minutos, a contar com descontos, com menos um. Podíamos pensar em ficar um pouco mais fechados e explorar uma bola parada ou um contra-ataque, mas procurámos assumir o jogo e conseguimo-lo. A determinada altura, já a ganhar 1-0, o central da Namíbia [Lubeni Haukongo], que até era o central com mais capacidade nos duelos e com maior capacidade ofensiva, foi expulso, na jogada seguinte fazemos o 2-0 e o jogo passa a ter outro cariz. Foi um jogo que nos saiu muito bem, com golos de belo efeito, jogadas extraordinárias, a vitória mais robusta de sempre de Angola numa CAN e vai ser para sempre um jogo a recordar.

    Bola na Rede: A expulsão do Neblú foi um momento-chave no jogo. Decidiu retirar um médio e assumiu um 4-2-3 com os extremos mais participativos também na criação. Foi uma aposta ousada, que viria a ter recompensa, e uma tentativa de passar uma mensagem ofensiva à equipa?

    Pedro Soares Gonçalves: O mais normal seria tirar um avançado e manter o bloco defensivo muito consistente entre o setor defensivo e o setor intermédio. Mas senti que o Show e o Fredy, com tanta experiência a jogar juntos, iam dar conta do recado e estavam ambos a atravessar um momento muito bom. Precisávamos de dar profundidade ao nosso ataque e acreditei que seríamos capazes de nos manter equilibrados. Tivemos de reforçar o esforço de cada um, mas mantivemos o jogo repartido e nunca cedemos à ideia de lhes dar a iniciativa de jogo e tentar explorar um momento que fosse chave para nós. Saiu-nos bem e ainda bem.

    Bola na Rede: Além dos dois golos que marcou, o Gelson Dala parece-me ter feito uma exibição muito madura ao nível da identificação do espaço para receber a bola e da capacidade de atrair, temporizar e soltar na frente. É um jogador que está em ponto rebuçado da carreira?

    Pedro Soares Gonçalves: Os golos e as exibições ajudam a motivar. O Gelson, como se costuma dizer, estava em ponto rebuçado. Sabia exatamente os momentos para acelerar, os momentos em que tinha de dar apoio, para fechar quando a equipa adversária atacava pelo lado contrário e colaborar com o defesa do seu lado para fechar o ângulo de ataque. Fez uma exibição tremenda, tanto no processo ofensivo, como no processo defensivo.

    Bola na Rede: Foi um jogo com circunstâncias difíceis, mas com uma vitória clara, fruto da capacidade de ser eficiente nos cinco ou seis momentos do jogo (se dividirmos em bolas paradas ofensivas e defensivas). Ter um jogo tão competente em todos os momentos e ter a capacidade de manter a engrenagem mesmo com menos um em campo é prova do amadurecimento da equipa?

    Pedro Soares Gonçalves: Sem dúvida que sim. Fomos muito competentes em todos os momentos, a Namíbia teve um ou outro remate só. Ao longo de toda a CAN as seleções que nos criaram mais situações de perigo, e só a espaços, foram a Argélia naquela primeira parte, e a Mauritânia num momento em que acusámos fadiga no setor intermédio. Fora isso fomos sempre uma equipa bastante equilibrada, com um apontamento aqui e uma falha ali, que às vezes custaram caro, mas fomos equilibrados em todos os momentos.

    Bola na Rede: O terceiro golo de Angola parece-me a representação perfeita das capacidades dos três jogadores que mais se destacaram na CAN. Lançamento do Fredy, temporização do Gelson Dala e um remate fabuloso do Mabululu. São também os seus destaques individuais de Angola no torneio?

    Pedro Soares Gonçalves: Estou de acordo. Houve mais destaques e jogadores que se afirmaram, mas se falarmos dos três que estiveram num patamar superior, sem dúvida que foram eles. Esse golo acaba por ser paradigmático daquilo que foi a CAN para esses três jogadores.

    Bola na Rede: O Zito Luvumbo entrou em todos os jogos da CAN e sempre muito ligado à corrente do jogo. É um jogador que, se não houvesse tanta abundância de jogo nas posições mais avançadas, teria mais tempo de jogo?

    Pedro Soares Gonçalves: Sim. O Zito Luvumbo já tem uma longa história comigo, foi o primeiro jogador que indiquei para o 1º de Agosto quando tinha apenas 13 anos. Desde então ele passou por todas as etapas, estreou-se comigo em todos os escalões e já tem 17 jogos na seleção. É claramente um jogador com um potencial tremendo e faz parte do elenco, mas é uma posição onde temos uma abundância de jogadores talentosos e não podem jogar todos ao mesmo tempo. Claro que o Zito quer jogar mais e ter mais espaço, mas fiquei muito satisfeito com a sua postura e atitude porque sempre que entrou trouxe valor desportivo. É essa a mentalidade que queremos ver incutida na seleção, quem entra em campo tem de mostrar todas as suas qualidades e ajudar a equipa.

