«Tinha tudo acertado com o Sporting CP, mas o Costinha foi despedido e o negócio caiu» – Entrevista BnR com Matheus

    – Das origens no futsal às dificuldades em comer no FC Marco

    «No FC Marco tive semanas em que só treinava no sábado para jogar no domingo porque não comia bem»

     BnR: Vamos voltar atrás, ao Brasil, onde começaste a carreira num clube pequeno – o Itabaiana – da Série C. Como foram esses primeiros anos no futebol sénior?

    M: A minha carreira começou em jogos que nós chamávamos de primeiro e segundo quadro, é como se fosse primeira e segunda equipa. Eu jogava na primeira equipa, pagava ao dono do clube por esses jogos, para ele pagar a gasolina, ao motorista do autocarro, para levar o material… Só pelo prazer de estar nesses clubes. E lembro-me de jogarmos jogos escolares em futsal e o preparador físico do Itabaiana era meu professor de educação física. Começámos a jogar futsal e ele falou: «consegues fazer o que fazes na quadra num campo?».«Faço, talvez até melhor em campo porque tenho mais espaço». Quando terminaram os jogos escolares, ele disse-me: «olha, o treinador saiu, fiquei eu no comando e quero que vás fazer um teste»… e eu fui. Ele recebeu muitas críticas por trazer um cara do interior, de uma cidade pequena. Claro que a maioria do pessoal gosta de contratações de clubes grandes, com nome, e diziam «ah como é que trazem um jogador do interior, que joga amador». Começou assim, mas no meu primeiro jogo eu estava no banco – o Itabaiana estava para cair de divisão no Estadual – e ele mandou-me entrar. A faltar cinco minutos e a perder 1-0, batemos um canto, a bola sobrou para mim e ajeitei para o cara que marcou o golo. O pessoal em vez de celebrar com quem fez o golo, vieram atrás de mim porque tive a esperteza de fazer o passe num momento complicado. Daí virei profissional no Itabaiana, a equipa não caiu, fomos campeões no Sergipano, fui considerado o melhor jogador, o melhor marcador… E no último jogo, em que lutávamos pelo título, estava no estádio um empresário português com o treinador do FC Marco e o Jaime Pacheco.

    BnR: Como é que eles ficaram a saber de ti, este jogador que se destacava na Série C?

    M: Eu ainda hoje pergunto-me isso, mas falaram que esse empresário tinha alguém conhecido numa cidade perto de Itabaiana e que, naquele jogo, ele estava lá a ver um lateral-direito e um atacante, que era o artilheiro do campeonato. Depois acabou o campeonato, fui de férias e passados três dias esse português ligou-me a dizer que tinha uma proposta do FC Marco. Eu também tinha proposta do Internacional de Porto Alegre, só que eles queriam levar-me para a segunda equipa e não queria ir, porque às vezes nem havia oportunidades. Eu, que só recebia 10 euros, aceitei a proposta do FC Marco e recebi um prémio bem bom, até comprei a casa para a minha mãe, mas fiz seis meses no FC Marco e nem recebi um salário, foi muito triste… A minha mãe dizia para eu ir embora, mas eu disse que não porque a realidade é essa, não há jogador que não tenha uma história de superação e esta é a minha… Conheci uma mulher portuguesa de um mercado e um amigo que tenho até hoje, o Rogério: quando voltei de um treino, as minhas malas estavam fora do hotel, não podia dormir lá porque o clube não pagava. Então ele disse que tinha um apartamento, deixava-me lá e quando pudéssemos pagar, pagávamos. Já a mulher do mercado, dáva-nos macarrão, fruta… Os adeptos davam-me 20 euros, 30 euros… Aí convidei um argentino do FC Porto, o Gonzalo [Marronkle], e o Almir, um lateral do FC Marco que não tinha onde viver, e ficámos os três no apartamento. Depois dos primeiros seis meses, havia o interesse do Litex, da Bulgária, o Werder Bremen, da Alemanha, e o Vitória SC. Primeiro fui para a Bulgária, apresentei-me, fiz os testes, só que o presidente teve um conflito com o meu empresário – soube depois que o meu empresário queria levar mais dinheiro – e o médico disse que eu tinha o coração demasiado grande, um problema no joelho e não dava para assinar. Voltei para a Trofa, porque o FC Marco estava para acabar.

