A relação turbulenta do ciclismo profissional com a sustentabilidade

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    Uma das principais áreas de debate do século XXI é a preservação do ambiente. Questões como as alterações climáticas e a respetiva correlação com os hábitos humanos de consumo assumem palco central no ambientalismo, com diversas figuras a protestarem, nomeadamente através de manifestações pacíficas e não pacíficas junto aos edifícios de instituições de poder.

    Uma das formas de protesto que tem vindo a tomar forma nos últimos dois anos consiste na interrupção de eventos de caráter desportivo com vista a alertar os consumidores de x modalidades para a insustentabilidade dos moldes em que a mesma se realiza. Decorreu na Fórmula 1, no GP de Silverstone em 2022, nos torneios de Wimbledon e no US Open de 2023, assim como numa etapa do Tour de France de 2022 e no Campeonato do Mundo de ciclismo de 2023, em Glasgow.

    À primeira vista, pode parecer estranho que estes protestos ocorram no ciclismo. Ao fim e ao cabo, desde que somos crianças que umas coisas que nos dizem é que uma das formas de alcançar a neutralidade carbónica é através da redução do consumo de combustível nas deslocações, pelo que a maior utilização de bicicletas é chave para que cada indivíduo mitigue a quantidade de dióxido de carbono que emite para a atmosfera.

    Mas os protestos não têm a ver com o uso das bicicletas. Ao fim e ao cabo, a Universidade do Sul da Dinamarca divulgou num estudo que se a bicicleta fosse usada, a nível mundial, como é nos Países Baixos, as emissões anuais diminuiriam em 686 milhões de toneladas.  Não têm sequer a ver com a corrida de bicicletas propriamente dita.

    OS CUSTOS DO CALENDÁRIO
     A questão da sustentabilidade no ciclismo sempre pareceu bastante contraditória pela sustentabilidade da utilização da bicicleta como meio de transporte. Mas será que o ciclismo profissional é assim tão sustentável?

    Nem por isso. A organização de uma corrida de ciclismo requer a existência de uma “caravana” para cada equipa onde segue todo o equipamento que permite aos ciclistas ter as melhores condições possíveis em competição, em descanso e até na definição de estratégias. Conforme a dimensão da equipa e da corrida, o tamanho da caravana varia, sendo sempre constituída por um ou mais autocarros e diversos carros de apoio, onde seguem elementos como médicos, mecânicos e Diretores Desportivos.

    A própria organização requer este tipo de veículos, não só para acompanhar a corrida em si, mas, nalguns casos, para proporcionar entretenimento a quem se encontra na meta à espera dos ciclistas e até mesmo para que os patrocinadores consigam vender os respetivos produtos.

    Mas não acaba aqui a ação poluente do ciclismo. Ao longo do ano, as viagens são um encargo constante para as equipas uma vez que têm de se deslocar a todos os continentes ao longo do ano para cumprir calendário. Como tal as viagens são extremamente frequentes, sobretudo com muitas corridas a serem sobrepostas o que leva a encargos extra neste aspeto.

    A Jumbo-Visma, por exemplo, realizou mais de 60 corridas em 18 países diferentes no ano de 2023. Claro que isto não equivale a 60 viagens de avião uma vez que em diversos casos as corridas num país ou região ocorrem todas na mesma altura do ano, o que permite escapar às viagens de avião. Mas ainda assim, esse tipo de comuta ocorrerá em dezenas de ocasiões.

    E mesmo nas equipas pequenas, o número é substancial. A equipa neerlandesa do escalão continental, a terceira divisão do ciclismo, a ABLOC CT correu em 14 países diferentes.

    Segundo o Guardian, a Mitchelton-Scott (antigo nome da Team Jayco AIula) gastava 1 milhão de euros por ano antes da pandemia, com a maior parte do dinheiro alocado em viagens de avião. Desta forma, é possível perceber como o calendário velocipédico potencia a abundância de emissões.

    De acordo com o “Bicycling” Andy Schleck, antigo vencedor do Tour de France e organizador da Volta ao Luxemburgo, pediu à nZero para calcular o valor total de emissões da corrida luxemburguesa deste ano. O valor? Cerca de 100 toneladas métricas de dióxido de carbono, o equivalente a cerca de 363 712 quilómetros. O objetivo? Perceber os fatores responsáveis pelas emissões elevadas em corridas de ciclismo.

