Vuelta a España #4: Sepp Kuss e Jumbo-Visma fazem história em semana…quase perfeita

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    Última semana da Volta à Espanha chegava com um cenário quase escrito nas estrelas em que a Jumbo-Visma selava a conquista inédita das três grandes Voltas no mesmo ano, assim como um pódio da Vuelta preenchido por três ciclistas da equipa, um feito quase inimaginável no que a Grandes Voltas da era moderna do ciclismo diz respeito.

    A corrida ficava marcada pela superioridade da Jumbo-Visma, sem que alguém fosse capaz de lhes tocar. Quatro nomes saltavam á vista para estragar a festa à equipa Neerlandesa: Enric Mas, Mikel Landa, Marc Soler e Juan Ayuso. A UAE Team Emirates parecia a única equipa com capacidades de abalar a formação de Primoz Roglic, Jonas Vingegaard e do camisola vermelha, Sepp Kuss.

    MANUAL SOBRE COMO NÃO CORRER EM EQUIPA

    A etapa 16 da última corrida de três semanas de 2023 marcava a primeira chegada em alto da terceira semana. Um dia que se fazia adivinhar duro, mas não muito atacado, com Roglic a ser o grande favorito a uma vitória ao sprint num grupo reduzido, caso a fuga não vingasse ou ninguém atacasse com eficácia a Jumbo.

    Chegada numa segunda categoria, de 4,2 km em Bejes, a criação da fuga foi completamente caótica. Remco Evenepoel afastava-se dessa luta para ficar mais distanciado na geral, conquistando mais liberdade para perseguir etapas, nomeadamente na etapa 17. Ainda assim, a INEOS estava determinada em colocar alguém na fuga.

    A Intermarché contribuía para a perseguição em questão, e conseguiam anular a fuga…mas não colocaram ninguém na segunda iteração do grupo fugitivo do dia, que incluiu Kaden Groves, para tirar ideias a Remco Evenepoel no que à classificação por pontos diz respeito. A fuga nunca teve grande futuro. Groves deixou-se reintegrar no pelotão e o resto dos fugitivos foram caçados, com naturalidade.

    Subida final, a Bejes, e a Jumbo chegava já só com Attila Valter junto do “trio maravilha” da formação dos Países Baixos. O campeão húngaro nunca aguentaria aquela subida sozinho. Chegava a hora de saber se Vingegaard e Roglic iam trabalhar para o Norte Americano.

    A resposta foi: não. Para surpresa e escândalo de muitos, o vencedor da Volta à França atacou a 3,8 km do fim, sem resposta de qualquer adversário direto. Apenas Finn Fisher-Black respondia, mas não seguia diretamente na roda do dinamarquês. Atrás ninguém perseguia e Vingegaard começava a ganhar muito tempo. Roglic e Kuss não iam perseguir o colega. A Emirates não sabia bem o que fazer, com Fisher-Black a perseguir a vitória de etapa. Ayuso via o pódio a ficar mais longe, com Vingegaard a ultrapassar Roglic, pelo que o esloveno levava mais de um minuto de vantagem na geral para o rival espanhol. A Movistar não tinha capacidade de perseguição, só tinha Enric Mas no grupo

    Nesse grupo, a corrida começou a ser super inconsistente. João Almeida fez uma grande mudança de ritmo à porta do último quilómetro. Depois, foi Primoz Roglic a lançar um esticão com Ayuso e Mas na roda. Sepp Kuss começava a seguir na roda do quarteto, mas começava a perder o contacto. Aí, Roglic aguardou pelo camisola vermelha.  Jonas Vingegaard conquistava a sua segunda etapa na Vuelta e  ficava a 29 segundos da camisola vermelha. Kuss perdia apenas uns segundos para Roglic.

    A controvérsia ficava instalada na Jumbo. Tinha Vingegaard acabado de declarar intenção de atacar a camisola vermelha daquele que desempenhou um papel vital nas conquistas do dinamarquês frente a Pogacar nas duas últimas edições do Tour?

    Vingegaard fez questão de dizer que queria ganhar a etapa por causa de Nathan Van Hooydonck, um dos seus escudeiros nas duas últimas edições da “Grand Boucle”, que sofrera um ataque cardíaco e ficara envolvido num acidente de carro com a mulher grávida. O acidente em si não foi grave, com todos os envolvidos a escaparem com lesões ligeiras mas Van Hooydonck foi internado em estado crítico e ficou mesmo em coma induzido. Entretanto, à data da escrita deste artigo, está já acordado e estável, apenas na expetativa de saber o que causou o problema cardíaco e, consequentemente, se voltará a poder correr.

