Neste ponto, Mathieu van der Poel não passa despercebido a ninguém. O próprio Poulidor chamava à atenção sobre o potencial do neto, afirmando que já era melhor que o pai e que o avô, e que o seu palmarés falava por si, isto em 2019, pouco antes do seu desaparecimento. Ora, em 2019, o ciclista holandês deixava a sua marca sobretudo fora da estrada: desde as categorias mais jovens até à elite, o mundo do cyclo-cross conhecia um novo canibal que, a par de Wout van Aert, outro prodígio (este da Bélgica), tornava-se campeão nacional, europeu e do mundo.
Estas duas figuras do pelotão de estrada atual concentraram os seus êxitos enquanto “rookies” no meio alternativo do cyclo-cross e MTB, mas, já em 2019, à data das declarações de um avô orgulhoso, van der Poel já tinha sido campeão nacional holandês e havia vencido de forma inacreditável a Amstel Gold Race 2019, num dos finais mais épicos que o mundo ciclístico já viu.
🗣 “Alaphilippe – surely nailed on from here… Van der Poel! Can you believe it?!” #OTD in 2019: @mathieuvdpoel won Amstel Gold in most dramatic fashion 🤯 pic.twitter.com/peWKeWOnRu
— Eurosport UK (@Eurosport_UK) April 21, 2020
Após a morte do seu avô, a transição para a estrada sucedeu-se de forma natural, se bem que não está nos planos do magnífico corredor abdicar por completo das disciplinas que fizeram parte da sua vida desde que se iniciou no Ciclismo.
A par de todo esse sucesso, registam-se vários momentos que o enaltecem como um ciclista feroz, atacante, sem medo de mexer na corrida, seja a que distância for.
As medições de watts despendidos durante as suas atuações revelam a capacidade de um atleta propenso a provas explosivas, adaptando-se perfeitamente ao piso alcatroado, empedrado e até ao sterrato, onde, por exemplo, venceu a Strade Bianche 2021 em grande estilo, diferenciando-se numa questão técnica onde é manifestamente superior: capacidade para imprimir mudanças de velocidade em pendentes íngremes.
I finally did it. I’ve won my first XCO worldcup! Thank you to all the people who helped me achieve this dream, hopefully this is just the beginning 🥰 pic.twitter.com/v8ZBGgCNg7
— Mathieu Van der Poel (@mathieuvdpoel) May 26, 2019
Não é um escalador nato como o avô. Parecido com Poulidor talvez no contrarrelógio, onde não se destaca (apesar da grande prestação na quinta etapa do Tour 2021). No fundo, não é um voltista, longe disso. Neste momento, é um competidor à imagem do pai, talhado para clássicas de longa extensão, média montanha, sobe e desce constante. Consegue também sprintar com os melhores, ataca de longe, tem capacidade para partir um pelotão e coragem suficiente para se lançar ao ataque a 30, 50 ou 70 quilómetros da meta. É especial, tal como o progenitor da sua mãe, e sem dúvida que está predestinado a grandes feitos, tendo já arrecadado um monumento (Ronde van Vlaanderen) e várias etapas em competições World Tour.
Apesar de toda esta onda triunfante, a conquista da segunda etapa da Volta a França e a consequente camisola amarela que envergou ao final do dia destacam-se pelos moldes emocionantes relacionados com o seu avô, sobretudo pelo facto de Poulidor já não poder testemunhar e celebrar com o neto uma conquista tão importante e especial para o jovem Mathieu e para o próprio.
💛 🇳🇱@mathieuvdpoel for his grandfather!
🏆 At Mûr-de-Bretagne, Poupou’s grandson took the stage win and the famous Yellow Jersey!
🎬 Relive the 2nd stage of the #TDF2021 pic.twitter.com/p99asNeFUH
— Tour de France™ (@LeTour) June 27, 2021
Ao seu estilo, atacou na primeira passagem deste topo histórico para se aproximar de Julian Alaphilippe devido às bonificações em segundos. O ataque à etapa era eminente, todos sabiam disso, mas ninguém foi capaz de fechar o espaço quando o foguetão da Alpecin-Fenix arrancou colina acima, garantindo o objetivo principal para o seu primeiro Tour: vitória em etapa e a camisola amarela.
Entretanto, Mathieu van der Poel abandonou a competição para se concentrar na grande meta da época: o ouro olimpico em MTB, designação para Mountain Bike. Nunca seria um candidato a vencer o Tour, o que só por si seria a história do século caso se viesse a suceder. A palavra sonho não chegaria para classificar esse feito caso o descendente de “Poupou” fizesse o impensável. Há que pensar com os pés bem assentes na terra, até porque Mathieu van der Poel já afirmou que não pretende focar-se a 100% na estrada e, para vencer uma grande volta, teria que operar uma revolução drástica no seu corpo e na sua preparação, sendo, por isso, uma hipótese a roçar o impossível, porém, de proporções incríveis se o portento holandês algum dia se predispusesse a tal objetivo.
Aujourd’hui, il y a un champion qui doit être bien triste. Pensée pour lui, pour son frère David, pour leur maman Corinne et pour leur grand-mère Gisèle. pic.twitter.com/bnlapABSH4
— David Guénel (@davidguenel) November 13, 2019
Não desfocando o objeto central deste legado no ciclismo, importa refletir sobre os genes que um dos novos campeões do pelotão adquiriu do seu passado e da sua missão enquanto ciclista para, acima de tudo, honrá-los. Poulidor era carismático, van der Poel é uma máquina. Poulidor, a par de Jacques Anquetil, elevou a Volta a França, elevou o ciclismo para outro patamar, van der Poel, a par da nova geração de corredores, revolucionou o espetáculo, a mentalidade e o conceito de Ciclismo moderno.
Poulidor não venceu aquilo que mais queria, mas eternizou-se, e van der Poel é agora aquele a quem compete levar um pouco de “Poulidorismo” a toda e qualquer competição sobre duas rodas, até porque competir, pedalar ou respirar Ciclismo é essencialmente privilegiar a figura de Poulidor e os seus valores nobres, humanos e genuínos enquanto um dos maiores ciclistas da história.
Artigo revisto por Gonçalo Tristão Santos