Manchester United x FC Porto: 20 Anos do sprint Mourinhesco

    FC Porto Cabeçalho

    Se formos rigorosos, o vigésimo aniversário do icónico festejo só acontecerá a nove de Março – a 25 de Fevereiro foi a primeira mão, o 2-1 que baptizou da melhor maneira o Dragão para as noites europeias. Mas sim, passam agora duas décadas desde que o FC Porto de José Mourinho começou a surpreender o Velho Continente e a confirmar os ousados argumentos gritados pela conquista da Taça UEFA no ano anterior; Nunca um vencedor da UEFA tinha conseguido a mesma supremacia ao subir de patamar logo no ano seguinte, foi preciso esperar por aquela equipa e aquele treinador, que fixou aí o marco e obviamente ninguém voltou a repetir a proeza.

    Esse United era um dos senhores da Europa. Campeão da tríplice em 1999 com a glória em Camp Nou frente ao Bayern. Em 2003/04, Sir Alex Ferguson procurava a renovação. A do plantel, não a contratual – esse imbróglio fora em 2001. Desde a saída de Schmeichel para o Sporting depois da tripleta que não havia guarda-redes autoritário – se nem Barthez sobreviveu à exigência, também não seria Tim Howard, o titular da eliminatória com o FC Porto, a estar à altura. É precisamente o erro da segunda mão que lhe provoca o fim da experiência enquanto Red Devil. Na defesa, Rio Ferdinand estava suspenso pela falta à chamada para um teste anti-doping, e no Dragão jogariam… Gary Neville, adaptado, e Wes Brown, que tinha regressado duma longa paragem por lesão no joelho. Com Denis Irwin já ocupado com a vida pós-futebol, ainda não tinha chegado Evra, e por isso Quinton Fortune, o marcador no Dragão, ia tendo minutos, mostrando na maioria deles que não passava de solução de recurso.

    Ronaldo tinha chegado para fazer as vezes de Beckham, mas era ainda um projecto mais preocupado em mostrar as habilidades artísticas da sua técnica que em colaborar no jogo colectivo. E por isso Ferguson confiava mais em Nicky Butt pelo sentido prático, exactamente a mesma razão pela qual tentava discernir em Djemba-Djemba, voluntarioso médio recrutado ao Nantes, um bom sucessor do histórico Roy Keane. Rooney tinha 18 anos, ainda não existia Tevez, só Saha e Solskjaer como alternativas a Van Nistelrooy. As figuras semi-finalistas de 2007, campeãs de 2008 e finalistas de 2009, que só não continuaram a dominar a Europa pela emergência dum senhor chamado Pep Guardiola, estavam ainda a reunir-se e a crescer. O plantel de 2004 não passou duma equipa de transição na história do Manchester United mas a estatística não deixa que se retire o mérito ao Futebol Clube do Porto: o golo de Costinha em Old Trafford impediu que Sir Alex chegasse aos Quartos da Liga dos Campeões… pelo oitavo ano consecutivo!  E só lá voltaria precisamente em 2007.

    E nessa edição de 2003/04, o registo era impecável. Fase de grupos com Estugarda, Panathinaikos e Rangers e cinco vitórias com cinco clean sheets: os míseros dois golos contra em seis jornadas foram sofridos na única derrota, na Alemanha, frente a Fernando Meira, Hleb, Philipp Lahm e Kevin Kuranyi, treinados por Félix Magath. Uma equipa de respeito. O que só serve como elogio ao Manchester e, consequentemente, ao FC Porto.

    A passear nas competições internas frente a um Sporting a implodir e um Benfica em reconstrução, o FC Porto focava-se nas competições internacionais e baseava nelas a sua preparação, sobretudo mental. Num grupo que misturava a experiência com a identidade azul, a potência da juventude com o cinismo – havia Jorge Costa, Baía, Secretário, Costinha, Sérgio Conceição  como baluartes da cultura portista; Ricardo Carvalho, Deco, Paulo Ferreira, Maniche,McCarthy com 26 anos, Derlei com 28, Nuno Valente com 29, tudo no auge das potencialidades físicas; Carlos Alberto, 18 anos, o prodígio vindo do Fluminense, Bruno Moraes com 19 ou Bosingwa com 21; Ainda Márcio Sousa, o maradoniano talento que era a principal figura da geração que foi campeã europeia sub-17, a que tinha Moutinho e Miguel Veloso (e que ganhou na final a uma Espanha com… Adán na baliza, além de David Silva no miolo). Metiam-se os melhores ingredientes à disposição dum cozinheiro revolucionário, que seria o melhor da década na Europa.

