«Faltam mais líderes e referências no FC Porto» – Entrevista BnR com Aloísio

    – O significado da mística, a formação dada a Fernando Couto e Jorge Costa e o pedido de desculpas a João Vieira Pinto –

    “A mística é como se fosse a chama da tocha Olímpica: não se pode deixar apagar. Se apagar acabou e fica muito difícil de ganhar coisas”

    BnR: Sentiste mais pressão e exigência dos adeptos por teres vindo do Barcelona para o FC Porto?

    A: Não, não senti mais pressão pelo facto de ter chegado ao FC Porto com 27 anos e estava no auge da minha carreira. Nesses meus 27/28 anos eu acho que estava em pleno fisicamente, com uma experiência de dois anos do Barcelona, com a experiência de ter jogado uma competição europeia e jogar uma Liga Espanhola que era muito forte. Agreguei muito a nível pessoal e profissional, então cheguei ao FC Porto com uma confiança muito grande. Sabia que o FC Porto era um clube grande, com um histórico muito bom e mesmo com todos os centrais que tinham passado por ali, para mim isso tudo era um desafio. Eu vi no FC Porto um clube onde eu poderia ganhar títulos e crescer como jogador e como pessoa. Não me arrependo de ter escolhido o FC Porto pelo facto de o clube me ter dado condições e me ter potencializado para ser ainda melhor jogador.

    Fonte: FC Porto

    BnR: Chegas a uma equipa que tinha sido campeã europeia poucos anos antes e integras um plantel que tinha Jorge Costa e Fernando Couto como jovens promissores e Geraldão, João Pinto e Branco como referências defensivas. Alguns destes nomes são símbolos da famosa mística. O que é para ti a mística?

    A: (risos) Essa palavra é um pouquinho complexa. O FC Porto foi um clube onde eu vivi muitos anos, entraram e saíram jogadores com qualidade e muitos bons jogadores não conseguiram se firmar no FC Porto pela dificuldade em permanecer num plantel com muita qualidade. Passaram ali grandes jogadores e eu fui ficando. Eu acho que mística é aquilo que tu trazes, um pouco de ti, da tua essência como homem e como atleta. É como tu te colocas, como é a tua postura nos treinos, nos jogos e fora de campo. É a imagem e a liderança que passas. Acho que no FC Porto a mística já estava ali, ela não é perdida. É o clube em si, é o histórico do clube, quem passou ali e quem vestiu a camisa do clube. O André, o João Pinto, Semedo, Bandeirinha, Jaime Magalhães, Lima Pereira, Geraldão, Juary, o Celso, o Gomes, se eu falar aqui em nomes não vou parar. Muitos jogadores com formação no clube e muitos que vieram de fora, mesmo os portugueses que fizeram formação em outros clubes, quando entraram no FC Porto, é algo diferente. Tens que te inserir, se adaptar e entender rápido o que é vestir a camisa do FC Porto, o que é defender as cores do Dragão. Então a mística é passada. O João Pinto ficou, ele passou aquela mística de ganhar e até estar com um dedo do pé quebrado em que, numa situação normal, ele nem treinaria e ficaria em casa, mas ele fez um buraco na sua chuteira e vai para o jogo. Chegou a ter um afundamento no sobreolho e continuou jogando, só no outro dia é que foi para o hospital. Tinha o André que trincava os dentes e não dava a bola como perdida. A mística é passada e eu cheguei e entendi logo, fui passando para os que chegavam, independentemente da nacionalidade. É como se fosse a chama da tocha Olímpica: não se pode deixar apagar. Se apagar acabou e fica muito difícil de ganhar coisas. Eu fiquei onze anos, ganhei sete títulos e às vezes ainda me falavam “Os árbitros roubavam para o FC Porto e era uma vergonha”. Aí eu penso, o pessoal não via o nosso dia-a-dia, os adeptos das outras equipas não viam os treinos do FC Porto e até era bom que isso fosse possível. Assim eles viam “Olha só como eles treinam”. No dia de jogo não tinha como não ganharmos ou não sermos campeões. Não estou a dizer que as outras equipas não trabalhavam, com certeza que sim, se trabalhavam bem, nós treinávamos melhor, se trabalhassem muito, nós trabalhávamos muito mais. Nós é que corremos, se nós não fizermos a nossa parte, não vai ter árbitro que nos ajude. Nos treinos era uma coisa impressionante, o treino de sábado parecia uma competição, ninguém queria perder. Se alguém visse pensava “Se no jogo do treino é assim, no jogo não tinha hipótese de ser diferente”. Me orgulho muito de ter feito parte dessa grande equipa, de ter vestido a camisola e de ter compartilhado o balneário, o campo, viagens e hotéis com grandes jogadores. Essa acredito que é a mística do FC Porto, aquilo que é passado pelos mais velhos, aqueles que entendem e que já estão no clube e com certeza que faz a diferença, e muito.

