«Vemos treinadores sem experiência absolutamente nenhuma a terem oportunidades que eu ainda não tive» – Entrevista BnR com João Henriques

    – O “milagre” açoriano, as condições de distrital e a busca por voos maiores – 

    “O que o CD Santa Clara fez nestas duas épocas foi um milagre, porque as condições não são de todo parecidas com as que os outros clubes têm”

    BnR: Mas houve uma Santa Clara, ou não fosse um treinador abençoado. Como foi viver nos Açores?

    JH: Foi novamente um afastamento familiar, porque a família teve de ficar no continente, e essa foi a parte difícil. Estávamos, outra vez, a duas horas e meia de viagem de avião, e estar com elas apenas de 15 em 15 dias, por um dia e meio e a correr, porque tinha de voltar para os Açores, não foi fácil. O peso da insularidade foi a parte difícil, porque prejudica não só em termos pessoais, mas também a equipa, pelo cansaço das viagens constantes. De resto, as pessoas acolheram-nos muito bem; é uma região fantástica, tranquila para se trabalhar e viver.

    BnR: A falta de estruturas continua a condicionar o salto do clube para outro patamar?

    JH: É o principal problema do CD Santa Clara e vai continuar a ser enquanto não conseguirem resolvê-lo. É, segundo as pontuações atribuídas pela Liga aos relvados, o pior das ligas profissionais. E estamos a falar do relvado principal do estádio onde jogávamos, porque os campos de treino são dez vezes pior. As condições de treino são muito débeis, ao nível da distrital, e é um problema grave que o CD Santa Clara não consegue solucionar porque não tem infraestruturas próprias – está dependente das do Governo, que dá o que tem, mas que ainda não investiu o suficiente e não percebe que clube pode ser um dos veículos importantes para a economia da própria região. O que o CD Santa Clara fez nestas duas épocas foi um milagre, porque as condições não são de todo parecidas com as que os outros clubes têm. O nosso ginásio era no meio da população e treinávamos no meio de toda a gente; o Governo é que dita quais os relvados de treino que podem ser utilizados e, muitas vezes, não estão marcados ou com a relva cortada. Para além disto, é uma região em que a parte climatérica também condiciona, com vento e chuva muito intensos, e que por vezes não nos permitia treinar. Isto fazia com que os relvados fossem muito rijos, o que em termos físicos castiga bastante os jogadores; estes relvados, inclusive, são dentro de escolas secundárias onde, simultaneamente aos nossos treinos, decorriam aulas de Educação Física, num festival de apitos de um lado para o outro. Tínhamos de deslocar-nos já equipados do estádio para os campos de treino e, se chovesse, regressar todos molhados, porque só conseguíamos tomar banho no estádio. Muitas condicionantes para uma Primeira Liga. Eu abri as portas a muita gente para estágios e ficavam surpreendidíssimos com a qualidade que a equipa demonstrava para as condições que tinha.

    João Henriques
    As duas épocas ao serviço dos açorianos, o treinador português conseguiu bater o recorde de pontos na Primeira Liga em ambas as temporadas.
    Fonte: Carlos Silva/Bola na Rede

    BnR: Como explica essa qualidade e consequente sucesso desportivo?

    JH: No fundo é conseguir fazer com que os jogadores estejam comprometidos com duas ou três situações fundamentais para o futuro individual deles: perceber que o coletivo tem de estar à frente de tudo; estarem comprometidos com cada uma das missões que têm em campo e com os objetivos, porque são traçados por eles também, e, depois, é apostar num perfil de jogador muito especifico para poder estar numa ilha, sujeito a estas condições de trabalho e às viagens constantes, sem virarem a cara à luta nos momentos mais difíceis. Este recrutamento foi fundamental e conseguimos entrar na cabeça dos jogadores: sabíamos que tinham muita capacidade, mas, por vezes, também se sentiam frustrados por não fazer mais e melhor, porque as condições não permitiam. Isto ficou à vista quando tivemos boas condições: apesar de estarmos sempre a jogar fora, conseguimos resultados extraordinários e exibições fantásticas.

