A Caravela Lusa no outro lado do Atlântico

    A chegada de Pedro Álvares de Cabral ao Brasil no ano de 1500 continua a ser alvo de polémica. Não tanto a chegada em si, mas a palavra para a descrever. Chegada? Descoberta? Conquista?

    Será correto chamar descoberta a um local que já existia? Será que se pode classificar como conquista – uma palavra com classificação positiva – a colonização e escravização de povos até então livres? E chegada não será porventura demasiado redutor, capaz de equivaler a chegada de um país a outro à chegada de um familiar distante para a mesa na ceia de Natal.

    A resposta não é simples de ser dada. Mas o tamanho da destruição em nome da civilização torna a palavra chegada a mais adequada. 

    Mais de quinhentos anos depois a discussão voltou a ficar em cima da mesa. Tanto pela consciencialização social de uns, como pela vontade de ouvir o outro – e mais importante – lado, silenciado durante tanto tempo, uma pequena questão de português tornou-se muito mais que isso. O passado presenteou-se e a forma como hoje o vemos diz muito sobre o que queremos assumir no futuro. Os três tempos verbais conjugaram-se e conciliaram-se. 

    O que tem isto a ver com a redondinha. Pouco à primeira vista. Nada mesmo, se olhado de forma superficial. Mas a recente chegada de treinadores portugueses ao Brasil voltou a despertar sentimentos revoltados de ambas as partes. Uns inflamarão o peito e dirão que a história se repete e que os portugueses vieram ensinar os brasileiros a arte do futebol, esquecendo a bela história dos canarinhos descalços cuja bola representa o sonho de muitos meninos e meninas. Dirão que Jorge Jesus e Abel Ferreira conquistaram o Brasil e vieram organizar o caos. Dirão que o talento não resolve os jogos que se podem resolver sentados na secretária. Outros, receosos com a evolução, com a mudança e com a perda de estatuto de pesos-pesados incapazes de fazer o relógio avançar olharão para o outro lado do oceano com o ego inflamado, receosos com a contaminação do futebol brasileiro pelos europeus.

    O medo da reflexão, da aprendizagem, do conhecimento, mas também da adaptação, do confronto com a matéria-prima perduram. E ambos são condenáveis. Mas comecemos pelo princípio. 

    O Brasileirão 2023 começará – porque à terceira semana muito provavelmente já não será assim tão linear – com 10 técnicos estrangeiros. Metade das equipas da elite no Brasil iniciarão o ano treinadas por um brasileiro. Três por um sul-americano: Coudet (Argentina), Vojvoda (Argentina) e Pezzolano (Uruguai). E as restantes por um português: Renato Paiva no Bahia, Luís Castro no Botafogo, Pedro Caixinha no Bragantino, António Oliveira no Coritiba, Ivo Vieira no Cuiabá, Vítor Pereira no Flamengo e Abel Ferreira no Palmeiras. 

    Há um apreço muito claro pelas qualidades dos técnicos portugueses no Brasil. A questão é: o que são técnicos portugueses? É pergunta com rasteira. A resposta parece óbvia: são técnicos de Portugal. Mas a nacionalidade no passaporte permite colocá-los todos no mesmo saco? É pela nacionalidade que se definem modelos de jogo? Todos os portugueses atuam da mesma maneira?

    Não. Ou melhor, para quem pretenda fazer uma análise mantendo-se longe do enviesamento, do simplismo, da analogia fácil – e errada – não. Mas quem ocupa os lugares de direção não está muito para aí virado. A procura de sucesso instantâneo e automático, a incapacidade para pensar além do curto prazo, a inexistência de palavras como projeto no dicionário são objetivos que se constituem barreiras. E não são exclusivas do futebol brasileiro. Basta ver o recente caso do Farense.

    Regressemos, no entanto, ao país do futebol. O sucesso do Flamengo de Jorge Jesus impulsou a procura por técnicos portugueses. A fórmula do sucesso estava encontrada. Desde então passaram por lá, entre outros, Sá Pinto ou Paulo Sousa. Ambos já abandonaram o país. Outros por lá continuam. Abel Ferreira acima de todos os outros. 

    Jesus e Abel traduzem o sucesso luso no Brasil. O primeiro conquistou tudo o que podia nos primeiros meses de trabalho. O segundo conta no currículo com duas Libertadores, um Brasileirão, entre outros. Continuará pelo menos mais um ano no Verdão.

    Não há uma fórmula para o sucesso. O Flamengo de Jorge Jesus destacou-se pela capacidade de controlar partidas, pelo enquadramento dos criativos (Arrascaeta e Everton Ribeiro) de fora para dentro, pela complementaridade do meio-campo. O Palmeiras não é tão dominador em campo, mas demonstra um entendimento superior nas fases e momentos de jogo. Individualiza a maioria das marcações e sabe não ter bola. Com bola há talento capaz de marcar a diferença e um aproveitamento muito grande das bolas paradas.

    As duas são fórmulas de sucesso, com pontos fortes e pontos fracos. Ambas possuem marcas distintivas muito próprias e que não podem ser replicadas. Não é pela nacionalidade que são trabalhos semelhantes. Ambos deram certo pela conjugação e enquadramento dos jogadores à disposição no modelo de jogo dos técnicos que, necessariamente, também foi sofrendo alterações.

