«Se outros treinadores cometessem os erros que Jorge Jesus já cometeu, já estariam na rua» – Entrevista BnR com Carlos Azenha

    «Jesualdo Ferreira foi para o Brasil e só não teve sucesso porque, de certeza, não lhe deram condições para ter. Como treinador é muito mais completo e melhor que o Jorge Jesus»

    Bola na Rede: E gostas dessa experiência como comentador?

    Carlos Azenha: (Suspiro) Quer dizer (pausa). Não é uma questão de gostar ou não. Acho é que faz falta na televisão portuguesa programas a sério sobre futebol. Pessoas que vão lá e discutam o porquê daquelas opções, porque é que o treinador faz isto e não aquilo. Questões de futebol e não de fait divers. Chegar ali e explicar às pessoas o que está a acontecer, como é que as equipas evoluem, a forma de jogar, explicar um pouco os conceitos… Porque a maior parte das pessoas que lá vão, normalmente, é para “descascar”. É guerra clubística. Olham para o futebol em função do clube e da cor e depois de futebol fala-se pouco. E é triste haver colegas que se sujeitam a isto. Eu, quando lá estou, lamento imenso, mas dou “porrada” de cima a baixo.

    Bola na Rede: Pelo que percebi ao longo desta conversa não tens uma visão muito positiva do futebol português neste momento. Mas tens acompanhado o campeonato à distância? Que análise fazes desta primeira volta?

    Carlos Azenha: Há um fator determinante, actualmente, no futebol mundial e que merece ser estudado para que as pessoas percebam o que está a acontecer e para que possam tirar ilações. E é o fator ausência de público. Esta ausência tem-se notado no futebol nacional e internacional? E nos resultados. No comportamento dos árbitros, por exemplo, que atuam sem pressão e têm a oportunidade de ouvir tudo o que se diz no campo. Quando está em silêncio ouvem tudo e estão muito mais à vontade para tomar melhores decisões, porque não têm a pressão dos adeptos. E, curiosidade ou não, as grandes equipas, todas elas, estão a sofrer impacto negativo com a ausência de público. Isso leva-nos logo a concluir duas ou três questões. O “peso” que os adeptos têm em determinado tipo de estádios – como Benfica, FC Porto e Sporting –, os que arrastam multidões. Ir ao Estádio da Luz cheio é uma coisa, com ele vazio é outra. Depois, as equipas ditas pequenas também não têm essa pressão, e jogam quase de igual para igual, porque já não têm esse receio, não há o medo de falhar que havia antigamente.

    Bola na Rede: Já estiveste nos dois lados: os adeptos têm mais capacidade de motivar os jogadores de um clube grande ou de intimidar os de um clube pequeno? 