    Já Kuss admitiu que o plano era Roglic ganhar, mas que as características da subida também se adaptavam muito a Jonas Vingegaard que pediu para atacar, originando uma mudança de planos para o dia. No final, a Jumbo-Visma reforçava o seu domínio no pódio. O dia seguinte era marcado pela chegada ao Angliru, subida mítica que viu Alberto Contador alcançar a sua última vitória da carreira, em 2017 e que há 10 anos, tinha visto Chris Horner selar a sua vitória histórica na geral, a última de um Norte Americano na corrida até à mais recente edição.

    A etapa 17 contava com o alto de la Colladiella e com o Alto del Cordal, antes de levar o pelotão à base do Angliru. Evenepoel não perdeu tempo e ficou sozinho com Mattia Cattaneo na frente a 52,8 km do final, ainda em Colladiella.  A fuga não teve muita história, com a superioridade de Remco Evenepoel aos colegas de iniciativa a ser muito clara. De tal forma que este foi o dia em que o belga deu um passo enorme na classificação da montanha.

    A superioridade do Belga não se converteria em vitória de etapa. Muito por causa de Marc Soler, com o espanhol da UAE a lançar-se ao ataque a cerca de 50 km do fim, no que pareceu mais uma iniciativa desesperada de tentar acabar com a supremacia da Jumbo, através do desgaste da perseguição de um ciclista que começava o dia em sexto da geral. A Bahrain-Victorious foi a equipa que assumiu a perseguição, ao invés da dos três primeiros, e o vale entre o Cordal e o Angliru condenou a fuga de Soler ao fracasso.

    O ciclista que, à semelhança de Sepp Kuss, se havia tornado uma figura da Vuelta às custas da fuga na etapa 6, ficava para trás bem cedo e dizia adeus ao top 10. Soler perdia cerca de 18 minutos e ficava sem hipóteses de repetir um top 10 na Vuelta.

    As peças do pelotão foram cedendo bem cedo, mas com o ritmo da Bahrain e não com o da Jumbo. Romain Bardet atacava, mas a Bahrain estava a correr para Mikel Landa, pelo que ninguém saía com o francês que era controlado a ritmo. Dentro dos últimos 5 km, foi Wout Poels a fazer Ayuso e Mas descolarem também, sentenciando praticamente o pódio da Vuelta (a não ser que o Landismo batesse mais forte do que nunca).

    O grupo ficou reduzido aos três primeiros classificados, da Jumbo, e a três Bahrain, com Landa, Poels e Santiago Buitrago na frente. Enric Mas tentava desesperadamente recolar no grupo e Juan Ayuso estava a estourar, a usar a roda de João Almeida para não perder assim tanto tempo. Um pouco mais à frente do duo ibérico, estavam Aleksandr Vlasov e Cian Uijtdebroeks.

    Primoz Roglic acelerava na parte mais dura do Angliru, a menos de 3 km do final. Depois, Sepp Kuss, Jonas Vingegaard e Mikel Landa juntavam-se ao esloveno. Não havia mesmo como abalar esta Jumbo e Landa também acabaria por ceder. Primeiro no Tourmalet e agora uma imagem ainda mais dominante no Angliru por parte de uma formação que todos identificavam à partida para a corrida como a mais forte.

     A Jumbo-Visma queria sentenciar a luta pela geral, a luta pelo pódio e conquistar uma montanha que deixou Primoz Roglic em dificuldade em 2020.  A 2 km do fim, Kuss acabava mesmo por ceder, com Roglic e Vingegaard a não esperarem pelo camisola vermelha. Não havia como desculpar, a camisola vermelha estava mesmo sob guerra civil.

    Primoz Roglic acabaria por ganhar a etapa no sítio onde sofreu em 2020, na altura ajudado muito pelo homem que deixara para trás. Roglic selava o pleno da Jumbo no pódio e Sepp Kuss mantinha a camisola vermelha por 8 segundos para Jonas Vingegaard, muito por causa de Mikel Landa que ainda perseguiu o duo e levou o americano na roda.  As declarações no fim da etapa não foram bem recebidas pelos fãs. Vingegaard disse que ficava muito feliz se Sepp Kuss acabasse por ganhar a Vuelta. Já Primoz Roglic teve isto a dizer.

    “Disse-lhe [a Kuss] ‘continua a lutar, continua a acreditar”‘

    O esloveno acrescentou que numa subida com rampas como o Angliru, cada um tem de ir tão rápido como consegue, descurando dessa forma que o apoio a Kuss numa subida daquela índole pudesse fazer grande diferença. Já o camisola vermelha disse, em concordância com o “X”/Twitter da equipa que autorizara Roglic e Vingegaard a perseguirem a vitória na etapa.

