«Deixemo-nos de histórias. O Sporting é grande, o Porto é grande, mas o Benfica é o Benfica» – Entrevista BnR com Professor Neca

– Paulinho, Rodrigo Pinho, Nanú e Helton Leite: o futuro dos ex-pupilos –

«4-4-2 para aqui, 4-3-3 para ali, mas o que importa é que estamos sempre a lidar com humanos»

Bola na Rede: Regressando a Portugal, na temporada 2012/13, treinou o Paulinho, atualmente no Sporting. Já naquela altura lhe reconhecia talento?

Professor Neca: Fui para o Trofense que estava com problemas terríveis. Tive dias para construir uma equipa para estar na Segunda Liga, senão o clube desaparecia. Organizámos uma equipa com poucos meios. Conhecia o Paulinho do Santa Maria. Tinha visto aquele miúdo, que era júnior e tinha feito um jogo nos seniores, e ele tinha qualidades. Perguntei ao presidente se podia ir ao clube da minha terra buscar o miúdo. O presidente diz-me: “Então estamos aqui a tentar formar uma equipa para a Segunda Liga e quer-me ir buscar um júnior ao Santa Maria?”. Respondi-lhe: “No lugar do Paulinho, preferia ir buscar o Ronaldo, dá?”. O Paulinho acabou por vir e começar a dar os primeiros passos comigo. Temos uma relação muito boa. Passado algum tempo, começou a evoluir de uma forma muito rápida, tal como esperava. Falava muito com o Paulinho. A determinada altura, liguei ao Rui Jorge e aconselhei-o a ir à Trofa ver o miúdo. O Rui Jorge tinha confiança em mim, porque sabia que não lhe ia indicar um jogador qualquer. Fez uma internacionalização, num jogo particular, pelos sub-21. Eu saí do Trofense. Não acabei a época, porque aquilo mudou de direção. O Paulinho ficou. Passado um tempo, disse ao presidente do Gil Vicente para o ir buscar. AA vida dos presidentes é difícil, porque não são bem aconselhados. Ainda bem que o Rui Costa é presidente do Benfica. É um homem que é do futebol, entende o futebol, identifica-se com o futebol e, seguramente, vai fazer um bom trabalho no Benfica. É importante que apareçam outros Ruis Costas no futebol. O presidente do Gil Vicente acabou por contrariar o movimento que estava por trás dele e foi buscar o Paulinho. Depois, teve a sorte de o Abel Ferreira o ir buscar ao Gil Vicente. O Abel Ferreira potenciou muito bem o Paulinho. Com ele, o Paulinho jogou com dois avançados e cresceu exponencialmente como jogador. Isso levou a que o Rúben Amorim, outro treinador jovem e que entende o que é futebol (temos ali treinador), o tivesse ido buscar por uma pipa de massa ao Braga. O Paulinho já chegou à seleção e vai voltar a chegar à seleção. O Braga baixou muito por lhe faltar o Paulinho. O Sporting foi campeão nacional com um golo do Paulinho. O que ele trabalha para a equipa, em termos coletivos, é de uma importância enorme. 

Bola na Rede: Às vezes, é mais o espaço que o Paulinho abre para os outros. Mesmo que não apareça tanto em situações de finalização, a forma como se movimenta arrasta marcações para jogadores como o Pedro Gonçalves aparecerem na zona do ponta-de-lança e que acabam por beneficiar disso.

Professor Neca: Exatamente. A envolvência dele no jogo permite assistir, defender e criar espaços para os outros. O Pedro Gonçalves encheu o pote, porque esteve lá um indivíduo que trabalhou para ele.  O Paulinho vai continuar a ser um jogador extremamente importante na equipa. Seria um jogador brilhante a jogar em 4-4-2, mas nós não temos muito essa cultura. Os clubes utilizam cada vez mais o 3-4-3 que foi a tática que deu o título de campeão, com toda a justiça, ao Sporting. Sem ter os melhores jogadores, teve a melhor equipa.

Bola na Rede: Em 2015, disse que se ia dedicar ao dirigismo. Se é verdade que não mais assumiu uma equipa enquanto técnico principal, também é verdade que nunca deixou o banco de suplentes. Está a adiar esse adeus?

