Recordar é Viver: O ídolo de Haaland | Michu e o Swansea 12/13

    Se em amena cavaqueira com outros amantes da bola referirmos Miguel Pérez Cuesta, a conversa fluirá rapidamente noutra direcção aleatória. É provável que ninguém dê conta do desrespeito que acabou de cometer. Se insistirmos, delicadamente, e trocar-mos o nome todo pela alcunha – Michu – a mesa irromperá em efusivos elogios, todos eles a redundarem em sintética mas esclarecedora onomatopeia, algures a meio caminho entre o sensaborão EISH! imortalizado por Pedro Henriques e o multifacetado EHPÁ!, a interjeição mais adorada da nossa língua, que se intensifica com o prolongar da primeira vogal com recurso a múltiplos agás, o tal que não faz barulho sozinho mas basta juntar-se aos outros para provocar o caos. Ao contrário de Michu, que não era desses que precisavam duma equipa a suportá-lo. A este tipo de figura, basta juntar-lhes colegas competentes para ascenderem a patamar de intocáveis; só que, em 12/13, com tantos da sua laia técnica nas redondezas, Michu foi transcendente, surgindo como meteorito para ser ícone do football original, mesmo partilhando palco com Van Persie, Aguero ou Bale.  

    Um trequartista inato com corpo de homem-alvo, o híbrido perfeito para os ritmos alucinados da Premier League. Depois de fazer 15 golos pelo Rayo Vallecano na La Liga 11/12 (o único médio no top8 do Pichichi, e médio se diz porque naquele Rayo havia Raúl Tamudo ou Diego Costa), o Swansea pagou dois milhões pelo seu passe no Verão de 2012, quando Michael Laudrup tinha substituído Brendan Rodgers, de viagem para Liverpool. Na altura pouco se falou da movimentação e foi preciso esperar pela primeira jornada da Premier para Michu se apresentar como deve ser, com dois golões numa tarde mágica na Loftus Road, casa do Queens Park Rangers. O 0-5 final, primeira vitória de sempre dos Cisnes naquele estádio, foi como uma bomba: o futebol rendilhado de Laudrup era irresistivelmente interpretado por Routledge, De Guzman, Nathan Dyer, Pablo Hernández e Michu, com o seu girar de mão perto do ouvido, celebração que servia para pedir o parecer dos críticos. Os olhos dum jovem chamado Erling Haaland, de 12 anos, brilhavam intensamente e escolhiam o novo ídolo.

    Brendan Rodgers tinha segurado os Swans na primeira – onde já não estavam desde 1984 – com uma aposta forte pelo jogo lateral, aproveitando o zénite de Scott Sinclair, servido pelo patrão Joe Allen. Ora, a qualidade apresentada não passou despercebida ao Liverpool, que levou o técnico e centrocampista, e ao Manchester City, que sacou a flecha. André Vilas Boas chegou ao Tottenham e correu para fechar com Sigurdsson, o fantasista islandês que jogava à frente de Allen. Três tiros que comprometeriam qualquer projecto ainda em solidificação. Só que os responsáveis galeses olharam para Michael Laudrup, que tivera feito do Brondy novamente uma potência da Primeira Dinamarquesa e criara, em 2007-08, equipa de culto em Getafe, – que, apesar do 14º lugar na La Liga, chegou aos Quartos da Taça UEFA, atropelando o Benfica de Camacho pelo caminho e só caindo perante o Bayern… nos pénaltis – máquina de futebol encantador onde pontificava uma estrela com final trágico, De La Red. Apesar de experiências falhadas em Moscovo, no Spartak, e em Palma de Maiorca, os Galeses reconheciam a Laudrup o mesmo talento como treinador que ostentara como atleta e apostavam nele para manter o estilo ofensivo. Rebentou a escala, moldando o mesmo 4-3-3/4-2-3-1 de Rodgers mas privilegiando mais a posse que o antecessor – aos extremos pediu-lhes para olhar para o corredor central como zona preferencial para as patifarias e a qualidade dos jogadores fez o resto.

