– O real valor de João Félix –
BnR: Como é que uma pessoa que pretendia ser professor de educação física acaba por se tornar treinador?
JT: Dou-te a mesma resposta que dei a mim mesmo quando tive de fazer essa opção. Quando tive de optar, jogava futebol a um nível médio-baixo, ali num patamar semiprofissional quase a cair para o amador [risos]. Tive de tomar a decisão de ir estudar ou continuar a jogar futebol. Não tive grandes dúvidas: queria estudar. Queria estar ligado ao desporto, queria ensinar. E o meu primeiro instinto foi ser professor de educação física. Estudei na FMH, só que, antes de ir para lá, tinha estado um ano em Rio Maior, a estudar futebol. Tinha ficado apaixonado pelo treino. Depois, quando entrei para a FMH, dei continuidade a isso.
BnR: Nessa fase, querias mais ser professor ou treinador?
JT: Numa fase inicial, eu queria ser professor de educação física e dar treinos. Depois, começou a ser inversamente proporcional, já queria ser treinador e, de vez em quando, dar umas aulas para ganhar um dinheiro a mais. Depois a vida de treinador possibilitou alcançar esse grande objetivo que era só treinar. Isto não foi nada planeado. Foi surgindo naturalmente, porque sempre segui a minha paixão pelas coisas, e a minha paixão pelo treino revelou aquilo que eu tinha mais vocação para fazer. Apesar de gostar de ensinar, eu gosto de ensinar aquilo que é a minha grande paixão: o futebol.
BnR: Apoiavas algum clube quando eras mais novo?
JT: Na minha casa, éramos todos de clubes diferentes. Eu habituei-me sempre a ser respeitador. Apesar de ser adepto de um clube, sempre respeitei tudo. O meu pai sempre me levou a mim, ao meu irmão e à minha mãe a ver jogos de vários clubes, sobretudo as finais da Taça de Portugal. Íamos sempre ao Jamor, quaisquer que fossem as equipas que estivessem a jogar. Eu sempre gostei de ver futebol, sempre fui um adepto de futebol. Quando era mais novo, fui adepto fervoroso de um clube e, à medida que a idade foi avançando e eu fui ganhando uma vida profissional ligada ao futebol, comecei a ter uma visão muito profissional. Apesar de ter a minha preferência, neste momento sou um treinador profissional.
BnR: Mas o clube que apoiavas era um clube de Lisboa?
JT: [João ri-se com gosto] Era um clube de Portugal. Acho que isso não é importante. Para um treinador profissional, acho que esse tipo de pergunta é sempre melhor ficar no seu íntimo. Como te disse, tenha a minha preferência, mas essa preferência guardo para mim. Vejo o futebol como uma paixão e numa perspetiva de treinador, porque essa é a minha profissão.
BnR: No seu discurso introdutório, quando assumiu a equipa B do FC Barcelona, Pep Guardiola disse que dar o nosso máximo, ao mesmo tempo em que competimos com dignidade, é uma vitória, seja qual for o resultado. Sentes que esta filosofia se aplica sobretudo aos escalões de formação? Desenvolvimento/maturação acima dos resultados?
JT: Sim, acho que sim. O resultado é sempre a consequência do processo. Quando tu tentas alcançar um resultado e não tens os pilares de um processo sólido… isso é perigoso para um projeto de formação. Acredito que os resultados vão ser sempre a consequência da qualidade dos pilares que tu criares.Se criares os pilares de ambição, cultura de vitória, mentalidade competitiva, de visão daquilo que é o longo e o médio prazo, de desenvolvimento das qualidades associadas ao jogo e ao treino, acabas por alcançar a vitória. Acabas sempre por conquistar qualquer coisa. Eu continuo a achar convictamente que o jogo de futebol é um jogo para ganhar, é uma competição. Quando estás dentro de uma competição, eu não acredito que consigas formar jogadores que não tenham a mentalidade competitiva e a ambição de querer ganhar os desafios. Ou seja, ser melhor no treino, ser melhor naquele exercício, ser melhor no jogo, vencer o adversário. Isso, para mim, está sempre associado. É impossível dissociar.
BnR: É incompatível formar sem incutir uma mentalidade competitiva?