Professor Neca: Nunca mais serei treinador principal em Portugal. Ponto final parágrafo. Nesse ano, tinha saído de uma reunião para ser diretor desportivo do Gil Vicente. Ainda nem tinha chegado a casa e, no caminho, o Lito Vidigal, que foi meu jogador na seleção de Angola, liga-me. Disse-me que ia para um projeto e que queria que fosse com ele. Aquela ideia também me entusiasmava. Ia como conselheiro, como treinador dos treinadores, o homem mais experiente, o homem que estava entre a equipa técnica, a direção e os jogadores. Teria toda a liberdade para estar onde entendesse.

Bola na Rede: Numa lógica contrária ao que hoje acontece, ou seja, o treinador-adjunto ser um treinador jovem que, mais dia menos dia, vai assumir uma equipa como técnico principal…

Professor Neca: Foram seis anos e foi uma experiência fantástica. Fui com o Lito para FC Arouca e acabámos por ir à Europa. O Arouquinha era um clube com carências tremendas, mas lá pusemos mãos à obra. Já na segunda época, aparece-nos o convite para o Maccabi Tel Aviv. O diretor desportivo era o filho do Johan Cruyff, uma das minhas grandes referências enquanto jogador, o Jordi Cruyff. Aprendi muito com ele. Partilhámos muitas coisas sobre futebol.

Bola na Rede: Tinha uma visão do jogo parecida com o pai?

Professor Neca: Completamente. Não é por acaso que ele agora foi para o FC Barcelona como conselheiro do presidente. Um pouco como o que eu fazia no Maccabi Tel Aviv: um indivíduo que está perto da estrutura e que ajuda, nas dificuldades, a colocar pontes onde não existe contacto. Isso é fundamental no futebol. 4-4-2 para aqui, 4-3-3 para ali, mas o que importa é que estamos sempre a lidar com humanos. É aí que entra a importância do treinador mais experiente. Depois, estivemos [com Lito Vidigal] no Boavista. Não tenho dúvidas nenhumas que o Boavista descia de divisão nesse ano. Foi um desafio tremendo que tivemos. Estávamos em penúltimo. Desde que pegámos no Boavista, só Porto, Benfica e Sporting fizeram mais pontos. Até que o Braga fizemos mais pontos. De seguida, apareceu o Marítimo e eu já estive para não ir, porque tinha um convite para ser diretor desportivo da Primeira Liga, aquilo com que sonhava. Acabei por ir com o Lito, mas não correu bem. Agora, estou um bocado parado a olhar para as coisas, vendo e refletindo o futebol. Não tenho dúvidas que o futebol tem uma enorme lacuna. Quem está perto da administração, dos jogadores e dos treinadores, na generalidade, não tem competências para ajudar a que exista uma comunicação estreita, limpa e sem conflitos. Foi a experiência que tive ao longo de 40 anos a trabalhar em contextos diferentes. Normalmente, os clubes, para arranjarem um lugar para um indivíduo que acabou a carreira, metem-no no diretor desportivo. Isto não faz sentido. Não pode ser, porque não tem as competências para ajudar o clube a ter resultados positivos. Vejo clubes a cometerem erros tremendos, porque falta maturidade e comunicação. Há treinadores jovens que reúnem mais competências do que eu para treinar. Mais competências do que eu para ser dirigente, não vejo ninguém.

Bola na Rede: As equipas por onde tem acompanhado Lito Vidigal ficam rotuladas por um estilo mais defensivo. Dá-lhe o mesmo gozo trabalhar uma equipa para estar bem organizada defensivamente e fazer disso a sua maior arma, do mesmo modo que lhe dá gozo trabalhar outras estratégias?

Professor Neca: Há o aspeto tático em que olhamos para os jogadores e vemos o que eles podem dar. Se estamos em equipas com grande qualidade, o nosso futebol tem que ser mais ousado. Se temos menos qualidade, tem que ser menos ousado e estar em função das qualidades dos jogadores. Um treinador de futebol só sobrevive se tiver resultados. Os melhores treinadores não são o Mourinho, o Guardiola, o Klopp ou o Mancini. São grandes treinadores, mas os melhores são os que conseguem otimizar os jogadores que têm à sua disposição para fazer uma boa equipa. Por exemplo, hoje o Benfica está melhor, porque melhorou defensivamente. Jorge Jesus percebeu que se não for segura a defender, a equipa não faz coisa nenhuma. Nós, para irmos com o Arouca às competições europeias, tínhamos que ter uma estratégia de jogo que permitisse jogar bem para fazermos pontos. Não é a equipa que tem mais posse de bola que ganha, mas sim a que, estrategicamente, sabe potenciar os melhores jogadores. É nesse equilíbrio que se monta a estratégia para ganhar jogos.