    BnR: Até à sua saída, era o segundo treinador há mais tempo numa equipa da Primeira Liga. De que modo a estabilidade diretiva impacta diretamente com a desportiva?

    JH: Neste momento, ninguém tem paciência e todos são resultadistas. Estão a ir apenas atrás da parte visível, que é olhar para a tabela classificativa, e na fase do recrutamento não olham para o perfil do treinador adequado para aquilo que eles pretendem para o clube. É avulso: “Qual é o treinador que está na moda?”. Depois, quando a equipa começa a jogar, reparam que não era aquilo que queriam. Não há, na maior parte das vezes, a sensatez de pensar “Nós queremos um treinador com o perfil A, B ou C” e, depois de analisar estes três perfis idênticos, ver aquele que se vai adequar melhor ao que se pretende. Os resultados vão mandar sempre, mas se houver uma boa escolha, as pessoas também têm mais confiança e foi isso que aconteceu no CD Santa Clara. Quando me contactaram foi pelo meu perfil, forma de jogar e forma de estar e, depois, acreditaram que a escolha deles foi a correta, porque não houve sempre bons momentos. A estrutura estava presente e sentia se os jogadores estavam satisfeitos com o trabalho. Isto leva a que haja estabilidade para todos, seja a equipa técnica, a administração ou os jogadores. Faz-me muita confusão que, como aconteceu esta época, passem dois, três, quatro ou cinco treinadores por um clube e não têm nada a ver nas suas ideias. Faz-me uma confusão tremenda. Não há um projeto. Não há uma ideia. Não há nada.

    BnR: Adepto confesso do coletivo, não tem por hábito destacar jogadores de forma individual. Mas, em relação a Zaidu, o FC Porto fica com um diamante por lapidar?

    JH: Fica com um diamante que já vai sendo lapidado.

    BnR: Verdade. Honra lhe seja feita, mister.

    JH: Mas ainda tem muita margem por lapidar. É um jogador que vai ter muito para acrescentar àquilo que já demonstrou. Antes do CD Santa Clara, houve alguém que também já o tinha ajudado e, chegando aos Açores, ajudámo-lo a ganhar o seu espaço e a exibir-se da forma como se exibiu. Vai continuar a crescer, nomeadamente na tomada de decisão, no critério e no conhecimento do jogo.

    BnR: Há quem diga que o SL Benfica perdeu o campeonato no extraordinário 4-3 frente ao CD Santa Clara na Luz. Dentro de campo, tiveram perceção da magnitude daquele resultado?

    JH: Inicialmente não percebemos o impacto para o SL Benfica; depois sim. Mas tínhamos vindo de uma vitória em casa frente ao SC Braga e estávamos muito confiantes. Tínhamos treinado bem naquele período estranho da pandemia – na parte individual e, mesmo quando começámos a entrar nos subgrupos, na parte coletiva -, toda a gente se sentia bem, confiante e olhávamos uns para os outros, e sentíamos que estávamos num bom momento, ao contrário do SL Benfica. Deste modo, jogar sem público colocava-nos em pé de igualdade com eles. Durante o jogo, sentimos exatamente isso, ao retirarmos-lhes a bola e criarmos a maior parte das oportunidades; chegámos ao intervalo e tínhamos sete oportunidades contra quatro. Estávamos a ganhar 1-0 e sabíamos que, continuando assim, sem adeptos nas bancadas para ajudar a reverter a situação, tínhamos uma oportunidade única de fazer ali um bom resultado. Inimaginável a situação do 4-3, mas também fomos suficientemente atrevidos para isso, especialmente quando chegámos ao 3-3, a dez minutos do fim. Quando todos pensavam que íamos defender porque o empate já era bom, senti que era o momento: não íamos tirar nada do ponto, portanto vamos tentar fazer história e vamos à procura de ganhar o jogo. Com as substituições e com a mensagem que passei para dentro, levou-nos a pressionar o SL Benfica muito à frente e a roubar aquela bola que nos permitiu fazer o golo da vitória. Nesse momento sentimos que era o reconhecimento do trabalho de duas épocas, andámos durante esse tempo a fazer bons jogos contra os grandes, mas ainda não tinha surgido a cereja no topo do bolo e aquele grupo de trabalho merecia.