JT: Quando pensas que podes formar sem incutir essa mentalidade, eu acho que não estás a formar jogadores de futebol. Estás apenas a formar indivíduos que têm algumas qualidades relativamente ao jogo, mas fica a faltar ali qualquer coisa. Isso pode ser o erro de Descartes, e eu acredito, que neste enquadramento, sobretudo quando estamos a falar de clubes de elite como o Barcelona, o Benfica, o Porto, o Sporting, etc, tens de incutir uma mentalidade competitiva, vencedora. Se não, os jogadores, apesar de poderem ser competentes, não conseguem ser competitivos nem jogar ao mais alto nível.
Obrigado pelo vosso decisivo contributo! Este troféu é colectivo e nosso! Vamos à conquista dos próximos! #JUNTOS, #TogetherStronger, #Benfica pic.twitter.com/pIanzAxBaE
— João Tralhão (@JoaoTRA) March 20, 2018
BnR: Como é que um treinador da formação gere o excesso de pressão que os pais por vezes colocam sobre os seus filhos?
JT: Tem de fazer aquilo que é a sua responsabilidade: criar as condições todas à volta do jovem para que ele se possa desenvolver. E as condições estão relacionadas com o treino, a liderança e a gestão que fazem da vida dele, nunca esquecendo que os pais têm um papel fundamental. Os pais nunca podem ser excluídos do processo, têm de ser incluídos. Agora, a forma como fazem essa inclusão é que depende muito do clube onde trabalhas e da estrutura que tens.
BnR: Como deve ser essa estrutura?
JT: O ideal será os treinadores terem o menor contacto com os pais e haver alguém responsável que faça essa ligação entre o treinador, a criança e os pais. Mas a grande parte das estruturas em Portugal não tem isso. Se tiver de ser o treinador a fazer esse papel, eu acho que deve evitar ser exclusivo. Excluir os pais não tem sentido. Os pais fazem parte do processo. Ser inclusivo é a melhor estratégia para que os pais tenham a consciência de que não vão influenciar aquilo que são as decisões técnicas do treinador, mas que podem e devem influenciar aquilo que são as questões sociais.
BnR: Com base em que critérios é que escolhes o capitão?
JT: Em juniores, que é o meu grande know-how, eu acho que é um contexto praticamente profissional. Deves antecipar o cenário que vais encontrar nos seniores. Eu costumo definir dois tipos de capitão: o capitão de tarefa e o capitão daquela liderança mais clássica, de ser o exemplo do grupo e ter uma voz mais ativa. Na maioria das vezes, eu não gosto de escolher um capitão, gosto de escolher um grupo de capitães.
BnR: Um grupo multidisciplinar?
JT: Sim. Tens líderes de tarefa, que são aqueles que, em determinado momento dentro do campo, têm de reajustar a tarefa dos colegas. Isto porque o treinador não tem acesso à equipa para passar a informação. Então, neste contexto, com o barulho das bancadas, eles não conseguem ouvir-me. Por isso, os líderes de tarefa são fundamentais. Devem ser a voz do treinador dentro de campo, a voz que toda a gente respeita. Depois, aqueles líderes mais clássicos que incentivam, dão uma palavra, são o exemplo para os colegas, devem ser a voz do treinador dentro do balneário. Eu acho que depende sempre do grupo que tiveres. Se tiveres por base estas duas ideias, facilitas um bocado a decisão.
BnR: Quais são os princípios de jogo base que gostas de aplicar às tuas equipas?
JT: São princípios relacionados com a minha ideia de jogo. Eu gosto de dominar, controlar o jogo, praticar um tipo de futebol de posse de bola e que não dê grande iniciativa ao adversário. Portanto, todos estes princípios estão associados a essa ideia de jogo. Estes princípios estão estruturados por momentos do jogo, por fases.
BnR: João Félix valia os 120 milhões de euros que custou?
JT: Eu acho que pode valer bem mais até. Se nós olharmos para os valores de mercado… os valores estão loucos, mas ajustados àquilo que se pratica. O João é um miúdo que, em breve, será uma das maiores referências do futebol mundial. Sem entrar em comparações, mas se ele tiver a felicidade, que eu espero que tenha, e se continuar o seu trajeto como tem sido até aqui, vai ser dos grandes jogadores do futebol mundial nos próximos tempos.