O futebol nunca foi de grandes consensos. E não falo das discussões sobre que clube merece ser campeão, quem é o melhor jogador do mundo ou se o árbitro prejudicou, ou não, a equipa. Também fazem parte, mas há divisões bem mais profundas.
Diria que há duas certezas no futebol. A de que este é o desporto do povo – que por muito que tenha o seu dispute nos grandes estádios, não vive sem as ruas e sem os adeptos – e de que, atualmente, o dinheiro é, e será, indispensável ao futebol profissional. É um contrassenso, mas é assim mesmo. Há muito que esta modalidade vive neste equilíbrio delicado entre o seu lado romântico e a sua face mais obscura.
A polémica sobre o Campeonato do Mundo de dois em dois anos é só a mais recente alínea numa discussão muito mais profunda, que parece desaguar num ponto assente: o futebol que hoje conhecemos vai mudar, não se sabe é como.
Calendário, novas oportunidades e tradicionalismos
“They would be away for 22 days and two weeks later it is the next international break…”
Jurgen Klopp shares his thoughts on red list quarantine for international stars pic.twitter.com/Ql8p13y68U
— Sky Sports News (@SkySportsNews) October 1, 2021
Na base desta nova discussão há algo com que todos parecem concordar: o calendário atual não é bom. Atletas, treinadores e clubes criticam a sua saturação, os adeptos não gostam de tantas interrupções para jogos das seleções e os dirigentes temem que o desporto se torne menos apelativo e gere menos receitas.
Arsene Wenger tem sido a cara mediática destas propostas e defende-se das críticas dizendo que a grande maioria das pessoas com quem falou – e garante que falou com muitas – concorda que algo tem de mudar. Toda a polémica é, segundo o francês, uma questão emotiva. Até pode ser, mas já vimos com a questão da Superliga Europeia que as emoções ainda têm algo a dizer.
Mas descabidos. Para além do antes de entrar em condenações absolutas, há que ver que os argumentos da FIFA e de Wenger não são, de todo, lado poético da coisa – aquele nos fala em oportunidades para mais países participar no torneio e na aproximação de mais povos ao desporto rei – há um certo sentido de praticidade nesta questão.
Wenger garante que com este modelo será possível encurtar as rondas de qualificação, fazer uma distinção mais clara entre calendário clubístico e o de Seleções e que o impacto na saúde dos jogadores não seria tão sério como muitos alertam. Se assim for, se houver um plano bem delineado para não aumentar o número de jogos por época, não seria esta uma proposta a considerar? Não estaremos realmente demasiado agarrados à ideia tradicional de ver um Campeonato do Mundo a cada quatro anos?
A verdade é que não há respostas absolutas. Mas analisando a questão da perspetiva estritamente desportiva – a que, quero acreditar, deve prevalecer – não haveria grandes benefícios em disputar o Campeonato do Mundo de dois em dois anos.
Uma ideia desportivamente fraca
If Pedri plays in the semi-finals of the Olympic Games for Spain, he will equal Bruno Fernandes as the player with the most official matches played this season (70).
SEVENTY MATCHES. 🤯🤯🤯 pic.twitter.com/EGCCMBqeDF
— Footy Accumulators (@FootyAccums) July 31, 2021
Desde crianças que aprendemos que o Natal só é bom porque não é Natal todos os dias. Já percebemos também, com a polémica da Superliga Europeia, que os grandes jogos só o são porque não acontecem todas semanas. Pois, também o Campeonato do Mundo guarda muito da sua magia no facto de ser um evento tão raro que, numa sociedade de imediatismo, nos obriga a esperar como se esperava há 30, 40 ou 50 anos.
O aumento do número de equipas, e de oportunidades para os países mais frágeis de aparecer, é bonita no papel, mas desinteressante na prática. Todos gostamos de ver o Panamá ou Trinidad e Tobago a bater-se contra os melhores. Mas imaginemos um Mundial, disputado na China, com um Panamá vs. Trinidad e Tobago a ser transmitido às quatro da manhã para a Europa. De repente a coisa não parece assim tão apelativas, nem sequer para o público local.
Vejamos também a questão do calendário. Não seria mais simples adaptar o atual, sem acrescentar e alargar competições, arrastando a época para o mês de julho todos os anos?
Há, de facto, demasiadas pausas para Seleções, mas não é preciso ir muito longe para as cortar. As competições da UEFA, em sub-17 e sub-19, já têm uma fase preliminar de qualificação, seguida de uma “ronda de elite”. Permite grupos mais pequenos, de quatro equipas, menos jogos e mais competitividade.
Adotando este formato para a qualificação do Campeonato do Mundo, teríamos rondas que podiam ser fechadas em dois ou três meses e muito mais apelativas para o público. É só um exemplo, de algo que já está a ser implementado, e que parece uma opção muito mais simples.
Por fim, mas não menos importante, há uma parte imprescindível que tanto dirigentes, como adeptos, teimam em esquecer: os interesses dos jogadores. Não é coincidência que, mais do que nunca, os jogadores estão se a pronunciar contra a sobrecarga de jogos, que um Campeonato do Mundo bienal viria aumentar. Para além do fator físico, há a parte motivacional.
Didier Deschamps avisou para os riscos de a competição perder muito do seu prestígio, no fundo, de deixar de ser uma oportunidade única na carreira para um jogador ou para toda uma geração e passar a ser mais uma competição entre tantas outras. De dois em dois anos, a época já passou a ser de julho a julho, sem interrupções pelo meio. Desgastante para os jogadores, saturante para os adeptos e um crime contra a qualidade de jogo.
Serão estas mudanças inevitáveis?
Leeds United goalkeeper Illan Meslier wearing a t-shirt in protest against the ‘European Super League’ 👕 pic.twitter.com/d7HvYRo5TK
— Football Daily (@footballdaily) April 19, 2021
Mas, afinal de contas, onde é que tudo isto vai dar? Que interesses vão prevalecer?
Atualmente, ninguém no mundo do futebol parece concordar com um Campeonato do Mundo a cada dois anos. Por muito que a FIFA tente transmitir uma versão romântica dessa proposta, é fácil de ver que são muitos mais os contras do que os prós. Os adeptos não querem, os jogadores são contra e há até Federações que ameaçam sair do organismo que rege o futebol mundial.
Daqui a uns anos, a história pode ser outra. Há muito que ideias de “Superligas” e expansões do Campeonato do Mundo ecoam pelos bastidores do futebol. Não estamos a falar de meros caprichos de dirigentes, mas de planos detalhados que mesmo que não prevaleçam em 2021, vão continuar a ser estudados e trabalhados para o futuro.
A Superliga Europeia foi, para já, rejeitada, mas a UEFA vai introduzir um novo formato para a Liga dos Campões. O Campeonato do Mundo a cada dois anos pode não ser implementado, mas a FIFA ainda tem a proposta do Mundial de Clubes alargado e disputado no verão.
As mudanças estão aí à porta e, de forma mais ou menos subtil, o mundo do futebol vai ter de ser adaptar para rivalizar não só com outros desportos, mas também com fenómenos como o streaming ou as redes sociais. Porque, por muito que nos encante a visão do futebol de rua, há que perceber que o que hoje nos faz confusão, pode vir a ser normal para as próximas gerações. E pode vir a ser algo muito mais estranho do que um Campeonato do Mundo bienal. Campeonato do Mundo