«O SC Braga tem melhor plantel do que o Sporting CP» – Entrevista BnR com Augusto Inácio

    «Tenho quase 100% de certeza que se o André Cruz não viesse em janeiro o Sporting não teria sido campeão»

     

    Bola na Rede: A carreira de treinador começa em 1989/1990, logo no ano imediatamente a seguir a teres deixado a carreira de futebolista. Ser treinador era algo que sempre quiseste ser?

    Augusto Inácio: Quis ser treinador a partir dos 28 anos. Comecei a questionar o professor Hernâni Gonçalves, que era o preparador-físico do FC Porto: Porque fazíamos aqueles alongamentos no princípio do treino ou aqueles intervalados no final? E comecei a apontar num caderno as respostas que ele me dava. E depois comecei a pensar no que diria aos jogadores antes do jogo ou ao intervalo caso fosse o treinador. E fazia uma palestra à frente do espelho. Depois, ouvia o treinador… Às vezes coincidia, outras não. Mas comecei a fazer estes exercícios. Foram seis anos a preparar-me, a observar o balneário. Naquele tempo para tirar os cursos de treinador bastava ser jogador internacional, faziamo-nos meia dúzia de perguntas e tínhamos o “canudo” na mão. Mas, lá está, depois os passos que cada um dá são determinantes para a carreira. Eu já dei uns passos errados, é verdade, mas no início dei um passo certíssimo: tenho um convite para ir para o Maia, que tinha subido da 3.ª para a 2.ª, e o FC Porto oferece-me o lugar de treinador dos juniores. A diferença de dinheiro era abismal, o Maia oferecia-me, na época, cinco mil euros por mês e o FC Porto apenas mil. Mas pensei: “– Augusto, isto de tu saberes o que é liderares 30 homens… Começa por baixo”. E então comecei por baixo, pelos juniores. Quando o FC Porto me oferece mil euros por mês, eu pergunto: “– Como? Mil euros, então mas o Maia dava-me cinco mil”. “– É aquilo que podemos pagar ao treinador dos juniores”, foi a resposta que ouvi. Ok, está bem. Fiquei ali dois anos, fomos campeões logo no primeiro, e quando acaba o contrato queriam que renovasse por mais dois anos. E penso: “Não, agora quero outro patamar. Agora, quero treinar profissionais”. E vou para o Rio Ave e levo nove miúdos dos juniores do FC Porto para lá. Eles não tinham dinheiro e só me pediam para não descer de divisão. A equipa era tão jovem, tinha uma média de idades de 20,1 anos, penso eu. Jogava lá o Paulinho Santos, que era jogador do Rio Ave, e que depois foi para o FC Porto por indicação minha. O certo é que ficámos em quarto lugar, a um lugar de subir à 1.ª divisão, porque subiam três equipas, e nós só não subimos por jogadas de bastidores que agora não interessa estar aqui a contar. E não é desculpa aquilo que estou aqui a dizer…

    Bola na Rede: Quem subiu nesse ano?

    Augusto Inácio: Lembro-me que subiu o Tirsense, que ficou em terceiro lugar. Eu andava à luta com o Tirsense, que era treinado pelo meu amigo Rodolfo [Reis], e eu sei como é que eles subiram… Subiu ainda o Sp. Espinho e o Belenenses. O Tirsense subiu ali nas últimas jornadas.

    Bola na Rede: O Rio Ave nessa época tinha uma excelente: Bino, Tulipa, Paulinho Santos…

    Augusto Inácio: Sim, sim. Ainda estava lá o Cao, o Gamboa…

    Bola na Rede: E o Rui Jorge também está lá?

    Augusto Inácio: Sim, sim. O Rui Jorge levei para lá. Depois dessa época tive um convite do Paços Ferreira, mas é quando o Reinaldo Teles me convida para ser treinador adjunto do Carlos Alberto Silva, no FC Porto. E é assim que começa quatro quatro anos como treinador adjunto: do Carlos Alberto Silva, do Tomislav Ivic e do Bobby Robson…

    Bola na Rede: Três grandes treinadores que, infelizmente, já nos deixaram. Foram muito importantes no teu percurso?

