«O SC Braga tem melhor plantel do que o Sporting CP» – Entrevista BnR com Augusto Inácio

Filho de uma Lisboa castiça, Augusto Inácio nasceu e cresceu numa família de leões onde só era permitido sonhar com um futuro de trabalho que valesse o pão à mesa. O futebol entrou na sua vida sem pedir licença. E Augusto tornou-se Inácio, um tanto por acaso, outro por talento, mas muito mais por vontade – a mesma que sempre fez as bancadas fixarem o olhar no canhoto franzino e raçudo que disputava cada lance como se fosse questão de vida ou morte. Campeão no “seu” Sporting, foi ao serviço do FC Porto que conquistou a Europa e o mundo. Como treinador, correu o globo inteiro, mas foi em casa que logrou o seu maior feito, devolvendo o título de campeão nacional ao Sporting, em 1999, após uma longa espera de 18 anos. Jogador, treinador, comentador e dirigente desportivo. Augusto Inácio, 65 anos, é hoje o protagonista de uma entrevista que atravessa uma vida inteira e uma carreira repleta de histórias (da bola) para contar.

«Eu, inocentemente, respondo: “- Quem é o Ayala?”. “- O jogador da seleção da Argentina”, diz o Juca. E eu respondo: “- O Ayala é que vai apanhar o Inácio do Alto do Pina”»

 

Bola na Rede: Ainda te lembras do momento em que o futebol passou a fazer parte da tua vida?

Augusto Inácio: Sim, isto começou tudo na minha “meninice”. Lembro-me que qualquer bocadinho era para jogar à bola. Bolas ou chuteiras… isso era mentira. Jogava descalço ou com os sapatos que só usava ao domingo, que era o dia de família. De resto, era com chinelos ou mesmo descalço. Punha uns papéis nas meias da minha mãe para fazer as bolas e jogávamos com portas a fazerem de balizas, a minha e a dos meus vizinhos, e quem metesse lá a bola marcava golo.

Bola na Rede: Eram outros tempos…

Augusto Inácio: Sim. Lembro-me também que roubávamos as bolas dos matraquilhos para jogarmos. Até jogávamos de sarjeta a sarjeta, e quando alguém marcava golo tínhamos de lá pôr a mão para recuperar a bola e continuar o jogo. Depois, fui crescendo. Quando fui para a escola Afonso Domingues, em Marvila, já com os meus 16 anos, o meu professor de ginástica disse-me que tinha jeito para o futebol e deu-me um cartão para ir aos treinos de preparação do Sporting. E eu fui. Na primeira vez, perguntaram-me em que posição jogava e respondi que era extremo esquerdo. Na segunda, a mesma coisa, mas dessa vez disseram-nos ao intervalo que quem quisesse podia trocar de lugares. Como estava a jogar a extremo, driblava bem, mas era muito franzino e quando cruzava a bola não chegava à área, pensei: “– Augusto, vai mas é para trás e os outros que cruzem. Tu ficas aqui mais folgado e nem corres tanto”.

Bola na Rede: “Desceste” para defesa-esquerdo e não saíste mais de lá.

Augusto Inácio: E não saí mais de lá. (risos) Fiquei no Sporting, fiz uma época nos juvenis e outra nos juniores, e quando esperava – como todos os outros da minha idade – que a minha vida seria trabalhar de dia e jogar à noite, o Sporting apresenta-me uma proposta para ser profissional de futebol, com um contrato de dois anos. Eu só perguntei: “– Onde é que está o papel para assinar?”. (risos) Eu só queria assinar…

Bola na Rede: E ainda te lembras da tua estreia na equipa principal do Sporting?

Augusto Inácio: Sim, foi em 1975, num jogo para a Taça de Portugal, em Coimbra, contra a Académica [vitória do Sporting por 4-1]. O treinador era o Fernando Riera. O jogo já estava resolvido e entrei a três minutos do fim.

Bola na Rede: Nessa equipa jogavam o Vítor Damas e o Yazalde. Como foi para um miúdo de 20 anos partilhar o balneário com estas figuras do futebol português?

Augusto Inácio: Era tratando os craques por “senhor”. Até nos treinos. Naquela altura, havia muitos treinos conjuntos entre o plantel principal e as reservas. E antes da estreia pela equipa principal já jogava nas reservas. Há lá uma vez em que faço uma grande jogada, uma “cuequinha ao José Carlos e depois o Vítor Damas sai e com o pé esquerdo faço uma “trivelada” e marco golo. O José Carlos veio ter comigo e disse-me: “– Oh miúdo, voltas a fazer isso e levas duas chapadas no focinho”. Eu só respondi: “– Desculpe, senhor José Carlos, não volta a acontecer”. (risos)

Bola na Rede: A tua família é toda sportinguista, não é? Como é que foi quando começaste a jogar no Sporting?