    E Michu, como segundo avançado ou homem mais adiantado, percebendo que os colegas acompanhavam, entrou a matar: dois golos e uma assistência em Loftus Road, um golo e uma assistência no 0-3 no Upton Park, casa do West Ham, e golo ao Sunderland na terceira jornada. Foi a histeria geral. Ninguém esperava aquele impacto dum espanhol vindo do fundo da tabela a troco de dois milhões. Miguel fez questão de provar rapidamente a todos esses cépticos que a ignorância se paga cara e o Arsenal foi o sacrifício ideal – marca os dois na épica vitória no Emirates no principio de Dezembro e um mês depois marca mais um num 2-2 para a Taça que obrigou os homens de Wenger à chatice dum jogo de desempate; A meio dessa semana, a 9 de Janeiro, marca em Stanford Bridge noutro triunfo memorável, o 0-2 das Meias da Taça da Liga. Sem estar satisfeito, faz mais dois nesse fim-de-semana, frente ao Norwich. Na viragem da temporada… levava 15 golos marcados. O melhor marcador swan na temporada anterior tinha sido Danny Graham, com 14!

    «Era como se estivesse sobre rodas, deslizando desde o inicio contra o QPR, quando marquei dois. Tinha toda a confiança do mundo, sentia-me imparável. Jogar num lugar mítico como Wembley numa final de Taça da Liga foi incrível.»[1] Foi assim que explicou essa fase, numa entrevista à ESPN em 2023. E é em Wembley, a 24 de Fevereiro, que fica definitivamente imortalizado na história do clube, com um golo (e que golo!) e uma assistência nos 5-0 ao Bradford, adversário que embelezou ainda mais o momentode glória – era outro David que tinha vencido vários Golias: o clube da League Two, 4ª Divisão, tinha deixado pelo caminho os primodivisionários Wigan, Arsenal e Aston Villa para chegar à final, um feito visto pela última vez em 1964! Ali, não resistiram aos endiabrados de Laudrup.

    O oitavo lugar final no campeonato, já de si admirável, só não se tornou mítico por uma desajeitada recta final, com apenas uma vitória nas últimas 10 jornadas. Para o ano havia mais, e certeza tiveram todos de que haveria realmente muito mais quando chegou ao Liberty Stadium  mais um contentor de irreverência: Pozuelo veio do Bétis, Jonjo Shelvey fartou-se do banco em Liverpool e Wilfried Bony aterrava vindo de Vitesse, onde fizera 31 golos na Eredivisie, o suficiente para ser melhor marcador e Jogador do Ano.

    Os Cisnes até nem começaram muito bem os assuntos internos, com seis derrotas nas primeiras oito jornadas; mas onde o foco de todos estava, na Europa, viu-se o Swansea habitual, com 4-0 ao Malmö na 3ª ronda, 6-3 aos romenos do Petrolul no play-off e uma retumbante vitória por 3-0 em pleno Mestalla, no primeiro jogo da Fase de Grupos. Estávamos em Setembro, em Outubro Michu estreia-se nos convocados da Selecção, bicampeã europeia e mundial em título. Estava lançadíssimo e previa-se transferência para um colosso a qualquer momento.

    Mas o infortúnio bate-lhe à porta, como bate sempre aos mais românticos.

    O inferno das lesões começou no joelho e desceu-lhe para o tornozelo, o direito. Uma operação, mas nada feito. O martírio alongou-se, foi uma espiral negativa. Empréstimo ao Nápoles? O apoio de Rafa Benítez mas apenas seis jogos. Outra operação, outra e mais outra, até chegar às cinco. Tentou novamente nos amadores do Langreo e no seu Oviedo do coração. O treinador era o lendário Fernando Hierro.