    BnR: Mas isto tudo a meio da época, certo?

    M: Sim, a meio da época. Aí recebi a proposta do Vitória SC. Agarrei no carro do meu empresário e fui para Guimarães. Cheguei lá, li o contrato e perguntei se podia ir para casa pensar. Eles disseram que não havia problema e voltei no dia seguinte, contei as folhas do contrato… Tinha uma folha a mais. Nessa folha, alguns parágrafos diziam que se as coisas não corressem bem, o clube podia rescindir quando quisesse, não pagaria qualquer multa… foi um esquema. Disse para o meu empresário que não ia assinar, até achei que o empresário tinha feito alguma coisa, mas não. Foram mesmo daquelas coisas dos clubes, que às vezes metem objetivos, só que não dava lucro para mim, só para o clube…

    Matheus com a camisola do Itabaiana, do Brasil
    Fonte: Cortesia – Matheus

    BnR: Portanto, se corresse mal, o Vitória SC safava-se. Se corresse bem, fantástico, tinha um jogador que marcava golos…

    M: Era isso. Entrei no carro e a meio caminho para a Trofa liga-me o presidente [António] Salvador: «O que foi que ofereceram ao miúdo?»; «foi isto, isto e isto»; «Ok, apareçam no meu escritório daqui a meia hora». Assinei pelo SC Braga, o clube ainda deu 100 mil euros para o FC Marco, porque o presidente não me queria libertar… Toda a gente conhecia ele, como ele era, o Alberto não-sei-quê.

    BnR: O Avelino Ferreira Torres?

    M: Isso. Ele meteu um cheque na minha caixa do correio, a dizer que me pagava o salário, só que era um daqueles cheques sem cobertura. Mas quando o SC Braga deu 100 mil euros, ele disse «estás livre». Lembro-me que foi na última noite de mercado, fechava às 18h00, e às 17h00 estava eu a assinar pelo SC Braga. Foi uma aventura daquelas que só os jogadores passam.

    BnR: Foram seis meses de loucura…

    M: Sim… O que mais me doía era a minha mãe a ligar-me a chorar, porque sabia que eu passava necessidades. Chegou uma altura no FC Marco que eu só ficava à espera do sábado, dia antes dos jogos, para ir ao hotel almoçar. Havia dias que eu dizia ao treinador que não estava bem e não treinava, houve semanas em que só treinava no sábado para jogar no domingo, porque não comia bem. Cheguei lá muito magro e ainda perdi mais peso.

    BnR: Como foi passar de ter fome no FC Marco para o SC Braga, uma equipa de top 5 da Primeira Liga?

    M: Não foi fácil. Eu recebo muitas mensagens de jogadores jovens no Instagram a perguntar sobre o que precisam para serem profissionais, se é preciso empresário e isso, mas eu só escrevo esta frase: «acredite no que você quer, que vai conseguir». Eu acreditei, vi o que passava antes de ser jogador… Não é que passasse fome, mas queria uma camisola, uns ténis e não tinha condições. Por isso comecei a trabalhar desde os 12 anos para comprar uma camisola, uns ténis ou até ter uma carne melhor em casa, os meus pais agradeciam. Desde os 12 anos saía para fazer alguma coisa, o que chamamos no Brasil de «pegar freto», ia juntando e dava para comprar alguma coisa para mim, para a casa, ou para o meu lanche na escola. Não tive formação, mas graças a Deus aos 21 passei a profissional.

    BnR: Essas dificuldades e esses trabalhos que fizeste, serviram para te manter na Terra quando começaste a receber muito mais?