    Bola na Rede: O apito final do encontro contra a Namíbia entra para a história de Angola, foi uma nova página escrita no futebol angolano. Qual a primeira coisa que lhe veio à cabeça nesse momento?

    Pedro Soares Gonçalves: Ver o esforço, a resiliência e o foco nos momentos em que fui muito criticado. Fui muito criticado e algumas críticas foram infundadas fruto do ambiente que se quis criar em Angola, vindo de setores muito bem identificados com motivações também elas muito bem identificadas. Foi preciso ser muito resiliente e manter o foco e a capacidade de trabalho para chegarmos a este momento.

    «O José Peseiro tem muito mérito porque encontrou o plano ideal».

    Bola na Rede: A três jogos de um possível título o que muda na preparação, no mindset, na crença?

    Pedro Soares Gonçalves: A motivação subiu em flecha. Traçámos um conjunto de objetivos que estávamos a ultrapassar e já tínhamos dito que, quem chega aos quartos de final de uma grande competição, tem de pensar sempre em ganhar a final. Não importa o adversário que calhe à frente, só há um foco que é ganhar e tentar ser campeão. Foi isso que procurámos, mas as circunstâncias do torneio e vários fatores levaram a que acabássemos por perder com a Nigéria. Foi um jogo muito equilibrado e disputado perante um adversário que é um colosso africano com jogadores que militam nas melhores ligas do mundo. Eu votei no Victor Osimhen para melhor jogador do mundo no ano passado, o Lookman fez o estardalhaço que fez quando a Atalanta jogou em Alvalade. Jogadores como o Kelechi Iheanacho e o Samuel Chukwueze praticamente não têm espaço na seleção e ajuda a perceber a dimensão do que nos estávamos a propor. Em cinco jogos jogámos em três cidades diferentes e a Nigéria, que nem ganhou o grupo, esteve sempre em Abidjã. Há uma disparidade porque querem valorizar quem ganha o grupo, mas nós ganhámos e andámos por três cidades diferentes, com climas muito diferentes e exigentes, com deslocações e fadiga acumulada. Para além disso, chegámos ao jogo com a Nigéria sem o Neblú [expulso] e o Núrio Fortuna [lesão]e com o Gelson Dala e o Fredy a iniciarem a preparação lesionados. Nem fizeram todos os treinos porque estavam condicionados. O Keliano, e agora posso revelá-lo, estava planeado para jogar de início, de acordo com a estratégia que tínhamos montada, mas lesionou-se a dois dias do jogo. Eram muitas condicionantes e a própria história do jogo foi dura. Tivemos a primeira oportunidade, não a marcámos e a Nigéria acabou por chegar ao golo num momento de desequilíbrio nosso. Fica visível a falha do Kialonda Gaspar na interceção, mas já foi ao lance em prejuízo. Tivemos outra vez a nossa oportunidade, o Zini isolado podia ter feito o 1-1, mas a bola esbarrou no poste. Arriscámos um pouco e expusemo-nos aos contra-ataques nigerianos, mas mesmo assim, nunca nos criaram grande perigo. Acabámos por ir aos limites e quero acreditar que, sem tantas mazelas, poderíamos ter discutido ainda mais este jogo e ter ultrapassado a Nigéria.

    Bola na Rede: Focando agora em alguns pormenores, foi um início muito forte de Angola. O objetivo era marcar cedo para obrigar a Nigéria a ter de correr atrás do resultado desde os primeiros minutos?

    Pedro Soares Gonçalves: O objetivo era marcar cedo, sabemos que quem marca primeiro passa a liderar o controlo do jogo. A Nigéria tem todos os jogadores ao mais alto nível, habituados a competições extremamente exigentes e em ligas em que a dimensão física tem um papel determinante. Três centrais muito experientes e de grande dimensão física. Dois alas, o Zaidu e o Aina, com uma capacidade fisiológica e uma dimensão física inesgotável. Não estou a dizer que sejam os jogadores mais virtuosos do mundo, mas nessas dimensões de performance são inesgotáveis. Dois elementos do meio-campo muito experientes e pendulares. E uma frente de ataque que é do melhor que existe em África e no mundo. No fundo, o José Peseiro tem muito mérito porque encontrou o plano ideal. Procura estancar e impedir que o adversário consiga construir situações de golo e tem três jogadores na frente que, com a dimensão e a velocidade com que jogam, mais cedo ou mais tarde conseguem fazer um golo. Estão a comprová-lo e estão de parabéns, porque têm um plano muito bom e estão na final contra a Costa do Marfim. Toda a gente está surpreendida com a Costa do Marfim pelo percurso feito, mas é uma final esperada.