Augusto Inácio: Era toda sportinguista. O meu pai, a minha mãe, os meus irmãos… Era um grande orgulho. Ainda por cima a família foi toda viver para o Lumiar. Na altura, o peão do Estádio de Alvalade não era fechado, os meus pais viviam num 7.º andar e da janela conseguiam ver o relvado todo. Viam os treinos, viam os jogos… Às vezes até tinha vergonha. Estava a treinar e os meus colegas começavam: “– Oh Inácio, estão ali os teus pais a ver”. Eu baixava a cabeça, acenava assim com a mão [faz gesto a acenar], um bocado envergonhado… Para eles era um grande orgulho.

Bola na Rede: Sempre acompanharam o teu percurso de perto…

Augusto Inácio: Sempre, sempre. Acreditavam muito no meu valor, mas nunca tendo incentivaram para que seguisse uma carreira de jogador de futebol. Foi algo que surgiu naturalmente. Quando fui viver para o Lumiar tinha 14 anos e pratiquei boxe, andebol, hóquei em patins, mini-basquete… E até gostava muito de hóquei em patins. Era guarda-redes, porque mal sabia patinhar (risos), mas a determinada altura fui confrontado entre o hóquei em patins e o futebol. Escolhi o futebol, que era a modalidade que mais gostava de praticar, mas tive pena de não continuar no hóquei em patins. Pensei cá para comigo: “– Augusto, fazes um ano como juvenil e um ano como júnior e depois fazes como todos os outros, vais tirar o curso na escola industrial Afonso Domingues, em Marvila, vais trabalhar para a companhia dos telefones – que era aquilo que os meus colegas iam todos fazer – e, à noite, jogas no Savanense ou no Oriental, um clube assim.

Bola na Rede: Mas quando chegas ao Sporting não tens o sonho de ser jogador de futebol profissional?

Augusto Inácio: Não, não. Fazia aquilo por desporto, mas sabia que chegar à primeira equipa do Sporting era uma coisa muito difícil, muito complicada. Só quando me deram o primeiro contrato de dois anos é que comecei a pensar nisso. Tinha 18 anos e só quando fiz 20 anos pensei: “– Augusto, agarra-te a isto, que é a tua ‘ferramenta’ para a vida. Vai à luta e à procura do sonho”. Por isso, só a partir dos 20 anos é que comecei a sonhar que podia ser jogador de futebol profissional.

Bola na Rede: Que memórias guardas desses primeiros anos no Sporting?

Augusto Inácio: Costumo dizer que jogava na equipa dos “minhocas”, entre os 18 e os 20 anos. Todas as semanas tínhamos um jogo. No Cartaxo, em Coruche, em Santarém… Era engraçado. Os jogos eram à noite e chegávamos a casa às 2h/3h da manhã. Quando vínhamos no autocarro dizíamos: “– Ganhámos mais um jogo da taça das cidades com vinhas”. No fim havia sempre o jantar, o vinho… Mas havia jogos toda a semana, o que era bom.

Bola na Rede: Dava para rodar toda a equipa…

Augusto Inácio: Sim, andávamos ali a jogar naqueles “pelados”. Mas Sporting é Sporting, seja nos juniores, nas reservas… Sporting é sempre Sporting. Nesses anos andei a trabalhar no duro para honrar a camisola do Sporting.

Bola na Rede: E passas a titular da equipa principal em 1975, com 20 anos. Era o Juca o treinador…

Augusto Inácio: Sim. Entretanto, o Sporting teve dificuldades na posição de defesa-direito. Houve um jogo em que o [Fernando] Tomé se lesionou e o Sporting não tinha outro defesa-direito. Nessa altura fomos jogar a Madrid, contra o Atlético de Madrid, para a festa de despedida de um guarda-redes espanhol chamado Rodri. Nessa equipa do Atlético de Madrid jogava o extremo-esquerdo da seleção da Argentina, o [Rúben] Ayala. E o Juca pergunta-me: “– Oh miúdo, tens algum problema em jogar a defesa-direito?”. Eu respondi: “– Oh mister, eu quero é jogar, nem que seja a guarda-redes. Meta-me a defesa-direito, a ponta de lança, a defesa-central… eu quero é jogar”. E ele: “– Mas tu sabes quem vai apanhar?” E eu: “– Quem, mister?”. “– O Ayala!”, diz-me o treinador. E eu, inocentemente, respondo: “- Quem é o Ayala?”. “– O jogador da seleção da Argentina”, diz o Juca. E eu respondo: “– O Ayala é que vai apanhar o Inácio do Alto do Pina”. (risos) Fomos então a Madrid, começa o jogo e logo no primeiro minuto o Ayala vem com a bola, ele era muito rápido, e dei-lhe uma “porrada” que ele virou os pés pela cabeça. E ele diz-me: “– Hombre!”. E eu: “– Qual hombre qual quê seu..”. Bom, o que disse a seguir já não posso reproduzir aqui. (risos) E foi assim, com raça, que comecei a conquistar a minha posição. Naquela época era inimaginável um esquerdino jogar a defesa-direito, destros a jogar a defesa-esquerdo sim, acontecia, mas o contrário não. Que me recorde fui o primeiro a jogar assim. O certo é que joguei dois anos a defesa-direito e ainda fui convocado à seleção nacional pelo José Maria Pedroto a jogar a defesa-direito. Depois, o [Fernado] Da Costa, um jogador brasileiro, teve um problema e fui para defesa-esquerdo, que acabou por ser o meu lugar ao longo de toda a carreira.