    BnR: Poucos dias depois desta vitória disse que ia comer um peixinho com o Presidente do CD Santa Clara para decidir o futuro. Ficou alguma espinha encravada para não renovar?

    JH: Não. Desde muito cedo senti que este ciclo ia terminar, porque havia um desgaste grande das viagens, do distanciamento familiar. Havia uma aposta grande em estar mais perto da família este ano e senti que aquilo que fiz pelo clube teve um princípio, um meio e um fim, e que os ciclos têm de ser renovados. Foi-me dito que o CD Santa Clara ia ter o mesmo orçamento, as mesmas condições e os mesmos objetivos e decidi que era o momento de passar para a fase seguinte da carreira do João Henriques.

    BnR: Que fase é essa?

    JH: É procurar algum clube com objetivos mais altos.

    BnR: Que lute por lugares europeus?

    JH: Nós ficámos com os mesmos pontos do Moreirense FC e, todas as equipas que ficaram à nossa frente, têm esse objetivo. Portanto, é olhar para essas equipas e para uma oportunidade que possa aparecer. Não consigo ser um treinador de manutenções.

    BnR: Falou-se de Vitória SC, Rio Ave FC e CS Marítimo, mas os bancos entretanto foram ocupados.

    JH: O objetivo é Portugal, num desses clubes. Houve conversas com alguns deles, situações que estiverem muito adiantadas, mas que acabaram por não se concretizar. Rejeitei situações idênticas à do CD Santa Clara, porque não fazia sentido sair para um projeto semelhante. Se não surgir uma oportunidade, há duas opções: ou fazer um período sabático de aprendizagem ou, como já tem acontecido, aceitar um dos convites do estrangeiro, que queria evitar, mas que como profissionais não podemos dizer “nunca”. Estou a analisar essas situações.

    BnR: De quem são os convites do estrangeiro?

    JH: Está tudo em análise.

    BnR: A ficar em Portugal, via-se a entrar num projeto a meio?

    JH: Nunca mais queria fazer o que fiz no Paços, mas, dependente do projeto, não posso dizer que rejeito de todo que isso possa acontecer.

    BnR: Sistema tático preferido?

    JH: 4-3-3.

    BnR: Melhor jogador que treinou?

    JH: Um de cada setor: Fábio Cardoso, Lincoln e Schettine.

    BnR: Jogo que mais o marcou?

    JH: 0-0 no Dragão, pelo Leixões SC, e o 4-3 na Luz, pelo CD Santa Clara.

    BnR: Equipa que mais gosta de ver jogar?

    JH: Liverpool FC.

    BnR: Equipa mais difícil que defrontou?

    JH: O SL Benfica da época no Paços e o FC Porto esta época.

    BnR: Estádio mais bonito onde já esteve?

    JH: Wembley.

    BnR: Equipa que sonha treinar?

    JH: Liverpool FC.

    BnR: Treinador que mais o influenciou?

    JH: [Jurgen] Klopp do Mainz 05.

    Artigo revisto por Joana Mendes

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    Miguel Ferreira de Araújo
    Miguel Ferreira de Araújohttp://www.bolanarede.pt
    Um conjunto de felizes acasos, qual John Cusack, proporcionaram-lhe conciliar a Comunicação e o Jornalismo. Junte-se-lhes o Desporto e estão reunidas as condições para este licenciado em Estudos Portugueses e mestre em Ciências da Comunicação ser um profissional realizado.                                                                                                                                                 O Miguel escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.