Bola na Rede: No final de um jogo no Dragão, em que, já pelo CS Marítimo, conseguem vencer por 3-2, disse, no final, o seguinte: “Taticamente fomos perfeitos. É na estratégia que as equipas menos dotadas podem ganhar às grandes equipas”. Para si a estratégia é o fator mais decisivo num jogo?

Professor Neca: Nesse jogo, estrategicamente, estivemos muito bem. Estava a ver o aquecimento e vejo o Amir, o guarda-redes, com uma disponibilidade e concentração com que nunca tinha visto até então. O guarda-redes, normalmente, é o primeiro a entrar e o primeiro a sair do aquecimento. Vou ao balneário, ainda estava a equipa a aquecer, e coloquei-me perto do Amir e disse-lhe que ele ia fazer uma exibição do outro mundo. Não digo isto todos os dias. Sentia mesmo aquilo. Vamos para o jogo e ganhámos limpinho. Uma equipa que joga a defender não ganha 3-2 no Dragão. Três e podiam ter sido mais. O Amir defendeu um penálti. Numa estrutura, muitas vezes há jogadores que não são acarinhados como eles precisam para estarem em boas condições para a profissão deles.

Bola na Rede: Outros jogadores em evidência nesse jogo foram o Rodrigo Pinho e o Nanú. São jogadores úteis para o Benfica e para o Porto, respetivamente?

Professor Neca: Sem dúvida. O Benfica tem pontas-de-lança para todos os jogos e todos de qualidade. Mesmo assim, o Rodrigo Pinho já está a jogar e fazer golo. Eu dizia-lhe: “Ó, Pinho, vou ali para o banco sentar-me só para te ver treinar”. Tinha e tem uma qualidade extraordinária. “Perdeste muito tempo a andar aqui em clubes secundários”, dizia-lhe também. É um extraordinário profissional. Vai jogar no Benfica muitas vezes. Pode ser titular do Benfica, claramente. Nanú é um menino guineense, bem formado, com um potencial enorme. Tem que estar psicologicamente no auge. Vai ser muito difícil vingar no Porto, porque o Porto é um clube para ser campeão, mas tem qualidades intrínsecas.

Bola na Rede: E o Helton Leite? O que acha da gestão que tem sido feita da baliza do Benfica?

Professor Neca: O Helton Leite está com o Odysseas. Foi meu guarda-redes no Boavista FC.  O pai dele [João Leite] foi guarda-redes no Vitória SC e foi meu adversário. Conversava com o Helton e dizia-lhe que ele tinha tudo para dar o salto para o Benfica, Porto ou Sporting. Está no Benfica. Já defendeu, e bem. Agora está a jogar o Odysseas, que também é um belíssimo guarda-redes e tem mais anos de Benfica, e está a defender muito bem. O Helton está à espera da oportunidade dele. Um clube como o Benfica tem que ter dois guarda-redes deste nível, tal como o Porto tem o Marchesín e o Diogo Costa. Neste momento, o Marchesín, que é guarda-redes da seleção argentina, não entra no Porto, porque o Diogo é um guarda-redes de grande categoria. O Helton Leite tem que trabalhar para quando tiver oportunidade responder da mesma forma como está a responder o Odysseas.

Bola na Rede: Na segunda passagem pelo Vitória FC, com Lito Vidigal, pegam na equipa a quatro jogos do fim. Foi uma pequena loucura?

Professor Neca: O Lito telefona-me à meia-noite. “Mister, temos aqui uma situação. Faltam quatro jogos e o Vitória FC quer que a gente vá para lá. O que é que acha? O capitão, o [José] Semedo, e o sub-capitão, o Zequinha, vieram a minha casa“. Fizemos as malas e fomos embora para Setúbal. Disse ao Lito que se os capitães tinham ido ter com ele era porque a equipa estava com ele. Nesse dia, às quatro da manhã arrancámos para estarmos em Setúbal às sete. No penúltimo jogo, estávamos a jantar para ir jogar no dia seguinte com o Sporting, que tinha ganho os jogos todos com o Rúben Amorim. Durante o jantar, estava a jogar o CD Tondela com o Braga. Para nós, era importante que o Braga ganhasse, como era normal, para o Tondela ficar ali quase na descida. Resultado? Tondela 1-0 Braga. Estávamos a jantar e ouviam-se as moscas, um silêncio sepulcral. Toda a gente estava a pensar “já fomos, já descemos de divisão”. Eu e o Lito estávamos à frente um do outro. Concluímos que tínhamos que ter uma reunião com os jogadores. Ninguém podia ir para a cama sem conversarmos. Tínhamos que empatar ou ganhar em Alvalade, onde ninguém tinha ganho depois do Rúben Amorim assumir o comando. Tivemos uma conversa com a equipa como achávamos que devíamos ter, porque senão ninguém ia dormir. Convencemo-nos de que íamos ganhar ou empatar em Alvalade, só dependia de nós. Empatámos 0-0. Depois, tínhamos que ganhar à Belenenses SAD em casa. A massa adepta mobilizou-se e ganhámos 2-0. Passado umas semanas, tudo acabou com o drama dos incumprimentos.