    Augusto Inácio: Sim, muito importantes. O Bobby Robson então… Era um ‘gentleman’, mas no treino era uma figura. (risos) Uma vez estávamos no campo de treinos e ele gostava muito de fazer aqueles exercícios de finalização. Há uma altura em que alguém faz um cruzamento muito “bombeado”, a bola ia devagarinho. Então, ele atirou-se para o chão e, deitado no relvado, começou a apontar com o dedo para o céu e a dizer: “– Neve, neve”. (risos) Nós olhámos para aquilo e começámos todos a rir às gargalhadas. Só dissemos para quem estava a cruzar: “– Oh pá, não se sejas palhaço, cruza isso como deve ser, isto não é neve, não é neve”. (risos) Mas pronto, ele era organizado, tinha um bom apoio nos seus adjuntos – eu e o José Mourinho (mas mais o Mourinho que já sabia falar bem inglês) – e era, sobretudo, uma pessoa extremamente positiva. Com ele aprendi uma coisa, quer dizer, aprendi mas nunca exerci. Ele dizia-me: “– Inácio, sabe que equipa vai jogar no domingo? Aprenda, na quinta-feira, na cabeça do treinador, já não pode haver dúvidas. Senão está com dúvidas na quinta, na sexta, no sábado… E nunca chega a uma conclusão”. Eu ficava a matutar naquilo, quem joga, quem não joga, e ele, a partir de quinta-feira, já dormia descansado, já não pensava mais naquilo. E eu pergunto, quem é que está certo? Eu ou Bobby Robson?

    Bola na Rede: Mas nunca adotaste essa estratégia?

    Augusto Inácio: Não. Eu pensava: o homem tem razão. Mas a minha mentalidade não é essa.

    Bola na Rede: E o Tomislav Ivic? Também foi um treinador que marcou o futebol português…

    Augusto Inácio: O Ivic era o maluco da tática. Se fosse duas ou três horas no autocarro, entre Porto e Lisboa, ele ia com um bloco de notas a viagem toda a fazer tácticas: 4x3x3, 4x2x3x1, 3x5x2… Eram tantas. Eu dizia-lhe: “– Oh mister, eu só conheço o 4x4x2, o 4x3x3, o 4x2x3x1, o 3x5x2… Há mais alguma tática? É que eu estou a ver tantas nos seus papéis que não estou a perceber”. (risos) E ele dizia-me: “– Não, é para tirar aqui ideias e ver isto em relação ao jogo que vamos fazer e também em relação ao futuro”. Ele tinha montes e montes de folhas com táticas, sempre a verde e a vermelho. Aquele homem era fanático pela tática. Há um dia em que vamos jogar ao Feyenoord, há “banheira” de Roterdão. Tinhamos ganho 1-0 nas Antas e aquilo era um jogo super complicado para nós. E então jogámos com três centrais, dois defesas-direitas, dois defesas-esquerdos, a povoar o meio-campo e só o Kostadinov lá na frente. Resultado final: 0-0. Remates à baliza: um. Posse de bola: acho que eles deviam ter 90% e nós só dez. No final, o Ivic pergunta-me, mas com um descaramento engraçado: “– Oh Inácio, acha que jogámos muito à defesa? Ouvi dizer que jogámos muito à defesa”. (risos) Só faltou pôr tijolos e cimento à frente da baliza. (risos) 

    Bola na Rede: O Ivic era o que se chama hoje um resultadista. Aliás, lembro-me bem que ele era muito criticado por isso…

    Augusto Inácio: Era, era. A ideia dele era: primeiro, não sofrer golos. Se depois pudermos marcar um golo, marcamos. Mas sofrer é que não. Era este o princípio básico dele.