    A que conclusões é que a nZero chegou? Pois bem, uma grande parte das emissões de carbono são feitas pela cobertura aérea da corrida com recurso a helicóptero, sendo que a realização desse trabalho por um drone reduziria as emissões em 10%. Geradores movidos a biodiesel levariam a um corte na ordem das 4 toneladas e ao nível da alimentação, a troca do consumo de carne de vaca por frango teria também um impacto significativo.

    Já no caso do próprio Tour de France, entre 2013 e 2021, assistiu-se a uma redução das emissões em 43%, assentando em cerca de 216 388 toneladas de dióxido de carbono.

    O SPORTSWASHING


    Sportswashing, um termo que dispensa apresentações e que tem vindo a ser cada vez mais comum em modalidades como o ciclismo, graças à participação de Estados cujas economias assentam na produção de combustíveis fósseis, bem como de empresas cuja atividade têm um papel nas alterações climáticas.

     Como é que esta participação ocorre? Pois bem, através do patrocínio de corridas e de equipas. Diversas vozes críticas apontam casos como a UAE Team Emirates, patrocinada pelos Emirados Árabes Unidos, da INEOS Grenadiers, com o “Grenadier” a ser um jipe produzido pela empresa petrolífera britânica, e também do Santos Tour Down Under (a volta à Austrália). Foi, aliás, esta corrida australiana, que trouxe à ribalta, a discussão sobre a influência do ciclismo nas alterações climáticas e da influência das alterações climáticas sobre o ciclismo.

    Isto, porque em 2020, o Santos Tour Down Under serviu de montra para os efeitos dos fogos florestais que afetaram a Austrália no início desse ano. A paisagem foi de tal forma dantesca que foi descrita por Sam Bennett como “algo saído de um filme sobre o fim do Mundo”. No mesmo ano, como nota o The Guardian, uma sociedade ambientalista, a Fossil Fuel S.A lançou uma campanha designada “#BreakAwayFromGas” com vista a que o Tour Down Under se dissociasse da Santos, empresa produtora de gás e petróleo.

    Jim Allen, porta-voz do grupo à data, disse ao jornal britânico: “Trata-se de um evento de grande prestígio, que apoiamos e acarinhamos enquanto sul australianos (…) Mas o evento tem uma relação amigável com uma empresa de combustíveis fósseis, que procura obter uma licença social para atividades destruidoras do clima”

    Da mesma forma, a associação da INEOS com a equipa outrora conhecida como Sky, anunciada em abril de 2019 é também apelidada por ativistas como um exemplo deste sportswashing corporativo. A empresa petroquímica de Jim Ratcliffe é classificada pelo Plastik Waste Makers Index de 2021 como a 12ª maior produtora de plástico de uso único em todo o Mundo e tem uma das maiores pegadas de carbono do setor petroquímico.

    A INEOS também se dedica à extração de petróleo, nomeadamente em Inglaterra e na Escócia (e à posteriori nos Estados Unidos), vendo-se envolvida numa investigação da Greenpeace onde era alegado que as instalações da empresa em Middlesbrough teriam violado as suas autorizações de emissões para o mar e para a água em diversas ocasiões.  Foram, de resto, acusações que a INEOS negou num comunicado em que se pode ler:

    “Sempre estivemos e continuamos a estar dentro dos níveis de emissão acordados para o local com a EA. Caso contrário, não estaríamos a funcionar.”

    À Vice, a perita em poluição com plástico da “Friends of the Earth Scotland”, Sarah Moyes destacou a INEOS como a maior produtora de plástico no Reino Unido, nomeadamente dos “nurdles”, pequenas componentes de plástico “usadas para fazer tudo, desde brinquedos de plástico a sacos de plástico” e que acabam, frequentemente ingeridas por animais. Todavia, a INEOS assume o compromisso de impedir que estes “nurdles” acabem nas águas, através do “Zero Pellet Loss Programme”.

    Claro que não é apenas nas empresas que este fenómeno de sportswashing é identificável no ciclismo, com Estados como o Bahrain e os Emirados Árabes Unidos (EAU) a financiarem duas das maiores equipas do pelotão: a Bahrain-Victorious e a UAE Team Emirates.

    No caso dos Emirados Árabes Unidos, é um Estado federal constituído por sete reinos e ao qual a Amnistia Internacional apontou, em 2022, condutas contra os Direitos Humanos como detenções arbitrárias, ataques à liberdade de imprensa (nomeadamente com o encerramento de um jornal após a publicação de uma peça sobre a reação da população à subida dos preços na energia), a continuação da violação de leis internacionais na guerra do Iémen.