    Bola na Rede: Por falar em qualidade, o Victor Osimhen é um avançado de um nível muito alto e parece ter condicionado a abordagem defensiva de Angola pela capacidade de fixar os defesas e de permitir ao Moses Simon e ao Lookman receber por fora e aproveitar o espaço entrelinhas fora da zona de ação do Show. Quão difícil é defender estes jogadores?

    Pedro Soares Gonçalves: É muito difícil porque temos de nos manter sempre equilibrados. Esse era o nosso repto: tínhamos de atacar com volume, com capacidade numérica, mas ao mesmo tempo nunca podíamos ficar desequilibrados. A linha avançada da Nigéria faz um trabalho extraordinário de pressão à construção defensiva adversária, mas depois desse momento ficam em recuperação e a preparar a transição. O José Peseiro é a figura certa para falar do plano de jogo da Nigéria, mas foi isto que identificámos. Eles são matreiros na forma como deixam sair a jogar e depois a linha da frente faz uma pressão tremenda. Alguns dos golos que marcaram saíram desta pressão, mas quando ultrapassada têm sete jogadores que garantem estabilidade. São jogadores com dimensão tática, capacidade fisiológica, fortes nos duelos e que garantem o equilíbrio. Logo que ganham a bola, têm três flechas dotadas de capacidade e qualidade técnica que vão criar estragos. Nós procurámos sempre mantermo-nos equilibrados para não sermos surpreendidos nessas saídas. Lamento que o golo tenha surgido num momento em que o Fredy, que tinha acabado de receber assistência, ainda estava combalido e não estava reposicionado da melhor maneira em campo. Abriu um buraco que foi explorado e depois o Kialonda Gaspar foi em prejuízo ao corredor e precipitou-se na abordagem. A partir daí foi criado o desequilíbrio. A marcação e o acompanhamento não foram os melhores, mas estamos a falar de jogadores deste patamar.

    Bola na Rede: Aos quatro minutos o remate do Mabululu parece-me ter sido precedido de algum trabalho de casa. Não foi a única vez no jogo que Angola bateu um canto desta maneira, uma bola batida ao primeiro poste para o Gilberto desviar para o coração da área. Era algo que estava preparado antecipadamente?

    Pedro Soares Gonçalves: Nós tínhamos várias soluções apontadas, inclusive até de jogo curto que acabámos por não utilizar muito. Se entender que é forçoso tomarmos determinadas decisões tomamo-las, mas muitas das vezes tem de ser o próprio jogador a ler o enquadramento e tomar a decisão dentro do que temos alinhado ou de improviso. Procurámos o primeiro poste porque sabíamos que era lá que podíamos tirar partido de uma situação de desequilíbrio. Em função das características dos jogadores da Nigéria colocar bolas para o segundo poste tornaria muito mais difícil para nós tirar algum partido.

    Bola na Rede: Quanto ao lance do Zini, a sensação é de ‘A bola não entrou e podia ter entrado’?

    Pedro Soares Gonçalves: O lance é uma das jogadas que nós procurámos trabalhar, a rotura interior. Queríamos dar dimensão lateral ao jogo para criarmos incerteza de onde íamos entrar e depois explorar as penetrações interiores. Saiu quase tudo perfeito, o passe do Show foi magnífico, a desmarcação do Zini e a receção também. Eventualmente a dimensão do guarda-redes da Nigéria, com quase dois metros, fez o Zini caprichar um pouco mais para desviar a bola e foi isso que levou a bola a ir ao poste e não para dentro. Foi pena porque naquele momento estávamos por cima e, se tivéssemos feito o golo, iríamos crescer no jogo a nível motivacional.

    «Criámos o sonho pelo jogo e voltámos a fazer o povo sonhar».

    Mabululu foi um dos destaques da seleção angolana
    Fonte: CAF

    Bola na Rede: Depois do apito final, quais as primeiras sensações?

    Pedro Soares Gonçalves: Essencialmente de dever cumprido. Dei os parabéns aos jogadores pela entrega e pelo percurso. Ficamos sempre com a sensação de que podíamos ter ido mais longe, mas o percurso estava concluído e ali mais do que ser emocional, é importante ser realista. Procurei dar conforto, valorizar o nosso percurso, e agradecer todo o apoio que veio de Angola e que nesse jogo se fez notar. Conseguimos a virtude de voltar a agregar o povo angolano e Angola à sua seleção, aos Palancas Negras. Há muito que não se via nesta dimensão.