    «Foi todo um processo mas eu lembro-me duma noite – e estarei eternamente grato porque certamente foi dificil tambem para ele- Fernando Hierro convida-me para almoçar. Na tarde seguinte ele diz-me: ‘Tu decides, mas vou-te dar um conselho, porque consigo ver o teu sofrimento, o teu coxear. Porque não pensas na reforma? Sinto por ti. És diaramente o primeiro a chegar aos treinos, o último a sair, dás o máximo mas não consegues mais. Não te posso colocar em campo.’

    Penso que me fez jogar demasiado porque me estava a tentar ajudar, na verdade. Havia colegas a merecer muitos mais minutos. Eu respondi-lhe: ‘Mister, obrigado. Tem razão’. Apreciei bastante a coragem em ser sincero como um amigo. Fui operado cinco vezes e obviamente nunca voltei ao nível de Swansea. O tornozelo em questão era o pé de apoio: num jogo em Saragoça não suportou o meu peso e rompi um músculo. O remate saiu pela linha lateral. No autocarro de volta deram-me Valium e no momento que cheguei a Oviedo viajava em Narnia, atordoado pelas dores.» [2]

    Por hoje, é director desportivo do Burgos, na segundona espanhola. Não foge às câmaras, parece resolvido com a tragédia que lhe cortou a carreira e impediu o desenrolar da lenda. Aqueles que se apoiam nos factos para lhe chamar “one-hit wonder” fazem-no certamente por desconhecimento do sofrimento e Michu consegue perdoar-lhes isso. Cumpriu os sonhos a que se propôs em adolescente quando subia vertiginosamente pela formação do Oviedo e se estreava com um golo aos 17 anos. Talvez até nunca tenha pensado em chegar tão alto, só queria ser feliz com a camisola do seu clube – e por isso, no auge da tortura e antes da iminente desistência total, voltou para tentar dar uma perninha.

    Ainda miúdo, quando andava com o Celta de Vigo pela Segunda, teve proposta para jogar na Primeira. Manolo Preciado era o chefão do Sporting Gijón e convidou-o pessoalmente. O convite era quase irrecusável, a não ser por um único pormenor – o Gijón é o grande rival do Oviedo. Michu recusou e só lá chegaria, ao escalão máximo, em 2011, com 25 anos.

    Alguém tão puro e digno só poderia explanar todo o talento sob supervisão doutro da mesma espécie. O mérito de Michu propalou-se pela mão de Michael Laudrup, o genial ‘10’ que nunca procurou os holofotes e manteve a sua palavra – independentemente da situação, e por isso falhou, por exemplo, o título europeu 1992 com a sua selecção. No final da primeira época em Inglaterra, namorado pelos grandes clubes do continente, disse que não estava interessado. Que as ambições só passavam por Swansea.  

    «Digamos que eu tinha a ambição de ser treinador um dia de Real Madrid, Barcelona, Manchester United, Manchester City, Chelsea, Juventus, o que for. Finalmente chego. Termino em segundo, saio da meia-final da Liga dos Campeões nos penáltis, perco por 2-1 na final da Taça. Durante 10 anos fiz tudo para lá chegar e ao fim de nove meses estou fora. Porquê viver para isso? Estive lá como jogador de clubes de topo. Pode ser muito mais prazeroso estar nalgum lugar onde não preciso ganhar títulos.[3]

    E percebendo este aparente desprezo pelos títulos como uma declaração de amor a todo um projecto, compreendemos melhor a bonita história de Michu, o homem amado por toda uma cidade – para isso bastando apenas um ano de irrepetível futebol.  


    [1] Tradução livre: https://www.espn.com.au/football/story/_/id/37675622/michu-being-erling-haaland-idol-winning-swansea-only-major-trophy-teammates-monkey

    [2] https://www.espn.com.au/football/story/_/id/37675622/michu-being-erling-haaland-idol-winning-swansea-only-major-trophy-teammates-monkey

    [3] Tradução livre: https://www.independent.co.uk/sport/football/fa-league-cups/michael-laudrup-says-no-to-chelsea-and-real-madrid-8508298.html

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    Pedro Cantoneiro
    Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
    Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, o Benfica como pano de fundo e a opinião de que o futebol é a arte suprema.