    Já o Bahrain foi alvo de acusações por um relatório da Amnistia (também publicado em 2022) em relação a maus tratos e à tortura de prisioneiros, à supressão da liberdade de expressão (nomeadamente com a utilização do spyware Pegasus contra três cidadãos que haviam criticado o governo) e a implementação do sistema de trabalho “Kafala”.

    Quanto ao ambiente? Em 2022, o Bahrain era um dos principais emissores de dióxido de carbono per capita e, de acordo com o site oficial da Administração dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos, os Emirados Árabes Unidos são dos maiores consumidores de água e energia per capita, do Mundo. É verdade que, de entre os países do Golfo, os EAU têm-se comprometido a assumir um papel vanguardista na luta pela neutralidade carbónica, tendo mesmo sido a casa da 28ª Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP28).

    Todavia, o evento esteve envolto em polémica, não só pelos EAU serem dos principais produtores de petróleo no Mundo, mas também pelo Presidente da Conferência, o sultão Al Jaber, ser também dirigente da companhia petrolífera nacional. Como se esta alegada incongruência não bastasse, a BBC revelou no fim de novembro que os Emirados Árabes Unidos teriam intenções de usar a COP 28 para alcançar acordos de exportação de gás e petróleo, reunindo-se com, pelo menos, 27 nações. A inércia no alcance de um consenso relativamente ao combate ao uso de combustíveis fósseis também não ajudou nada à imagem das ambições climáticas dos Emirados Árabes Unidos.

    AS MEDIDAS DA UCI

    A conjuntura pode não ser inteiramente favorável a um ciclismo sustentável, mas a UCI tem vindo a propor medidas com vista a combater o papel do ciclismo nas alterações climáticas. À margem da COP28, decorreram negociações do organismo que tutela o ciclismo internacional com a ASO, RCS e a Unipublic, organizadores do Tour, Giro e Vuelta, respetivamente.

    A principal proposta da UCI passava por acabar com a restrição de transfers aéreos de equipas e caravanas nas Grandes Voltas. O objetivo maior passa por conseguir a redução das emissões em 50% em relação a 2019 pelas equipas e corridas do World Tour até 2027, com o Presidente do organismo, David Lappartient a declarar à “Bicycling” que peritos independentes irão assegurar que as metas são alcançadas.

     Em 2030, a missão é alcançar a neutralidade carbónica, uma meta que parece estar mais difícil de alcançar, uma vez que a UCI não conseguiu chegar a acordo com as três entidades organizadoras, admitindo mesmo recorrer à União Europeia caso se mantenha a inexistência de um acordo.

    A UCI recomenda também às equipas que passem a utilizar carros e autocarros elétricos e que as suas sedes permanentes estejam dotadas de painéis solares. Em 2021, a Soudal-Quick Step tornou-se a primeira equipa atingir a neutralidade carbónica.

    O AIGCP e a CPA, entidades coletivas que representam equipas e ciclistas, respetivamente, aceitaram de facto fazer uma cedência: deixarão de transportar os ciclistas por via aérea até aos hotéis após etapas de alta montanha. Apesar da falta de acordo com os organizadores, no Tour, o TGV já foi utilizado como meio de ligação entre os Vosges e Paris, estando garantido o mesmo para o transbordo entre Orleans e Troyes, em 2024. Todavia, o Giro irá fazer a ligação entre a cidade de Vincenza e Roma, após a penúltima etapa.

    Apesar das questões de sportswashing, as equipas parecem ter a noção da importância de combater as alterações climáticas. Andy Schleck disse ao “Bicycling” isso mesmo:

    “As equipas estão conscientes da situação em que vivemos atualmente no que diz respeito às alterações climáticas (…) O ciclismo desenvolveu-se muito o no ano passado ao nível da forma como abordamos os resíduos: Por exemplo, se um ciclista atirar uma garrafa ou lixo para a berma da estrada fora da zona de alimentação, é penalizado. Podem até ser desclassificados.”


    Existe esperança, portanto, de que pelo menos no ciclismo, o esforço não seja em vão.

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    Filipe Pereira
    Filipe Pereira
    Licenciado em Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o Filipe é apaixonado por política e desporto. Completamente cativado por ciclismo e wrestling, não perde a hipótese de acompanhar outras modalidades e de conhecer as histórias menos convencionais. Escreve com acordo ortográfico.