Artur Jorge: Rei com a bola nos pés ao sul, Rei com a tática na mão ao norte

    Artur Jorge é um dos membros mais importantes do futebol nacional, tendo conseguido alcançar o sucesso enquanto jogador e também como treinador.

    Artur Jorge não era um homem comum. Apesar de ter brilhado dentro e fora das quatro linhas, no mundo do futebol, era muito mais completo do que isso. O desporto-rei é somente um capítulo da sua longa história, com várias vertentes e gostos. Há muito mais para além de Viena, a cidade que fez todo um país sorrir e que marcou uma geração inteira. Artur Jorge era um homem das letras, dos estudos e do conhecimento. Cursou Filologia Germânica em Coimbra, ao mesmo tempo que brilhava na Académica, tendo sido inclusivamente o segundo melhor marcador de 1966/67, somente atrás de um tal de Eusébio. A sua paixão pela faculdade levou-o inclusivamente a rejeitar a oportunidade de rumar à capital, negando-se a vestir de verde e branco, continuando a servir a briosa.

    É nesta altura que a sua versão sindicalista se torna cada vez mais um ponto forte. Foi inclusivamente acusado de participar em manifestações contra o Estado Novo, que o levaram a cumprir o serviço militar obrigatório. O apogeu deste lado de Artur Jorge aconteceu anos mais tarde, com a criação do Sindicato dos Jogadores, em 1972, ainda em período salazarista, embora o governo fosse chefiado por Marcello Caetano. Era alguém à frente do seu tempo, que merece ficar nos livros de história, não apenas no capítulo desportivo.  11 anos depois, lança uma das suas obras-primas: Vértice da Água, um livro de poemas. A sua paixão pela pintura e música clássica, eram sobejamente conhecidas. O portuense era alguém culto, sofisticado e admirado. Era difícil não se gostar de Artur Jorge, era um sentimento que se ganhava com o tempo e que terminava por se entranhar.

    A vida é muito mais do que futebol. Porém, Artur Jorge também era genial nesse ponto. Afinal de contas, ficou muito mais conhecido como jogador e treinador do que como artista. É alguém que está nos anais do desporto nacional e que marca o Século XX, tanto ao nível nacional, como ao nível internacional. Mesmo que não tivesse alcançado a glória no que a troféus diz respeito, Artur Jorge seria sempre recordado pelo seu pontapé de moinho.

    Não é possível, em somente um artigo, poder descrever com pormenor os feitos de Artur Jorge. Seria necessário um livro com vários capítulos, a descreverem todas as suas passagens, com e sem a bola nos pés.

    Artur Jorge foi um jogador de alto gabarito. Em 1969 mudou-se para o Benfica, grande rival do Sporting, que o tinha tentado contratar antes, passando por lá seis temporadas recheadas de golos, tendo sido colega de equipa de vários notáveis como Mário Coluna, Eusébio, António Simões, Toni (com quem teve um momento menos bom, nos anos 90), José Torres, entre outros. No total, conquistou quatro campeonatos e duas Taças de Portugal, antes de se mudar para o Restelo. Foi ainda o melhor marcador da Liga por duas ocasiões, antes das lesões o começarem a massacrar.

    O emblema de Belém representa o final de carreira como futebolista (há ainda uma curta passagem pelos Estados Unidos), mas dá início a mais um capítulo da vida de Artur Jorge, o de treinador.

    Estudioso como poucos, o português rumou à República Democrática Alemã, para realizar um curso de técnico, onde foi o aluno com a melhor classificação. Um génio, por tanto. Depois de um período como adjunto de José Maria Pedroto, lança-se aos tigres, ao serviço do Belenenses, onde passa meia temporada de 1982/83, mas é ainda mais a sul que encontra a felicidade. De facto, é o Portimonense a sua porta para o FC Porto, a sua equipa do coração, que apenas pôde representar enquanto jogador por uma época, enquanto sénior (1964/65). A culpa foi de José Maria Pedroto, que o aconselhou a Pinto da Costa para ser o seu sucessor. Começa aqui o seu período de ouro, que tem o seu ponto mais alto em Viena. A 27 de maio de 1987, o FC Porto levanta a sua primeira Champions League da história. O resultado? 2-1, frente ao Bayern Munique, mas fica para a memória o calcanhar de Madjer, que foi “apenas” o tento do empate:

    «Não vou revelar o nome, mas quando fomos para Viena, houve um jogador que, de manhã, foi para a sauna. E o Artur Jorge disse: ‘Este gajo já não vai jogar.’ Ao que eu respondi: ‘Artur, meta uma coisa na cabeça… Se calhar ir para a sauna até lhe fez bem. Nós estamos aqui para ser campeões, viemos armados em cordeirinhos para a matança, mas vamos ganhar. Não vamos estragar o nosso grande objetivo por causa da sauna. Ou somos campeões europeus hoje, ou nunca mais somos. Não vamos ficar só na história do FC Porto, vamos ficar na história do futebol, porque um clube de uma cidade pequena, sem recursos, ser campeão europeu contra um monstro como era e é o Bayern Munique, vai deixar-nos na história. Artur Jorge disse-me que tinha razão e, nesse momento, senti que ele ficou convencido que íamos ganhar. Acho que aquilo que ele disse no intervalo foi fruto da convicção com que ficou, porque ele disse aos jogadores ‘é hoje ou nunca mais, vamos ficar na história’. Empolgou os jogadores. A parte final do jogo foi mesmo de quem está louco no bom sentido para conquistar a vitória, como conquistámos», revelou Pinto da Costa, em 2022.