    BnR: Essa foi a melhor definição da mística que eu já ouvi.

    A: (risos)

    BnR: Durante onze épocas o Aloísio fez crescer outros centrais à sua volta, Jorge Costa e Fernando Couto, por exemplo. Como é que um mentor, aparentemente, tão tranquilo como o Aloísio, teve alunos tão explosivos e temperamentais como Jorge Costa e Fernando Couto?

    A: (risos) Eu até brincava com eles que quando eles fossem para outros clubes, eu deveria ter uma percentagem no contrato deles pelo facto de ter dado formação para eles (risos). Foi um prazer e uma grande honra, joguei com dois grandes centrais portugueses, que representaram a seleção portuguesa e jogaram fora do seu país. O Fernando Couto esteve no Barcelona e depois na Lázio, o Jorge Costa esteve em Inglaterra. Foram dois jogadores que eu vi crescer, com características diferentes, mas com um potencial enorme. Eram jovens, eram miúdos. O Fernando Couto jogou no Famalicão emprestado, era normal sair naquela época, depois voltou e conseguiu-se impor. O Jorge Costa teve no Marítimo, depois também conseguiu voltar e se impor no clube. O próprio Ricardo Carvalho jogou no Leça, depois também voltou para o FC Porto. Eram jogadores que eu me identificava bastante. O Fernando Couto era mais sanguíneo na sua forma de jogar, até demasiado em algumas situações. Naquele tempo eram permitidas algumas coisas e hoje não, hoje ele estaria sendo expulso a todo o jogo. Eu acho que ajudei e tive a minha quota parte nesses atletas pelo facto de ser mais experiente e pela minha forma de jogar e pensar. Conversávamos muito nos treinos sobre o posicionamento, a tranquilidade, o que fazer em determinados momentos do jogo. Conversávamos bastante durante a semana e nos jogos isso facilitava bastante porque havia uma boa conexão. Eram jovens que ouviam, respeitavam e tinham a humildade para aceitar o que eu poderia acrescentar na carreira deles e eu estava aprendendo com eles também.

    BnR: Vences o teu primeiro título nacional na segunda época de azul e branco, numa época em que apenas sofrem 11 golos no campeonato. Este título foi o mais especial da tua carreira?

    A: Sim, o primeiro título nacional sim. Como eu não tinha sido campeão nacional no Barcelona, eu almejava muito ser campeão português e com certeza que o primeiro título foi muito especial e foi muito desejado. Foi algo que eu buscava, trabalhamos para isso e acabamos por conseguir esse tão desejado título.

    BnR: A tua quarta época no FC Porto começa instável com Ivic ao comando, mas aos poucos começa a endireitar com a chegada de Bobby Robson e de um tradutor especial, José Mourinho. O que te recordas dos primeiros tempos desta dupla?