    «Éramos uma equipa com muita qualidade, unida pela amizade. Desde o primeiro momento ele acreditou que poderíamos vencer tudo. Tinha fortes convicções e expressava-as na nossa língua. Era uma mensagem simples. À medida que íamos avançando nas competições, começávamos a sentir uma grande confiança em nós próprios. Pensávamos que éramos os melhores da Europa, posição por posição. Algo que nos fez pensar que era possível, mesmo contra as equipas com mais dinheiro. O que precisávamos era de fazer o nosso trabalho, com esforço e qualidade»[1]

    Continuava Vítor Baía a contar ao The Athletic em 2019, reproduzido depois em português pelo Record: «O melhor momento foi o sorteio. Quando o nome do Manchester United saiu Mourinho começou a bater palmas e aos pulos, afirmando que finalmente teríamos um adversário do nosso nível, que estávamos no caminho certo e que os iríamos eliminar. Foi nessa altura que todos encarámos a Liga dos Campeões com esse objetivo. E isso deu-nos tranquilidade.»

    25 de Fevereiro de 2004. O Dragão engalana-se para receber um United em má fase: entre 11 de Fevereiro e 11 de Março, o Manchester só ganha dois jogos em oito, os dois para a Taça de Inglaterra. A forma como os Invencíveis do Arsenal já iam a galope na liderança da Liga para terminarem sem derrotas provocou nos homens de Ferguson uma natural apatia. Por isso, quatro dias antes da primeira mão, haveria um mortiço empate caseiro com o Leeds. O FC Porto vencera no mesmo dia o Vitória vimaranense por três bolas, poupando McCarthy, Maniche, Alenitchev e Carlos Alberto. Seriam os quatro preponderantes na incontestável vitória portista sobre o gigante inglês, descrita pelo Record da seguinte maneira: «Durante uma hora, o FC Porto deu um espectáculo fabuloso, porque aceitou testar a inteligência táctica, a solidez colectiva e a confiança individual. O resultado foi uma demonstração eloquente, só possível numa equipa que se conhece (dar sentido à complexidade de movimentos feitos do meio-campo para a frente não está ao alcance de todos), tem prazer em jogar junta (só a solidariedade permitiu a resistência física a pressão tão insistente) e se compromete inteiramente com a instituição que representa».[2]

    A pimenta na novela da eliminatória foi dada pelo temperamento de Roy Keane. A pisadela em Baía, já perto dos noventa, seria o burburinho-mor na preparação do tudo ou nada em Old Trafford. Só que o experiente irlandês, por estes dias um carismático comentador na britânica Sky, prejudicou a própria equipa e escolheu mal o alvo, na opinião de Mourinho, que comentava assim na antevisão:

    «Quando o Vítor entrar para aquecer, vai sentir o peso de 70 mil adeptos já bombardeados pelo que andam a dizer sobre o lance com Keane. Mas ele não tem culpa, é experiente e nem vai tremer. Se fosse um puto de 18/19 anos, dava meia volta na área e refugiava-se no balneário. Mas o Vítor vai estar lá».[3]

    Ferguson, quando confrontado com a hipótese de que tinha interpelado Mourinho no final do primeiro jogo para atiçar o ambiente na volta, fez-se inocente e fingiu não ser nada com ele as questões de teatro e mind games. «Se comentar isso aquece o ambiente? O nosso público é plácido… Espero um bom ambiente amanhã, que nos ajude…».[4]

    José Mourinho percebe o que está em causa e a guerra psicológica que aí vem. A cinco de Março, vence o Belenenses por 4-1 sem Nuno Valente, Ricardo Carvalho, Alenitchev, Carlos Alberto e Maniche, uma gestão que a folga pontual na Superliga permitiria sempre que necessário.