    Bola na Rede: O que se sucedeu nos dias seguintes?

    Pedro Soares Gonçalves: Programou-se uma receção à equipa. Ter sido a um domingo à noite pode ter-lhe tirado dimensão, mas o importante é o reconhecimento. Criámos o sonho pelo jogo e voltámos a fazer o povo sonhar e não nos vamos esquecer. São momentos que ficam marcados na minha vida pessoal e na minha vida profissional. Há momentos que são irrepetíveis.

    Bola na Rede: A Federação Angolana de Futebol já confirmou a sua continuação até ao Mundial 2026. Qual o principal objetivo?

    Pedro Soares Gonçalves: Neste momento o meu contrato terminou e, terminando o contrato, colocam-se novos desafios. O passado por Angola é um marco da minha vida e fico satisfeito que as pessoas manifestem interesse na minha continuidade. Mas há um conjunto de fatores que temos de analisar e é só o meu contrato. Com este reconhecimento, e até pelos próprios discursos, foi lançada a dimensão para as etapas seguintes serem a um ponto mais elevado. Existe potencial, mas com os recursos que temos disponíveis neste momento, não o vamos conseguir concretizar. Temos de redimensionar os recursos em função do que pretendemos, só assim podemos ambicionar chegar à dimensão a que nos queremos propor.

    Bola na Rede: O José Peseiro, treinador da Nigéria, antes e depois do jogo afirmou que Angola era candidata a marcar presença no próximo Mundial pela qualidade dos jogadores e do trabalho. Como vê estas declarações?

    Pedro Soares Gonçalves: Há seis seleções no grupo que querem chegar ao Mundial e só passa uma. Nós somos candidatos, mas estamos longe de ser favoritos. Basta ver o contexto histórico. Nós temos potencial para nos propormos a ombrear e chegar lá, mas temos de redimensionar as coisas de forma estrutural para chegar ao Mundial e melhorarmos a performance na próxima CAN.

    Bola na Rede: O facto das vagas africanas quase duplicarem, passando de cinco para nove com mais uma na repescagem, permite alimentar o sonho de outra maneira?

    Pedro Soares Gonçalves: Claro que sim, mas a verdade é esta: são grupos de seis em que passa um e há a chance de um melhor segundo classificado passar três eliminatórias e chegar ao Mundial. Estamos num grupo extramente equilibrado e, neste momento, estamos em quarto lugar com dois pontos e a dois pontos dos primeiros, sendo que somos a única seleção que jogou os dois jogos fora. Estamos na corrida para estarmos presentes, mas temos de perceber que temos de criar condições para que o discurso seja condizente com as ações.

    «Este trajeto deu-me outra visibilidade e recebi algumas abordagens».

    Pedro Soares Gonçalves Angola
    Fonte: Federação Angolana

    Bola na Rede: Continua a 100% na seleção de Angola ou um regresso a Portugal está no horizonte para um futuro próximo?

    Pedro Soares Gonçalves: O regresso a Portugal está sempre presente. É o meu país, onde me sinto confortável e gosto muito de Portugal. Podemos ser muito críticos em relação a várias, mas todos temos um orgulho tremendo em ser portugueses. Não só por estar no estrangeiro, já o tinha quando vivia em Portugal e o regresso a Portugal estará para sempre presente. Existe vontade mútua de dar continuidade a este projeto da seleção de Angola, resta saber se existem condições para tal. Ainda há alguns assuntos a resolver e ultrapassar. O facto de termos feito uma CAN como a que fizemos deu outra visibilidade e as pessoas começaram a ver que é um trabalho que já vem de longe e que mudou radicalmente o panorama do futebol angolano a nível do futebol de seleções, e não só. Este trajeto deu-me outra visibilidade e recebi algumas abordagens. Contudo, se estou em Angola há tento tempo, se isto é um trabalho em extensão e se me sinto tão ligado, Angola será sempre uma prioridade. Mas a decisão que vou tomar tem de ser ponderada e bem definida.

    Bola na Rede: Não lhe pergunto o clube, mas de que divisões e de que tamanho é que são essas abordagens?

    Pedro Soares Gonçalves: Não me quero pronunciar, sinceramente. O que é certo é que estarei sempre mais perto de dar continuidade ao meu trabalho em Angola, mas tenho de ser ponderado e de decidir por convicção. Tenho este espírito de missão, em 27 anos de carreira só representei cinco instituições e acho que isso revela bem o meu envolvimento. A partir do momento em que me predisponho a entrar em determinada missão é para ir até ao fim e fazer o melhor. Não gosto de me arrepender de decisões e, felizmente, até agora nunca me arrependi. É assim que quero continuar.

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