    João Almeida teve uma atitude muito semelhante à de Primoz Roglic . Isto porque ao fim de um tempo a trabalhar para Ayuso, colocou o seu próprio ritmo e fez a ponte para a dupla da Bora. Enric Mas acabaria por ser apanhado pelo camisola branca e ambos os ciclistas perdiam mais de 1 minuto e 40. Ayuso era o maior rival direto da Jumbo, a 4 minutos de Kuss. Landa estava a 16 segundos do ciclista de 20 anos e Mas a 30.

    A última etapa de alta montanha da Vuelta chegou muito cedo este ano, com a etapa 18 a ficar marcada por dupla passagem em Cruz de Linares, uma jornada que era vista como o derradeiro teste à liderança de Sepp Kuss. Iria a Jumbo e, sobretudo, Jonas Vingegaard atacar a liderança do americano?

    A etapa foi entregue à fuga. Ficou logo claro que ia ser o grupo que incluía nomes como Damiano Caruso, Remco Evenepoel, Egan Bernal e Andreas Kron a discutir a corrida.

    Logo no alto de Tenebredo, Remco Evenepoel começava a partir o grupo. Não tinha medo de assumir a responsabilidade de trabalhar na frente. No início da primeira passagem em Cruz de Linares, Kron atacou e Remco Evenepoel não perdeu tempo. Lançou um contra ataque e seguiu apenas com Caruso e Max Poole, jovem britânico da DSM, na roda. A cerca de 29 km, Poole cedia e o belga da Soudal-Quick Step ficava sozinho para fazer um esforço solitário até à meta onde passou com mais de 4 minutos de vantagem para Caruso, que ficou no segundo lugar da etapa.

    No pelotão, a ação foi praticamente inexistente. Mikel Landa lançou um ataque com resposta de Juan Ayuso e com Jonas Vingegaard a meter ritmo à frente do camisola vermelha. O segundo classificado parecia assumir a intenção de deixar Sepp Kuss conquistar a Volta à Espanha. Roglic não passava pela frente do grupo e quando Kuss atacou dentro do último quilómetro teve de fechar um espaço, com Jonas Vingegaard bem próximo de si. Uma imagem indecifrável, mas ficava a impressão de Primoz Roglic não estar inteiramente feliz com o cenário de corrida, pelo menos naquele dia.

    Perto da meta, Vingegaard deixou-se perder 9 segundos, com vista a não deixar margem para quaisquer dúvidas em relação ao objetivo da Jumbo naquele momento: ganhar a Vuelta com Sepp Kuss. Depois da etapa, Kuss revelaria que os três se tinham reunido e decidido correr, de forma defensiva, sendo que até esse dia, tinham tido autorização para não aguardar por um colega que perdesse o contacto.

    DOIS DIAS DE CONSAGRAÇÃO E OUTRO DISFARÇADO

    Com a novela da Jumbo-Visma aparentemente encerrada, eram três dias de consagração que esperavam os ciclistas. Dois planos e um de média montanha em que só fazia sentido atacar se a margem entre os rivais diretos fosse de segundos. Mas já lá vamos. Primeiro uma etapa, quase 100% plana. Um dia em que toda a ação estaria guardada para os km finais. Rui Oliveira tinha caído na etapa anterior, o que podia comprometer a colocação de Juan Sebastián Molano pelo português, para o sprint final.

    A parte final da etapa ficou marcada por uma queda dentro do último quilómetro que deitou ao chão dois homens da DSM e impediu Kaden Groves de sprintar, uma vez que o australiano tropeçou na bicicleta, sem cair no chão. Filippo Ganna lançou o sprint e parecia mesmo que ia finalmente ganhar uma etapa ao sprint na Vuelta. Contudo, Alberto Dainese apanhou a roda de Iván Garcia Cortina e lançou o seu sprint, aproveitando a explosão madrugadora do espanhol para ultrapassar Ganna em cima da linha de meta e dar uma segunda vitória de etapa à DSM nesta corrida.

    O último dia competitivo da Vuelta foi marcado pela passagem nas serras de Madrid. Com a corrida praticamente decidida e com a luta por quarto e por sétimo a ser o mais emocionante da geral, tudo indicava um dia para fuga e foi isso mesmo a acontecer, com um grupo numeroso com homens como Rui Costa, Remco Evenepoel, Lennard Kämna e Wout Poels na frente.  A Soudal meteu três ciclistas junto de Evenepoel e ficou claro que esta penúltima etapa, a última decisiva desta Vuelta, ia ser tão aborrecida como prometia ser.