    É preciso enquadrar diversos fatores no sucesso dos dois portugueses. E o contexto em que este foi alcançado deve ser visto como essencial e não acessório. Infelizmente, é constantemente desvalorizado. E é essa desvalorização que leva o passaporte a ser considerado como fundamental na escolha de um técnico. 

    Posto isto, dá para tecer breves considerações sobre os trabalhos dos sete técnicos portugueses no Brasil. Muitos deles estão em estágios madrugadores pelo que a incerteza é grande. Mas em todos eles há, pelo menos à partida, potencial.

    O de Vítor Pereira é, à partida, o com maior possibilidade de insucesso. Desde logo a forma como Vítor Pereira chegou ao Flamengo é questionável. Abandonou o Corinthians alegando problemas familiares e o regresso a Portugal a guiá-los. Acabou no Flamengo com a difícil tarefa de substituir Dorival Jr, estranhamente afastado do cargo. Os fantasmas de Paulo Sousa e de um jogo demasiado posicional para as características do plantel continuam bem presentes na memória dos adeptos. O confronto com adeptos e jornalistas sensacionalistas é complicado, as exigências da direção também e o início está longe de ser promissor. Perdeu a Supertaça num eletrizante jogo contra o Palmeiras e foi eliminado na primeira partida do Mundial de Clubes contra o Al Hilal num encontro em que foi inferior aos sauditas. Há talento desconfortável – Everton Ribeiro acima de todos os outros – e muitas questões. 

    Num segundo patamar de dúvidas estão o Bragantino de Pedro Caixinha e o Cuiabá de Ivo Vieira. O Bragantino foi adquirido há uns anos pelo grupo Red Bull e teve em Marcelo Barbieri o obreiro principal do projeto. Os resultados não foram consistentes, mas o clube escalou patamares e valorizou jogadores. Léo Ortiz e Artur são dos nomes mais entusiasmantes. Pedro Caixinha tem experiência no continente e assume um clube que, apesar de não ser protagonista, gosta de se assumir como tal. A confiança da direção na continuidade do seu antecessor deixa alguma margem de manobra para o português. O Cuiabá de Ivo Vieira – apenas a segunda experiência fora de Portugal – é uma incógnita por completo. A luta pela manutenção será o objetivo e Ivo Vieira sucede a António Oliveira (ainda falaremos dele). O plantel é curto e perdeu algumas das referências. Mantém-se, entre outros, Gava e Rodriguinho, dois jogadores com bom toque de bola e que podem ser importantes para Ivo Vieira. 

    Com mais expectativas encontram-se os trabalhos de Renato Paiva e de António Oliveira. O Bahia foi adquirido pelo City Group, garantindo investimento e surgindo como um clube que possibilita o desenvolvimento de jogadores do grupo milionário – que deixam assim de ter de rodar por clubes de divisões secundárias da Europa. Muitos craques perderam-se nesta visão e o Bahia pode ser importante para enquadrar talento. Kayky – não deu certo no Paços de Ferreira – é exemplo. Renato Paiva tem experiência a trabalhar com jovens, tanto pelos anos passados na formação do Benfica como pela passagem com sucesso pelo Independiente del Valle, no Equador. O início tem sido marcado por problemas defensivos, mas o treinador relativizou – e bem – a questão. A aprendizagem não é automática, mas há muito potencial no projeto. A manter debaixo de olho há Nicolás Acevedo, talentoso médio argentino. Outro clube que pode dar o salto é o Coritiba de António Oliveira. A luta é pela manutenção, mas há potencial para mais. António Oliveira conhece a realidade do Brasil e mostra uma variabilidade tática muito interessante. Sabe quando ser protagonista e quando recuar, mostrando uma polivalência capaz de garantir resultados. As contratações do Coritiba abrem espaço a sonhar. Rodrigo Pinho, Bruno Viana, Marcelino Moreno e Liziero são nomes de qualidade que perspetivam uma época tranquila para o Coritiba.

    Noutro estágio – pela continuidade – estão o Botafogo de Luís Castro e o Palmeiras de Abel Ferreira. Luís Castro inicia a segunda época ao comando do Fogão. Após uma época algo conturbada, com altos e baixos – incluindo justificações da massa adepta no Centro de Treinos – e repleta de lesões, a expectativa é de um ano mais tranquilo, num clube que conta com vários jogadores que já jogaram em Portugal: Marçal, Danilo Barbosa, Carlos Eduardo, Gustavo Sauer, Tiquinho Soares, entre outros. Noutra fase de estabilidade está o Palmeiras de Abel Ferreira. O português está a começar a quarta época no Verdão e é o principal candidato ao título. Perdeu nomes importantes como Danilo e Scarpa, mas continua com um plantel recheado de craques. Há uma expectativa enorme para ver Endrick jogar. O menino de 16 anos já assegurou uma transferência milionária para o Real Madrid, mas até aos 18 continuará a vestir a camisola verde do Palmeiras. 

    Resultados só no fim do ano. Alguns dos trabalhos dos técnicos portugueses darão certo, outros nem tanto. Afinal, há sempre um certo grau de imprevisibilidade no futebol, e é isso que torna este desporto tão bonito. Agora, há algo certo. Nenhum clube triunfará por ser um português a comandá-lo. E o inverso, obviamente também se aplica. Deixemos de olhar a nacionalidade e foquemos as atenções dentro de campo.

    Artigo da opinião de Diogo Ribeiro.

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