    Bola na Rede: E regressas ao Sporting em 1999/2000. Assumes o cargo de treinador e, após tantos anos de espera, consegues levar o Sporting à conquista do título de campeão nacional, 18 anos depois. Talvez tenha sido o teu grande momento como treinador…

    Augusto Inácio: Deixa-me dizer-te, antes de falarmos disso, que realmente os treinadores só são lembrados quando conquistam títulos. Olha, por exemplo, quando estive no Marítimo [em 1997/1998] fizemos um trabalho fantástico e levámos a equipa à Europa, depois de, na última jornada ganharmos, ao FC Porto [3-2] e o Boavista perder em casa com o Campomaiorense [1-2]. Ficámos em 5.º lugar e fomos às competições europeias. Isso são os tais “títulos” que não são visíveis… E mesmo a passagem pelo Desp. Aves [em 2018/2019], em que conseguimos a manutenção, para mim aquilo também foi um título. Era impensável o Desp. Aves ficar na 1.ª divisão com 12 pontos na primeira volta. Conseguimos 24 pontos na segunda, 36 pontos no total, e conseguimos. Mas só para dizer que não são só os troféus que significam um grande trabalho e um grande momento…

    Bola na Rede: Claro, mas fala-se mais do Sporting até pelos anos de espera pelo título de campeão, não é? O Sporting já tinha tido grandes equipas e tardava em conquistar o campeonato…

    Augusto Inácio: Sim. Nesse ano, pela primeira vez na minha carreira, não estava a fazer uma pré-época, e estava a fazer comentários para a Antena 1. Estava no Estádio das Antas a fazer comentários para o FC Porto-Estrela da Amadora quando recebo uma chamada do Agostinho Abade. Expliquei onde estava e ele pediu para falar comigo num hotel na Avenida da Boavista no final do jogo. Ok. Fui ao hotel, subi ao quarto dele e perguntou-me se podia ir falar com o presidente José Roquette ao escritório dele no Restelo. No dia seguinte, fomos até lá.

    Bola na Rede: Já ias com esperança de receber um convite para treinador?

    Augusto Inácio: Não. Eu sabia que havia qualquer coisa que me queriam, mas não sabia o quê. Quando cheguei o presidente José Roquette disse-me que queria que eu regressasse ao Sporting, que era um homem da casa, que não deveria ter saído… E disse-me que o meu papel seria ser o elo de ligação entre o balneário e a direção. Ok, aceitei, mas disseram-se que me iam apresentar aos jogadores como treinador, embora, para a direção, eu estava ali apenas de forma interina. Eles andavam à procura de treinador e quando ele fosse contratado então assumiria a posição para a qual me tinham convidado. Ok. Antes de me apresentarem no balneário ouço um diretor – não interessa agora quem – dizer o seguinte: “– Ele que não meta o Vidigal a jogar que aqueles pezinhos parecem uns tijolos”. Eu ouvi isto. Começaram-se todos a rir e eu entro dentro da sala e digo ao presidente que também lá estava: “– Oh presidente, você escusa de me apresentar como treinador aos jogadores. Já temos aí um treinador. Ele até já está a dizer que o Vidigal não pode jogar, apresente-o aos jogadores”. Sinceramente, acho que aí marquei posição, que o presidente gostou do que ouviu – eu não gostei do que ouvi, mas ele gostou do que ouviu. A verdade é que se nós deixamos que nos metam a “mão” em cima logo no primeiro momento, então, estamos desgraçados, e nunca permitiria uma coisa dessas. Claro que ganhas inimigos com isto, mas também é uma forma dos jogadores verem como é a tua liderança.

    Bola na Rede: E foste mesmo apresentado como treinador?

    Augusto Inácio: Sim. E as coisas começam a “rolar” e, pronto, até ao fim, até sermos campeões nacionais.

    Bola na Rede: Em 2000, talvez nem fosse muito expectável o Sporting ser campeão. Fico sempre com a sensação que o segredo para a vitória foi o mercado de inverno, com a contratação do André Cruz, do César Prates e do Mpenza. Concordas?

    Augusto Inácio: Foi um dos grandes segredos. E foi por causa da CAN [Taça das Nações Africanas] que havia esse ano. O Saber e o Ayew iam para a CAN durante o mês de janeiro e é quando chegam o André Cruz, o César Prates e o Mpenza. Acho que foi em cheio e, aí, não dêem mérito ao Augusto Inácio, que não tem mérito nenhum. Dêem mérito ao Carlos Freitas que foi ele quem trouxe estes três jogadores. Temos de dar o mérito a quem o tem. 

