João Prates está na Tribuna VIP do Bola na Rede. É treinador de futebol, licenciado em Psicologia do Desporto e está no seu espaço de opinião no nosso site. O técnico de 52 anos já orientou o Dziugas da Lituânia, o Vaulen da Noruega e o Naft Maysan, do Iraque, e esteve na formação do Al Batin e Hajer Club da Arábia Saudita.
Quando a preparação deixa de ser treino e passa a ser gestão.
Nos últimos dias, as declarações de Vasco Matos após um jogo, expôs uma realidade que quem vive o futebol por dentro, conhece bem. Quando se joga de três em três dias, a preparação muda por completo. E isso raramente é explicado ao adepto.
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Quando a semana deixa de existir
Para quem observa de fora, a ideia é simples, menos descanso, mais cansaço. Para um treinador, o impacto é muito mais profundo. O microciclo clássico desaparece. A semana deixa de ser um espaço de trabalho e passa a ser um exercício de gestão.
Na prática, uma sequência curta de jogos transforma-se num ciclo quase automático. O dia imediatamente após o jogo é dedicado à recuperação. Não é treino. É reduzir inflamação, avaliar cargas, perceber quem está disponível e quem entra em risco. No dia seguinte, o grupo raramente treina junto, quem jogou faz trabalho regenerativo, quem não jogou tenta manter níveis físicos aceitáveis. A véspera serve para organização, bola parada, mensagens simples. Não há tempo para aprofundar ideias nem para corrigir comportamentos coletivos com qualidade.


Quando se joga de três em três dias, o treinador entra no jogo seguinte já com a calculadora na mão. Não para inventar desculpas, mas para tomar decisões que evitem perdas maiores.
Viajar, recuperar e decidir sob fadiga
Quando a isto se juntam viagens longas, o cenário torna-se ainda mais exigente. As deslocações consomem tempo útil de recuperação, interferem com o sono, a alimentação e a rotina. São fatores silenciosos, mas decisivos. Não aparecem nas estatísticas, mas sentem-se no ritmo, na lucidez e na capacidade de executar.
Falo disto não apenas por análise, mas por experiência. Treinei em contextos (Médio Oriente) onde jogar três dias depois de uma viagem de dez horas de autocarro era normal. Vivi semanas em que o tempo gasto a recuperar era maior do que o tempo disponível para treinar. Nessas condições, a preparação reduz-se ao essencial, gerir fadiga, simplificar decisões e proteger jogadores. Não há romantismo nisso. Há apenas adaptação para competir.
Quando o prolongamento muda tudo


Há ainda um elemento que muitas vezes é desvalorizado, o prolongamento. Trinta minutos extra não são apenas mais meia hora de jogo. Representam mais acelerações, mais desacelerações, mais decisões sob fadiga. O impacto neuromuscular prolonga-se por vários dias. O treinador entra no jogo seguinte já a pensar em contenção, não por convicção, mas por necessidade.
Preparar passa a ser controlar
Neste contexto, a preparação deixa de ser sobre evolução e passa a ser sobre controlo. Controlo de cargas, controlo de riscos, controlo de expectativas. As escolhas tornam-se conservadoras. Simplificam-se ideias. Reduzem-se estímulos. Muitas vezes abdica-se de pressionar mais alto ou de assumir riscos que, noutras condições, fariam sentido.
Quando se fala de justiça competitiva, não se trata de favorecer este ou aquele clube. Trata-se de reconhecer que o calendário também joga. E quando não é pensado com critério, condiciona a qualidade do jogo, empurra treinadores para decisões defensivas e empobrece o espetáculo.


Talvez esteja na altura de olhar para o calendário não apenas como uma grelha de datas, mas como uma variável central da preparação.
Porque quando a preparação é sacrificada, não perde apenas uma equipa. Perde o jogo.