    Isto porque até na fuga os ataques só aconteceram na subida final, o Alto San Lorenzo el Escorial. Wout Poels atacava com resposta imediata de Lennert Van Eetvelt. Mais atrás, Marc Soler tentava fazer a ponte para o duo da frente, com Remco Evenepoel a fazer lembrar Chris Froome, seguindo no seu próprio ritmo, para apanhar e atacar os rivais no fim. Soler chegaria à frente, Evenepoel acabava por deixar quase todos os rivais para trás, menos Pelayo Sánchez, com o jovem da Burgos BH a fazer ceder o campeão em título da Vuelta (ainda que se tenham quase todos juntado na frente).

    No sprint final, Poels lançou o seu sprint nos últimos 300 metros, ao acelerar pelo interior da curva final, conquistando a penúltima etapa da Vuelta, confirmando o pleno de etapas em Grandes Voltas para a Bahrain – Victorious em 2023 e com o Neerlandês de 36 anos a juntar a etapa 20 da Vuelta à etapa 15 do Tour.

    Na geral, a história era quase nula. Um ataque de Mikel Landa, outro de Enric Mas, só que desta vez com Primoz Roglic a trabalhar para Sepp Kuss. Vingegaard assumiu papel de menos protagonismo no trabalho e Roglic meteu-se mesmo na frente do grupo para impedir quaisquer ataques.

    A etapa apenas serviu para fazer Vlasov subir a sétimo, em detrimento de Uijtdebroeks, com o belga a ter deixado críticas em relação ao ataque do russo na etapa anterior. Não foi a primeira nem a única vez que o jovem Cian abordou a dinâmica mais tensa da equipa, um tema que foi bastante recorrente nesta semana da Vuelta.

    Último dia de Vuelta, consagração de “GC Kuss”, festival de marketing por todas as equipas do pelotão. A Jumbo trouxe um equipamento vistoso com fitas de três cores relativas às camisolas de cada grande volta. Sepp Kuss também tinha uma bicicleta a rigor e ainda se fez uma homenagem a Nathan Van Hooydonck.  A etapa teve praticamente um único momento alto, quando Remco Evenepoel lançou um ataque a 43,8 km do fim, com Kaden Groves Filippo Ganna, Rui Costa, Lennard Kämna e Nico Denz a irem para a frente.

    A vantagem do sexteto estava sempre na casa dos 15-16 segundos. Se decrescesse era só para 9 e atrás só a Bahrain, Movistar e DSM perseguiam, até com os homens da geral, como Enric Mas, Juan Ayuso e João Almeida a passarem pela frente.  Tudo parecia arrumado e em condições para a fuga lutar pela vitória, dentro do último quilómetros.

     Todavia, os fugitivos começaram a entreolhar-se. Evenepoel lançou o sprint para tentar surpreender, mas Kaden Groves mostrou toda a superioridade derrotando Ganna com facilidade, com o italiano da INEOS a fazer o terceiro segundo lugar de etapa da corrida e Rui Costa a fechar o dia na sexta posição, uma enorme Vuelta do português.

    Já na geral, Sepp Kuss confirmava a primeira vitória de um americano desde Horner em 2013, com um pódio inteiramente de preto e amarelo. Jonas Vingegaard e Primoz Roglic completaram o pódio e a Jumbo-Visma ficava assim com Giro, Tour e Vuelta numa só época, um feito inédito na história do ciclismo. Se a novela da Jumbo-Visma vai ter mais temporadas, só saberemos em 2024.

    Kaden Groves venceu a classificação por pontos, tornando-se no primeiro australiano a consegui-lo na Vuelta. Remco Evenepoel ganhou com uma margem enorme a camisola da montanha, que confirmara logo na etapa 18 e Juan Ayuso ganhava a classificação da juventude, garantindo à Emirates um pleno inédito de camisolas da juventude em grandes voltas. João Almeida no Giro, Tadej Pogacar no Tour e agora Juan Ayuso na Vuelta.  Almeida foi o melhor português da geral, ao fechar o quinto top 10 da carreira em grandes voltas, com o nono lugar, quase impensável quando o português cedeu no Col d’Aubisque

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    Filipe Pereira
    Filipe Pereira
    Licenciado em Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o Filipe é apaixonado por política e desporto. Completamente cativado por ciclismo e wrestling, não perde a hipótese de acompanhar outras modalidades e de conhecer as histórias menos convencionais. Escreve com acordo ortográfico.