Bola na Rede: Falaste de raça. Esse era, de facto, a tua principal característica. Seres um jogador combativo era o que melhor te distinguia dos outros?

Augusto Inácio: É isso mesmo. Já nos juvenis cheguei a ganhar um prémio de “Jogador mais combativo” num torneio em Setúbal. Nunca me esqueci, porque foi a primeira medalha que ganhei. Realmente, a minha maior força era a raça, a determinação, a vontade, o querer… Era um daqueles jogadores que nunca dava nenhuma bola por perdida e isso foi uma característica que se foi interiorizando cada vez mais ao longo da minha carreira. Acho que se não fosse assim não teria chegado onde cheguei – e, diga-se, cheguei onde nunca imaginei chegar.

Bola na Rede: Nestes anos todos de futebol, alguma vez te cruzaste com algum jogador onde te tenhas revisto? Para quem não se recorda do Augusto Inácio jogador, qual é o defesa-esquerdo do futebol português contemporâneo mais parecido contigo?

Augusto Inácio: O Rui Jorge, que era extremo quando era miúdo no FC Porto. Lembro-me que, já no final da minha carreira, ia ver os jogos das camadas jovens na “Constituição”, no “pelado”, e vi um miúdo muito traquina, a jogar pelo lado esquerdo, e perguntei quem era. Disseram-me que se chamava Rui Jorge e fiquei com aquela. Quando terminei a carreira e comecei como treinador na equipa de juniores do Porto pedi a lista dos jogadores, que já incluía os nomes dos miúdos que a ser dispensados. E um deles era precisamente o Rui Jorge. Travei aquilo. Disse logo que, para já, não saía ninguém e quem ia dispensar seria eu. Fiquei ali uns dias com 90 jogadores, tive de mandar uns 30 ou 40 embora, mas um dos que ficou – e que ia ser dispensado – foi o Rui Jorge. Diziam-me que ele ia pouco aos treinos, que queria mais os estudos, e que não era competitivo, mas eu disse que gostei do miúdo e que ia ficar com ele. Qual é a sorte do Rui Jorge? Vamos para um torneio na Venezuela, eu até já estava de férias, mas chamaram-me, para um torneio de sub-23. Aquilo era um torneio espetacular, cheio de seleções, da Venezuela, do Peru, clubes só mesmo o FC Porto e o Perugia de Itália. O Álvaro Gregório, que era o defesa-esquerdo daquela equipa tinha ido para a seleção nacional. E nesse torneio meto o Rui Jorge a jogar, e o miúdo dá uma resposta espetacular. Entrentanto, vai começar o campeonato em Portugal e eu fico com uma “batata quente” na mão: Álvaro Gregório ou Rui Jorge. Bom, o Álvaro é da seleção, começo com o Álvaro. Não gostei da primeira partida do Álvaro Gregório, chamei-o ao meu gabinete e disse-lhe que não me interessava as internacionalizações que ele tinha, que ele tinha de ter cuidado porque estava a jogar com uma certa sobranceria e eu não queria aquilo. No Porto é para “rasgar” e dar tudo dentro do campo. Ele ficou muito surpreendido a olhar para mim, mas no jogo seguinte voltei a colocá-lo a titular. Tirei-o logo aos 20 minutos para colocar o Rui Jorge e, a partir daí, o Rui nunca mais saiu da equipa. Revejo-me muito no Rui Jorge, um jogador muito determinado, muito raçudo, muito técnico, muito inteligente e com uma forte personalidade…

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João Amaral Santos
João Amaral Santoshttp://www.bolanarede.pt
O João já nasceu apaixonado por desporto. Depois, veio a escrita – onde encontra o seu lugar feliz. Embora apaixonado por futebol, a natureza tosca dos seus pés cedo o convenceu a jogar ao teclado. Ex-jogador de andebol, é jornalista desde 2002 (de jornal e rádio) e adora (tentar) contar uma boa história envolvendo os verdadeiros protagonistas. Adora viajar, literatura e cinema. E anseia pelo regresso da Académica à 1.ª divisão..                                                                                                                                                 O João não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.

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