    M: Ah isso até hoje… Muitas vezes chegam colegas meus que dizem «oh Matheus, gastas demais». Mas eu não gasto demais, antes não tinha condições de ter um iPhone e agora que tenho não vou comprar? Eu não tinha condições para usar um anel, uma corrente, uma PlayStation e agora que tenho condições não vou comprar? Claro que vou comprar. Mas vou comprar aquilo que eu sei que vou usar, não só para dizer que gastei. Eles entram em minha casa e vêm muitas chuteiras, é o meu ponto fraco. Se me querem agradar, dêem-me umas chuteiras ou uns calções. Às vezes brinco com o pessoal e digo que não repito chuteiras nos jogos, são 30 e tal jogos, são 30 e tal ténis. É o meu ponto fraco, porque antes eu só andava de chinelos. Às vezes, a chinela estragava-se e tinha de lhe meter um prego, a minha mãe bateu-me porque eu perdia os chinelos a jogar à bola e andava descalço dois ou três dias. O dinheiro não me vai mudar, vou ser sempre o mesmo Matheus.

     

    BnR: Voltemos a Portugal, porque fazes meia época no SC Braga, mas acabas emprestado ao Beira-Mar na época seguinte. Foi importante este empréstimo?

    M: É assim… Quando cheguei ao SC Braga, pensava que tinha feito golos na Segunda Liga e ia jogar com o Jesualdo Ferreira, mas foi ao contrário, só fiz dois ou três jogos. Acabou a época, voltei ao SC Braga e, depois do Jorge Costa entrar, aconteceu uma das coisas que mais me doeu: estava sentado numa sala do estádio, perguntar quando começavam os treinos e uma pessoa do clube – não vale a pena dizer nomes – dizer que havia muitos jogadores na minha posição e que não contavam comigo. Aí o Carvalhal ligou-me, disse que tinha gostado de trabalhar comigo no SC Braga e queria levar-me para o Beira-Mar. Fui eu e o Eduardo, mas nem uma semana depois o Carvalhal foi mandado embora… Uma empresa assumiu o clube, trouxe treinador, trouxe mais de 40 jogadores para fazerem testes e nesse entra-e-sai eu fui “afastado”, fiquei sem oportunidades. No mesmo dia em que foi despedido, o Carvalhal ligou-me a pedir desculpa, que achava que havia um projeto, mas não tinha dado certo e que agora não ia ser fácil para mim jogar. Duas semanas antes de acabar o campeonato, ele ligou-me outra vez a dizer que tinha um projeto do Feirense e do Vitória FC e perguntou se eu aceitava ir com ele para um ou para o outro. Eu disse que sim e o Eduardo também.

    BnR: No Vitória FC acabas por fazer 11 golos em 23 jogos, algo completamente diferente do que aconteceu no Beira-Mar…

    M: E por incrível que pareça, fizemos dois jogos contra o SC Braga no início da época e eu fiz golo nos dois. O Salvador deve ter ficado puto da vida. Depois apareceu uma proposta para mim do Sion, da Suíça, o Carvalhal disse que ia ser vendido, só que fui jogar contra o Leixões e fiz o pior jogo da minha vida e eles desistiram. Depois apareceu o Aris Salónica, aceitei, faltavam três meses para terminar o contrato com o SC Braga, mas acabou por não resultar. Depois fiz um jogo contra o U. Leiria e o Salvador ligou-me a dizer que o Manuel Machado pediu o meu regresso. Eu disse que não voltava, que só tinha mais seis meses de contrato, tinha ajudado o Vitória FC a chegar à final da Taça da Liga, até tinhamos eliminado o SC Braga, mas o Salvador deu-me mais quatro anos de contrato e voltei a jogar na Liga Europa, onde fomos eliminados pelo Werder Bremen num jogo difícil, perdemos 3-0 lá e falhámos dois penáltis. Depois mudou o treinador outra vez… Foram muitos treinadores nesse período do SC Braga, tal como aconteceu este ano.

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    João Reis Alves
    João Reis Alveshttp://www.bolanarede.pt
    Flaviense de gema e apaixonado pelo Desportivo de Chaves - porque tem de se apoiar o clube da terra - o João é licenciado em Comunicação e Jornalismo na Universidade Lusófona e procura entrar na imprensa desportiva nacional para fazer o que todos deviam fazer: jornalismo sério, sem rodeios nem complôs, para os adeptos do futebol desfrutarem do melhor do desporto-rei.                                                                                                                                                 O João escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.