    A: Eles trouxeram algo diferente para o FC Porto na forma de trabalhar e pensar o futebol. O Mister Bob tinha a sua experiência, sabedoria e tinha as suas ideias bem vincadas. Ele cobrava muito e nós trabalhávamos muito. Ele era muito direcionado e organizado. Era muito exigente no aspeto tático, cobrava muito dos jogadores, fosse quem fosse. Ao mesmo tempo respeitava cada um, conseguia agregar os jogadores que jogavam e os que não jogavam. Tinha uma forma muito especial de lidar com os jogadores e os jogadores respeitavam muito. Ele dizia sempre “Hoje não jogaste, mas no próximo podes jogar”, e quando os colocava ele falava “Muito bem” e dava os parabéns. Tinha algo muito peculiar: após o jogo, no regresso aos treinos, ele ia ao quadro e dava notas aos jogadores que tinham jogado. “Vítor Baía, muito bem, mas aquela bola que tu saíste foi nota tal”, acho que era de 1 a 10 (risos). Falava umas palavras misturadas do português e inglês, tinha um jeito muito especial e engraçado. O FC Porto teve uma página nova com a vinda do Mourinho e do Mister Bob, onde nós jogávamos com alegria, jogávamos um futebol bonito, muito ofensivo, muito equilibrado e onde nós conseguimos ser uma equipa muito forte e estável. Tínhamos uma defesa muito forte, um meio-campo espetacular e tudo funcionava. Tenho grandes recordações e dava gosto. Quem estava no banco e nos via jogar era espetacular.

    BnR: Nesse ano a equipa apostou todas as fichas na Taça dos Campeões Europeus e o FC Porto chega à meia-final, onde o Aloísio reencontra o Barcelona em Camp Nou e perdem 3-0. Chegaste a perdoar o Bobby Robson por te ter colocado a defesa esquerdo no jogo frente ao Barcelona a marcar o Stoichvok?

    A: (risos) Com certeza, eu só fiquei chateado no momento porque eu não sabia que ia jogar a defesa esquerdo. A minha posição era central, não que eu já não tivesse feito essa função nas eliminatórias, se não me engano contra o Feyenoord, mas obviamente que não era a função que eu estava mais à vontade, especialmente contra o Barcelona. Eu ainda não tinha voltado a Barcelona e para mim era uma motivação extra, não que eu tivesse de mostrar alguma coisa. Era especial esse jogo, eu já me preparava muito para os jogos e nesse jogo me preparei mais ainda. No dia do jogo o Mourinho foi ao meu quarto e me chamou dizendo que o mister Bob queria falar comigo. Ele estava acanhado, meio sem jeito e já tinha decidido a equipa com os demais treinadores em virtude da forma do Barcelona jogar. Na altura era o Rui Jorge o defesa esquerdo titular e como eu era mais rápido do que o Rui Jorge eu poderia, não digo anular, mas fazer com que o Stoichkov fizesse menos danos naquela área. Eu não disse que não, falei que não esperava, que queria jogar de central porque poderia colaborar mais na minha posição do que a lateral. Eu queria jogar, nem que fosse a guarda-redes. Fiquei chateado no momento, mas depois interiorizei que o mister fez uma opção e eu procurei fazer o meu melhor.

    Fonte: FC Porto

    BnR: Porque é que o Jorge Costa foi a melhor dupla que tiveste?

    A: Pelo facto de jogar mais tempo com ele. Embora tenha jogado alguns jogos com o Fernando Couto, joguei mais vezes com o Jorge Costa. Eu conheci o Jorge, ainda na sua formação, jogando de uma forma e depois no pós-Marítimo ele volta ao FC Porto com outras responsabilidades. Foi um jogador que eu vi crescer e amadurecer na sua forma de jogar. Era aquele jogador com uma compleição física muito grande, mas era muito rápido. Eu não me lembro de ter visto um jogador ultrapassando o Jorge lado a lado no sprint. Parecia que era lento, mas era muito rápido. Era um jogador que usava muito a sua força e o seu físico, com os treinos e o jogo foi amadurecendo e vimos um Jorge com grandes recursos técnicos e que marcava golos. A ideia que tínhamos do Jorge é que ele só “batia” que só usava a força, mas não, ele evoluiu tecnicamente e foi muito gratificante vê-lo a jogar da forma como jogava. Acho que o Jorge também bebeu um pouquinho da fonte e foi uma troca de formas de pensar e jogar. O Jorge tinha as características dele de jogar e eu tinha as minhas. Realmente foi o jogador que eu me acertei mais. Era um líder que não gostava de perder, fomos capitães, ele foi o meu capitão e sabia conduzir as coisas e se impor de uma forma natural.