    Carlos Azenha: Pode ser visto pelos dois prismas, é copo meio cheio ou copo meio vazio. Efetivamente, o jogador que chega ao Estádio da Luz, e está habituado a jogar com cinco mil pessoas e, de repente, vê-se ali com 60 mil, a assobiar e a insultar… aquilo é intimidatório. Portanto, cria uma tensão nervosa, quer se queira, quer não. Agora, entrar com o estádio vazio? Ninguém me vai assobiar, se falhar um passe só ouço umas bocas do treinador, mais nada… Para algumas equipas, e neste caso podemos falar do Sporting, este fator de não ter público é benéfico, porque o nível de exigência é menor. Estamos a falar de uma equipa de meninos… Mas atenção! Isso é uma falsa questão. São grandes jogadores que ali estão! Mas estão sem pressão e estão numa fase em que tudo está a correr bem e aos outros não e isso ajuda. Não é só o facto de o Sporting ganhar, mas também os outros perderem. Porque até se olharmos bem para todas as equipas que jogam em Portugal, a que joga melhor é o Sp. Braga. O Sp. Braga, sim, joga bem, troca bem a bola, tem um bom modelo de jogo. Contra o Sporting, em Alvalade, o Sp. Braga não está a ganhar 2-0 ao intervalo por manifesta infelicidade. Mas o futebol tem isto. O Klopp ainda há pouco tempo levou sete. Olha se fosse eu a levar sete… estava “morto”. E estamos a falar de uma equipa de craques. É que perder por sete com uma equipa de craques não é a mesma coisa que perder por 8-1 com uma equipa de meninos no Estádio da Luz. Olha, vou dar este exemplo. Sem público, com aquela equipa do Vitória de Setúbal, perdia na mesma, mas já não havia o fator pressão. Isto é o que está a acontecer com os jogadores do Sporting: não têm pressão. E há ainda outro fator muito importante para o Ruben Amorim, é que não tem nenhuma obrigatoriedade. E a distância que eles levam para os adversários não é do outo mundo, estamos a falar de uma distância curta. Não nos podemos esquecer que nos últimos dois anos as equipas que foram campeãs tiveram sempre sete pontos de atraso para o 1.º lugar. Agora, acho que este fenómeno não acontece só em Portugal, acontece com o Real Madrid, com o Barcelona, com o Chelsea, com o Manchester City – que agora encarrilou, mas andou a perder jogos até mais não –, com o Tottenham, com a Juventus. Está a acontecer com uma série de equipas e é algo que merece ser estudado das duas formas… Levantaste bem o problema: os adeptos têm mais peso na pressão que colocam à equipa pequena ou à grande? E como é que isto se pode trabalhar? O facto é que a grande diferença que existe entre as equipas está hoje muito mais esbatida. O FC Porto, mesmo ganhando, tem tido algumas dificuldades. O Benfica a mesma coisa… e tem perdido pontos. Este fator começa a fazer as pessoas repensar, afinal, quais são os critérios que aproximam e afastam as equipas.

    Bola na Rede: A meu ver, isso nota-se muito no Benfica. A equipa do FC Porto parece-me ter características mais combativas. Por vezes, “embrulha” um bocado o jogo, mas beneficia dessas características para, muitas vezes, resolver os seus jogos através de uma atitude mais competitiva que o seu adversário. O Jorge Jesus teve sempre equipas que jogavam num ritmo alto, durante largos períodos das partidas até “sufocavam” os adversários e, neste momento, por muito que gesticule ou grite do “banco”, a equipa não responde e mantém um ritmo baixo ou regressa rapidamente a esse ritmo…

    Carlos Azenha: E não é só isso. Há jogadores que também rendem o dobro devido ao fator emocional, com o estádio cheio, com o público. E há outros que não. O que estavas a dizer do FC Porto é verdade. O FC Porto tem disfarçado o pouco futebol que tem jogado, ou melhor, tem disfarçado quando joga menos bem, com a atitude competitiva que tem. Pela forma como a mensagem do treinador consegue passar para os jogadores: a raça, o querer ganhar, a abnegação total. “Comem” a relva como se costuma dizer…

    Bola na Rede: Isso sentiu-se muito no jogo da Supertaça. O jogo decorreu equilibrado mas sentia-se sempre que o FC Porto estava mais perto de ganhar. Pela postura coletiva, pela agressividade…