Bola na Rede: O que é que ainda lhe falta viver no futebol?

Professor Neca: Muita coisa. Gostava muito de conhecer Timor-Leste, através do futebol. Gostava de continuar a dar palestras. Estou também ligado à Associação de Treinadores. Gostava de ser diretor desportivo, porque acho que tenho aí um espaço.

Sabe Mais!

Sabe mais sobre o nosso projeto e segue-nos no Whatsapp!

O Bola na Rede é um órgão de comunicação social de Desporto, vencedor do prémio CNID de 2023 para melhor jornal online do ano. Nasceu há mais de uma década, na Escola Superior de Comunicação Social. Desde então, procura ser uma referência na área do jornalismo desportivo e de dar a melhor informação e opinião sobre desporto nacional e internacional. Queremos também fazer cobertura de jogos e eventos desportivos em Portugal continental, Açores e Madeira.

Podes saber tudo sobre a atualidade desportiva com os nossos artigos de Atualidade e não te esqueças de subscrever as notificações! Além destes conteúdos, avançámos também com introdução da área multimídia BOLA NA REDE TV, no Youtube, e de podcasts. Além destes diretos, temos também muita informação através das nossas redes sociais e outros tipos de conteúdo:

  • Entrevistas BnR - Entrevistas às mais variadas personalidades do Desporto.
  • Futebol - Artigos de opinião sobre Futebol.
  • Modalidades - Artigos de opinião sobre Modalidades.
  • Tribuna VIP - Artigos de opinião especializados escritos por treinadores de futebol e comentadores de desporto.

Se quiseres saber mais sobre o projeto, dar uma sugestão ou até enviar a tua candidatura, envia-nos um e-mail para [email protected]. Desta forma, a bola está do teu lado e nós contamos contigo!

Francisco Grácio Martins
Francisco Grácio Martinshttp://www.bolanarede.pt
Em criança, recreava-se com a bola nos pés. Hoje, escreve sobre quem realmente faz magia com ela. Detém um incessante gosto por ouvir os protagonistas e uma grande curiosidade pelas histórias que contam. É licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e frequenta o Mestrado em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social.

Subscreve!

Artigos Populares

Cristiano Ronaldo deixa mensagem a Lamine Yamal após a Liga das Nações: «É um fenómeno»

Cristiano Ronaldo foi desafiado a deixar uma mensagem para Lamine Yamal no final da Liga das Nações, que foi ganha por Portugal.

Imprensa turca avança que Sporting fechou Pedro Malheiro por 7 milhões de euros

Pedro Malheiro pode estar em vias de voltar ao futebol português. O Sporting pode contratar o lateral ao Trabzonspor.

Álvaro Morata explica penálti falhado e pede desculpa aos colegas: «Podia ter feito melhor»

Álvaro Morata lamentou a derrota de Espanha frente a Portugal na final da Liga das Nações. O avançado falhou o penálti na decisão.

Luis de la Fuente aponta jogador espanhol à Bola de Ouro e lamenta derrota de Espanha com Portugal: «Temos de olhar em frente»

Luis de la Fuente lamentou a derrota de Espanha frente a Portugal na final da Liga das Nações. O técnico elogiou Lamine Yamal.

PUB

Mais Artigos Populares

Rúben Dias: «É diferente ganhar o título pelo nosso país»

Rúben Dias abordou a partida entre Portugal e Espanha, relativo à final da Liga das Nações, que se realizou este domingo.

Cristiano Ronaldo confirma que fica no Al Nassr

Cristiano Ronaldo abordou a partida entre Portugal e Espanha, relativo à final da Liga das Nações, que se realizou este domingo.

Cristiano Ronaldo defende Roberto Martínez: «Deram-lhe muita porrada. É o treinador certo para estar na Seleção»

Portugal conquistou este domingo a Liga das Nações. Cristiano Ronaldo marcou um dos golos da final e reagiu ao feito.