    BnR: O Aloísio chegou a dizer: “Eu e o Jorge Costa batíamos muito no João Vieira Pinto”. Porque é que o João Pinto era a vossa vítima favorita?

    A: (risos) Eu falei isso porque me perguntaram do avançado mais difícil que eu enfrentei e foi o João Vieira Pinto, pelo facto de ser um jogador fora da média, que eu admirava muito já desde a época do Boavista. Era um jogador “chato” de marcar e não virava a cara à luta, mas ao mesmo tempo, em algumas fases, não só contra o FC Porto, o João tinha aquela mania de cair, qualquer coisa ele simulava falta. Ele simulava muito bem, ele era um bom “artista” no sentido da palavra. Não digo que dava raiva, mas nós ficávamos “Joga à bola, não há necessidade disso”. Então houve momentos em que João não era bem visto, não só por mim, pelo Jorge Costa, pelo Paulinho Santos, mesmo para as outras equipas do campeonato nacional. Mas foi um dos grandes avançados que eu enfrentei. Depois em 2008, em SC Braga, o Jorge Costa era o treinador e eu era o adjunto e quem estava no SC Braga era o João Pinto (risos). Ele foi nosso jogador e até brincava “Esses dois é que me batiam”. Na altura eu pedi desculpas, “João, realmente nós te batíamos muito”.

    BnR: Como é que eram vividos os clássicos na década de 90? Achas que eram diferentes dos de atualmente?

    A: Sim, a atmosfera que havia durante a semana, jogando em casa ou fora, os próprios adeptos, a imprensa, os estádios era tudo diferente. Jogar no antigo estádio da Luz, um estádio gigantesco e sempre lotado, jogar nas Antas num estádio que eu gostava muito de jogar com os adeptos mais próximos do campo e realmente aquele ambiente era espetacular, até o próprio caminho do balneário até entrar dentro do campo. Nos clássicos cada jogo era um jogo diferente, cada clássico tinha uma história. A motivação já estava presente durante a semana. Acho que mudou bastante para agora, não que não haja disputa, mas acho que talvez as pessoas estivessem mais próximas, o próprio estádio fazia com que os adeptos estivessem mais próximos e essa forma de torcer e receber era diferente. A chegada no estádio era diferente, a nossa chegada era diferente em todos os estádios porque éramos os mal-vistos do país, criava uma atmosfera de rivalidade, mas para nós jogadores era bom porque sabíamos que não éramos bem vistos porque éramos uma equipa a abater e que tínhamos guerreiros que não viravam a cara à luta. Éramos um exército e os soldados que entravam ali, tinham que dar o seu melhor.

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    Nélson Mota
    Nélson Motahttp://www.bolanarede.pt
    O Nélson é estudante de Ciências da Comunicação. Jogou futebol de formação e chegou até a ter uma breve passagem pelos quadros do Futebol Clube do Porto. Foi através das longas palestras do seu pai sobre como posicionar-se dentro de campo que se interessou pela parte técnica e tática do desporto rei. Numa fase da sua vida, sonhou ser treinador de futebol e, apesar de ainda ter esse bichinho presente, a verdade é que não arriscou e preferiu focar-se no seu curso. Partilhando o gosto pelo futebol com o da escrita, tem agora a oportunidade de conciliar ambas as paixões e tentar alcançar o seu sonho de trabalhar profissionalmente como Jornalista Desportivo.