    Carlos Azenha: Claro, claro. Mas isso, lá está, também faz parte daquilo que é o ADN do FC Porto. O ADN do FC Porto é fazer das fraquezas forças. Porque, quer dizer, só que passa pelas coisas é que sabe. Também sou de Lisboa e só quando fui para o Porto é que me apercebi do impacto que as coisas têm nos jornais quando se trata do FC Porto. Eu vivi isso. O FC Porto é campeão e a primeira página é uma entrevista ao Rui Costa. Percebi a angústia e a revolta daquelas pessoas. Porque têm de fazer o dobro do esforço. Quer se queira, quer não, o Benfica é uma marca com um peso e um potencial brutal. O Benfica atual, sinceramente, como equipa, acho que joga muito pouco, muito pouco mesmo para aquilo que, normalmente, são as equipas do Jorge Jesus. Defensivamente é muito fraca. Há ali erros de casting. Continuo a achar que o Benfica tem dois laterais que não sabem defender, qualquer um dos dois. Atacam bem, mas defendem muito mal e uma equipa como o Benfica precisa, acima de tudo, de dois laterais que saibam defender. Depois, também não percebo outras coisas… o Benfica tem aquele que, para mim, é um dos melhores centrais, o Ferro, e o mais rápido deles todos e o Benfica dá-se ao luxo de dispensar o jogador [emprestado ao Valência, de Espanha] e não acho que haja muito melhor lá dentro. O facto de ter errado uma ou duas vezes foi logo crucificado. Se fosse esse o princípio o [Nicolas] Otamendi não jogava mais no Benfica, cometeu quatro ou cinco erros, embora admita que é um bom jogador, conheço muito bem o Otamendi. Mas acho que o Benfica faz um erro crasso quando deixa sair o Ferro, mas o futuro o dirá se estou certo ou errado. Depois, há um conjunto de jogadores que o Jorge Jesus quis, mas parece-me que há algumas estrelas que estão a ter dificuldades de adaptação à forma da equipa jogador, nomeadamente o Everton, de quem se esperava muito. O único que me parece que está exatamente a corresponder às expectativas é o Luca Waldschmidt. E, lá está, há a importância na forma como comunicamos e isso é um erro que atribuo claramente ao Jorge Jesus. Acho que se o Jorge Jesus soubesse corrigir algumas coisas poderia tornar-se um dos melhores treinadores do mundo… É que o Jorge Jesus não sabe sequer ganhar. Não é não saber perder, é não saber ganhar. Um treinador quando ganha é que tem de saber estar. É muito fácil bater nos treinadores quando ganhamos.

    Bola na Rede: Mas esse é um problema que os próprios benfiquistas identificam no Jorge Jesus. Todos recordam as trocas de palavras com Rui Vitória quando o Jorge Jesus estava a ganhar à frente do Sporting. Se calhar esses episódios até justificam alguns anticorpos que ainda existem entre os benfiquistas em relação ao Jorge Jesus…

    Carlos Azenha: Atenção! E é difícil para os jogadores trabalharem com o Jorge Jesus dois anos seguidos. A intensidade, a forma de liderar, de comunicar, leva muitas vezes os jogadores à exaustão. E depois há treinadores que caem mais em graça que outros. Por exemplo, ao nível da organização do treino, da metodologia do exercício, o melhor treinador que apanhei foi o Jesualdo Ferreira.

    Bola na Rede: Tiveste tantas experiências, cruzaste-te com tanta gente… Qual foi o treinador que mais te impressionou ao longo da tua carreira?

    Carlos Azenha: Tive vários treinadores que me marcaram bastante, uns por uma razão, outros por outra. Ao nível da organização do exercício foi o Jesualdo Ferreira; ao nível da liderança, na vertente de saber estar, de ajudar, humana, foi sem dúvida o Toni. O Toni é um gentleman, um senhor do futebol, a quem o Benfica não presta a devida homenagem. Estamos a falar do único homem da história do Benfica que foi campeão como jogador, como “capitão”, como treinador adjunto e como treinador principal. Não têm mais ninguém assim na história do Benfica.

    Bola na Rede: E foi o único treinador português a levar o Benfica a uma final da Taça dos Campeões Europeus…

    Carlos Azenha: No Benfica, foi.

    Bola na Rede: E mais treinadores?

    Carlos Azenha: O Van Gaal também. Na forma de pensar e de olhar o jogo. A maioria das pessoas dizem que ele é antipático, mas não é. Bem pelo contrário. A relação com os jogadores era sempre excelente. Agora, era também uma pessoa muito direta e muito assertiva.