    Artur Jorge deixara de ser Artur Jorge nessa noite de Viena. Foi ascendido a Rei Artur. No universo portista, o técnico faz parte da Santíssima Trindade dos Treinadores, junto a José Mourinho (que afirmou que o antigo avançado tinha sido o primeiro treinador-estudante) e José Maria Pedroto (uma figura para muitos «obscura» e que merecia a pena ter um estudo bem mais pormenorizado sobre o seu sucesso). No Dragão, não há melhor que estes três.

    Ainda assim, não é apenas na cidade do Porto que Artur Jorge é elevado a monarca. Em Paris passa-se o mesmo. Encantado com a cidade da cultura, passou por Matra Racing, mas é no PSG que é recordado (depois de mais uma passagem pelas Antas). Se hoje estamos habituados a ver os parisienses recheados de craques, gastando às centenas de milhões, nos anos 90 não era bem assim, pese que o plantel estava recheado de ótimos jogadores como Raí, Valdo ou Ricardo Gomes.

    Não vivíamos uma altura em que o clássico técnico português era assediado no estrangeiro. Os que iam lá para fora, fracassavam. Mas o Rei Artur acabou com essa imagem frouxa, levando a Taça de França para o Parque dos Príncipes, em 1992/93 e na época a seguir a Ligue 1. Era apenas a segunda vez que o PSG conquistava o dito troféu.

    Artur Jorge estava em altas e mal podia imaginar que o seu declínio iria começar no momento em que apertou a mão a Manuel Damásio, para assinar com o Benfica, a equipa por quem foi tão feliz com o esférico junto da bota. Ocupou o lugar que era de Toni, surgindo a pequena quezília, entretanto resolvida. A turma da Luz estava a iniciar o famoso Vietname e tinha perdido imensas peças logo no começo de 1994/95, com Rui Costa à cabeça. O trabalho nos encarnados durou pouco mais do que uma época, mas pareceram 100 anos. O futebol era criticado, mas os meios que existiam eram poucos e o homem que tinha sido Rei a norte, nunca chegou a assumir o trono a sul. Saiu pela porta dos fundos e esta passagem talvez o tenha feito passar para um segundo plano (afinal, qual é o treinador que não teve sucesso no Benfica, que é elogiado? Nem mesmo José Mourinho), do qual jamais iria sair. O próprio já assumiu, em entrevista à Sábado, que o Benfica lhe fez mal.

    A partir deste momento, foi sempre em queda. Regressou à Seleção Nacional, onde tinha passado brevemente entre 1990 e 1991, mas o que fica na memória é a cena de violência partilhada com Ricardo Sá Pinto, já com um perfil intempestivo, que nunca perdeu. Em seguida, deambulou pela Europa (ainda esteve no PSG, por exemplo). África e Ásia, fechando a sua etapa como treinador em 2015/16, ao serviço do Alger. Por ironia do destino, o seu último emblema em solo luso, foi a Académica de Coimbra. A segunda parte da sua carreira enquanto técnico foi abaixo do que se esperava e demasiado deambulatória, com projetos variados. São anos que não ficam na memória, ao contrário dos anos 80 e começos dos 90.

    Artur Jorge é uma figura incontornável do futebol português, mesmo tendo passado os últimos anos da sua vida sem qualquer brilho nos olhos, esperando quiçá pelo último dia da sua existência. O dia 25 de dezembro de 2013 foi possivelmente o mais triste da sua vida, o que fundamenta a sua ausência e o seu afastamento, passando a estar nas sombras, enquanto que outros, que percebiam (e percebem) zero do tema futebolístico, tinham os holofotes sobre si. Poucos notaram este fenómeno, Artur Jorge era um homem discreto, somente com a participação necessária, mas assertiva.

    José Mourinho, à RTP, deu a sua visão do tema:

    «Sinto um bocadinho de tristeza porque, nos últimos anos, Portugal esqueceu que havia um histórico do nosso desporto e que se calhar poderíamos ter feito alguma coisa para o recordar. Eu falo por mim próprio. Terei sempre o mister como uma referência de grande respeito. Um homem de grande classe. Mas que pertence 100% à sua família. Um ótimo jogador, mas um treinador de elite. Um dos treinadores mais marcantes da história do futebol português. É assim que eu quero recordar o mister».

    Nunca vi Artur Jorge a jogar ao vivo. Não estava cá para assistir às suas conquistas com o FC Porto nem ao trabalho menos positivo do Benfica, no começo do Vietname. Porém, quem cá estava dizia que era descomunal naquilo que fazia e os registos históricos provam isso mesmo. No final de tudo, o que conta são as memórias e as recordações de quem cá fica. Artur Jorge foi, é, e sempre será amado e relembrado com saudosismo e nenhum rancor. Conseguiu agradar a norte, centro e sul. Hoje em dia, isto é obra. Até sempre, Rei Artur!

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