    Bola na Rede: O André Cruz era o “patrão” da defesa e ainda por cima era decisivo nas bolas paradas…

    Augusto Inácio: Tenho quase 100% de certeza que se o André Cruz não viesse em janeiro o Sporting não teria sido campeão. Ele desbloqueou-nos muitos jogos. E depois ficámos com “banco”. Ainda tinha o Toñito, o Edmilson… Mas há ainda um outro segredo para chegarmos ao título e que também foi muito importante.

    Bola na Rede: Qual é o segredo?

    Augusto Inácio: O balneário tinha umas 12 nacionalidades: portugueses, brasileiros, argentinos, ganeses, marroquinos, dinamarqueses, espanhóis, belgas, italianos… Havia várias nacionalidades. E pensei: “Como é que vou ‘agarrar’ este balneário com tanta gente diferente? Só eu e os meus assistentes não conseguimos…”. Então arranjei quatro capitães ali dentro: o Beto Acosta dominava os argentinos, o Rui Jorge (que, para mim, era mais homem, mais líder, que o “capitão” do Sporting na altura, que era o Pedro Barbosa) também era um líder, o André Cruz outro “capitão” sem braçadeira e depois o Peter Schmeichel, que era aquela grande figura, respeitado por todos. Portanto, encontrei nestes quatro elementos o apoio que precisava. Quando havia um problema com os argentinos, por exemplo, o Quiroga ou o Duscher, chamava o Acosta, não chamava os outros. “– Acosta, o que se passou ali dentro?”, perguntava-lhe. “– Oh mister, não se preocupe”, dizia-me o Acosta. E eu dizia-lhe: “– Mete-os na linha senão vai sobrar para alguém, e olha que não vai ser para mim”. E eles resolviam o problema. Era importante que quando alguém falasse, os restantes jogadores escutassem. E todos escutavam estes quatro jogadores de corpo feito. Sempre que eles abriam a boca… “– Oi, está a falar o Acosta. – Oi, está a falar o Schmeichel”. Não fiz isto de forma pensada, foi apenas para “segurar” o balneário, mas resultou e resultou muito bem.

    Bola na Rede: Ao ouvir-te dá a ideia que o balneário não era fácil.

    Augusto Inácio: Não era, não. Havia alturas… Havia grandes “bocas” naquele balneário. Houve uma vez em que o Duscher não respondeu bem ao rapagão, ao [Vitorino] Bastos, meu amigo, e eu fui logo para cima do Duscher. “– Da maneira como estás a falar com o Bastos, é a mesma coisa que estás a falar para mim. Tens respeito, senão pões-te já daqui para fora. Quem é que tu pensas que és aqui? O que é que mandas aqui? Respeitinho com o treinador”. Para não haver estes stresses, sobretudo, quando não se ganhava. Era um balneário onde tinha de se ter “pulso de ferro”. Aquele balneário não ia lá com palavras mansas. Até porque os jogadores olhavam para mim e pensavam, por tudo o que vinha na comunicação social, que eu estava apenas de passagem, a prazo, que daqui a pouco vinha outro. Então comecei logo a afirmar-me: “– Calma lá. Enquanto estiver aqui vai ser assim, como eu quero”. É claro que precisava de apoio e esses “pesos pesados” do plantel estavam comigo. Claro. Jogavam, não é? Jogavam, por isso estavam comigo. (risos)

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    João Amaral Santos
    João Amaral Santoshttp://www.bolanarede.pt
    O João já nasceu apaixonado por desporto. Depois, veio a escrita – onde encontra o seu lugar feliz. Embora apaixonado por futebol, a natureza tosca dos seus pés cedo o convenceu a jogar ao teclado. Ex-jogador de andebol, é jornalista desde 2002 (de jornal e rádio) e adora (tentar) contar uma boa história envolvendo os verdadeiros protagonistas. Adora viajar, literatura e cinema. E anseia pelo regresso da Académica à 1.ª divisão..                                                                                                                                                 O João não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.