    Bola na Rede: De facto, não passa essa imagem…

    Carlos Azenha: Pois, mas uma coisa é o que se passa e outra é o que se passa cá para fora. Nem sempre as coisas são como parecem. O futebol é um bocado como um casamento: só quem está lá dentro é que sabe o que se passa. Não é? E aqui é a mesma coisa. Uma coisa é falar com os jogadores publicamente, outra é falar em off. Mas quando quiseres saber se um treinador é ou não competente, já sabes: é falar com os jogadores. E esse é o maior orgulho que tenho. A opinião dos jogadores. Temos um Pepe que após o primeiro jogo pelo Real Madrid envia a camisola ao treinador Carlos Azenha. Temos outros que dizem que evoluíram o que evoluíram graças ao trabalho realizado. Isso, para mim, é o fundamental. Como já te disse, a maior parte das pessoas vive na ânsia de ser treinador principal, eu não. Foi o Jesualdo Ferreira que praticamente me obrigou… mas agora ainda não vou contar essa história.

    Bola na Rede: Não queres contar?

    Carlos Azenha: Não, não… um dia. O que posso dizer é que Jesualdo Ferreira foi para o Brasil e só não teve sucesso porque, de certeza, não lhe deram condições para ter. Como treinador é muito mais completo e melhor que o Jorge Jesus.

    Fonte: portimonense1914

    Bola na Rede: Falaste muitas vezes do Jorge Jesus ao longo da entrevista. Há ainda aí alguma mágoa?

    Carlos Azenha: Não, pelo contrário. Eu até acho que a imprensa atualmente até está a ser injusta com o Jorge Jesus. O Jorge Jesus chega depois de ter realizado no Brasil um feito estrondoso. Tenho pena, agora, que a imprensa não dê o mesmo destaque ao Abel Ferreira, que está a fazer um trabalho fabuloso, com uma equipa sem comparação com a do Flamengo. Da mesma forma, que hoje as pessoas estão a pedir a cabeça do Jorge Jesus, de alguém que já deu provas de competência e capacidade para liderar o processo. Há que tentar perceber o que está a correr menos bem, mas isto acontece com todos os profissionais e todas as equipas. Se olharmos para o Manchester City, agora está lá em cima, mas chegou a estar a nove pontos do 1.º lugar… o Guardiola… com mais derrotas do que teve nos anos anteriores por esta altura. Portanto, acho que se deve ter critérios de contratação e competência e não se pode dizer que um indivíduo serve e, no momento seguinte, já não serve. Isso é que importa. É como o Ruben Amorim, se me perguntarem se acho um absurdo dar 10 milhões pelo Ruben Amorim, claro, considero que não tem lógica –até porque se o clube depois não tem dinheiro para pagar não deve poder contratar. Mas, ao contrário do que todas as pessoas dizem, que não tem experiência, se ele nunca treinar nunca a vai poder ter. Algum dia tem de ser dado o passo e, até ao momento, gostem ou não, acho que não há nada a apontar. Mas não quer dizer com isto que ele é um grande treinador. O grande problema das pessoas é confundir treinador com resultados. E isso são coisas diferentes. Mas é óbvio que os melhores estão mais próximos dos resultados.

    Bola na Rede: E queres destacar mais alguém para concluirmos?

    Carlos Azenha: Faleceu um treinador há pouco tempo que, esse sim, para mim, era um grande treinador em todos os aspetos. Chamava-se Vítor Oliveira e não era por acaso que subia tantas vezes. É um facto que podia escolher jogadores e escolhia os melhores. Mas há uma parte que tem a ver com a sua qualidade. Estamos a falar de um indivíduo que não precisava do futebol para viver, que tinha uma personalidade própria, tinha uma opinião própria… era um exemplo a seguir e teve sucesso não apenas num local, mas em muitos sítios por onde passou.

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    João Amaral Santos
    João Amaral Santoshttp://www.bolanarede.pt
    O João já nasceu apaixonado por desporto. Depois, veio a escrita – onde encontra o seu lugar feliz. Embora apaixonado por futebol, a natureza tosca dos seus pés cedo o convenceu a jogar ao teclado. Ex-jogador de andebol, é jornalista desde 2002 (de jornal e rádio) e adora (tentar) contar uma boa história envolvendo os verdadeiros protagonistas. Adora viajar, literatura e cinema. E anseia pelo regresso da Académica à 1.ª divisão..                                                                                                                                                 O João não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.