    A seis, Sir Alex jogava os Quartos da Taça – que venceria 2-1, frente ao Fulham – com Giggs, Nistelrooy, Scholes, Butt, Fletcher – nove titulares seriam-no também a meio da semana. Começou aqui a desilusão, o orgulho como ignição duma sobranceria sem precedentes que culminou na convicção de que não era necessário tomar precauções físicas.

    A vitória foi épica. A crónica do Record resumia na perfeição toda a complexidade da história. «Simplesmente espectacular a forma como os azuis e brancos reagiram, convictos de que podiam não só resistir ao inferno como virá-lo do avesso – e é escusado dizer que nenhuma equipa portuguesa nos últimos quinze anos seria capaz de fazer o que o FC Porto ontem fez em Old Trafford».

    Chegou-se a falar mesmo em “chico-espertismo saloio” para definir a postura de Sir Alex nos preparativos para o jogo. Em 2013, parecia não ter ainda conseguido aceitar o desfecho da eliminatória – na sua autobiografia, de inventivo título, My Autobiography, recordará assim as incidências: « O jogo de 2004 frente ao FC Porto foi inacreditável. E a pior decisão nem foi o facto de ele ter invalidado um golo limpo do Scholes que nos daria o 2-0. A poucos minutos do fim, Ronaldo foi derrubado pelo defesa-esquerdo do FC Porto. O juiz de linha assinalou a falta, mas o árbitro mandou seguir. O FC Porto contra-atacou e ganhou o livre que acabaria por resultar no golo do empate»[5]. Concluiria, com um malabarismo simbólico, que José Mourinho é um daqueles «tipos que quando estão em cima da prancha de surf, se aguentam mais tempo na onda do que qualquer outra pessoa».  

    Com toda a razão, neste caso. Com a merecida recarga de Costinha, Mourinho surfou a linha lateral não para ser mais um no amontoado de euforia mas para mostrar que tinha saído por cima. Equilibrando-se na prancha e mostrando não ter medo, seguiria para o mesmo campeonato e pulverizaria todos os recordes daquele futebol – como a história do pequeno tirano que se torna monstro num ápice, quando finalmente arranja alvo para a sua vingança. Fixando-se agora no imaginário continental, essa vitória foi o passo natural num caminho ascendente que começou na antecipação de queixo levantado na Luz, quando viu que não era a primeira opção –  ou quando afirmou, nos inicios de 2002, que «em condições normais» a sua equipa era muito melhor que a concorrência, prevendo que ia ser campeão no ano seguinte.  

    Mourinho estava já bastante acima do nível nacional – e comprovou que era de elite quando saiu a festejar na cara do inferno de Old Trafford, quando a vitória desportiva permitiu o definitivo ascendente mental. E como prova da aliança entre grandioso espírito competitivo e sagaz sentido de humor, um trickster ao nível de qualquer escocês, foi natural a escolha de Ársene Wenger para principal rival na primeira estadia em Londres. Mourinho nunca daria a Ferguson o gosto de lhe entender as prioridades ou a hipótese de se galvanizar contra si. Por isso lá chegou e na apresentação traçaria os limites – seria ele o mais especial.  E teve argumentos de sobra para o comprovar: só perderia contra Ferguson ao sétimo jogo, já em Novembro de 2005. Em 16 jogos, só por duas vezes o Especial perdeu contra o Cavaleiro da Rainha.


    [1] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/fc-porto/detalhe/o-epico-episodio-de-mourinho-no-fc-porto-saiu-o-manchester-united-e-ele-comecou-aos-pulos

    [2] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/fc-porto/detalhe/fc-porto-manchester-united-2-1-um-belo-hino-ao-futebol-em-tons-azuis-e-brancos

    [3] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/fc-porto/detalhe/mourinho-defende-baia–e-garante-que-nao-treme

    [4] Idem

    [5] https://www.zerozero.pt/noticias/alex-ferguson-recorda-eliminatoria-da-i-champions-i-com-o-fc-porto-em-2004/128287

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    Pedro Cantoneiro
    Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
    Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, o Benfica como pano de fundo e a opinião de que o futebol é a arte suprema.