«Se outros treinadores cometessem os erros que Jorge Jesus já cometeu, já estariam na rua» – Entrevista BnR com Carlos Azenha

    «O Bruno Lage acabou por ser uma situação clara de um treinador que não tinha força para impor as suas ideias. O Jorge Jesus é que decide quem vem e quem não vem, ao Lage era “toma lá, que é assim e ponto final”»

    Bola na Rede: Falaste das televisões, dos jornalistas e dos comentadores… O que achas dos programas de TV que debatem e comentam o futebol português?

    Carlos Azenha: Há uma coisa que é lamentável. Temos indivíduos a falar de futebol em Portugal que não percebem nada de futebol. Não têm formação para tal… Eu não vou à televisão falar de medicina, engenharia, economia ou arquitetura. Portanto, não percebo como um economista, um arquitecto ou um engenheiro pode estar a comentar sobre futebol. E, nomeadamente, a comentar sobre competências de treinadores. Eu não tenho a ousadia de entrar dentro de um jornal e ensinar um jornalista a escrever. Não posso. Posso dar a minha opinião, mas não posso ensiná-lo a escrever.

    Bola na Rede: Consideras, então, que a forma como os comentadores e jornalistas atuam em Portugal acabam por fragilizar e prejudicar o treinador?

    Carlos Azenha: Vamos distinguir as coisas: há jornalistas e jornalistas. Eu sempre defendi que os jornalistas desportivos deviam ter uma formação na área em causa. Se me pedires para falar de badminton vou ter dificuldade. Posso ter algumas noções, devido à minha formação académica, mas não tenho conhecimentos para elucidar os espectadores ou os leitores. Um jornalista que escreve sobre economia não pode ser o mesmo que escreve ou fala sobre desporto. Não deveria ser. O jornalista devia ter uma formação específica sobre desporto e sobre a modalidade. Lembro-me que, uma vez, interroguei um comentador num programa televisivo – não interessa agora quem, mas era alguém que não estava ligado ao desporto, mas era comentador –, interroguei-o porque ele dizia que o FC Porto não jogava bem em contra-ataque. Eu disse-lhe que o FC Porto nunca jogou em contra-ataque, mas em ataque rápido. E perguntei-lhe: “– Sabe qual é a diferença entre contra-ataque e ataque rápido? Não sabe, mas está a fazer essa afirmação”. Ou seja, há coisas básicas que devem ser feitas, para podermos falar a mesma linguagem. Os treinadores devem ter a humildade para responder aos jornalistas sobre as questões que lhes são colocadas, sem ofender, como que a dizer “vocês não percebem nada disto”, mas também não pode ser o contrário. É muito fácil para um jornalista, com uma caneta ou um microfone, ter o poder que tem. Uma mentira repetida muitas vezes torna-se verdade. E essa notícia não só vem na primeira página, como, na maioria das vezes, as pessoas passam na banca e só veem a primeira página. E, normalmente, quando há um desmentido, aquilo vem lá para a página 36, num cantinho, em baixo.

    Bola na Rede: Falaste lá atrás do Jorge Jesus. Nesta época tem sido, provavelmente, o treinador mais pressionado. É um bom exemplo de tudo o que já falaste em relação àquilo que passam os treinadores?

    Carlos Azenha: O Jorge Jesus foi contratado mediante determinado tipo de pressupostos. Naturalmente, neste caso, muito da “porrada” que ele leva é o próprio que a cria. Ele apresenta-se dizendo que o Benfica não vai jogar o dobro, mas o triplo. Ele tem alguns desabafos que não são os mais indicados, como dizer que o treinador anterior não conseguiu tirar o melhor partido do Weigl e que com ele o Weigl vai jogar muito melhor… Quer dizer, isto é quando os treinadores começam armados em fanfarrões. E depois há outra coisa! Eu podia falar aqui de uma série de treinadores que estão parados e ninguém sabe o que eles estão a fazer. Onde anda o Leonardo Jardim? Ou o Marco Silva? Ou o Massimo Allegri? Onde é que andam? Podia citar “n” treinadores de top mundial que, neste momento, não estão a treinar. O que devemos é primar é pela competência e seguir critérios de competência para contratar. O Benfica é um bom paradoxo. E não vou falar das competências dos treinadores, mas da forma como se contrata. O Benfica, aquando da saída do Jorge Jesus, afirmou que haveria uma mudança de paradigma, com uma aposta na formação, etc, etc. Chega o Rui Vitória. Há um desinvestimento grande na contratação de jogadores e investe-se no Seixal. Quando chega o Bruno Lage, foram contratados alguns jogadores, como o Weigl – mas o Lage nem deve ter dado opinião –, e teve ainda de apostar em jogadores como o João Félix e outros, porque era essa filosofia da casa. Repara, como o facto de se perder um campeonato muda tudo. Isto só prova que as pessoas que lideram não têm projeto. Decidem em função daquilo que as massas dizem e do medo que as massas lhes provocam. Independentemente dos custos que isso tem. Hoje, o Benfica, em termos financeiros, de certeza que está pior do que estava há um ano. E desportivamente também está pior. Mas isso não quer dizer que o treinador era pior que o outro, não quer dizer nada disso. O que quer dizer é que uma pessoa não pode ter um discurso hoje e amanhã outro.

    Bola na Rede: No caso do Benfica houve uma grande aposta no Seixal, mas há uma grande diferença entre apostar em Ruben Dias, Renato Sanches ou João Félix ou ter de apostar numa “fornada” de jogadores que, para já, não têm demonstrado o mesmo rendimento na primeira equipa do Benfica. É normal existir esta dificuldade na transição da formação para a equipa principal. Se calhar, neste caso, faria mais sentido alterar a lógica do projeto ou não?

    Carlos Azenha: Falaste de algo muito importante, porque é muito importante desmistificar isto. Os presidentes gostam muito de afirmarem que quem sai da formação tem de ir para a equipa principal, disto, para apelar às massas e aos votos. Isso é um erro crasso. Temos de perceber que, no máximo, saem um ou dois jogadores com condições para jogarem na equipa principal…

    Bola na Rede: Esse talvez tenha sido o grande problema do Bruno Lage. Ele acabou por ter à sua disposição um plantel com base em jogadores saídos da formação…

    Carlos Azenha: O Bruno Lage acabou por ser uma situação clara de um treinador que não tinha força para impor as suas ideias. O Jorge Jesus é que decide quem vem e quem não vem, ao Lage era “toma lá, que é assim e ponto final”. E aí é que começa a questão sobre competência de treinadores.

    Bola na Rede: E isso prejudica todos: o clube, o treinador e os próprios jogadores da formação que queimam etapas…

    Carlos Azenha: Prejudica os treinadores, sim. Imagina que tu e um colega têm de fazer um trabalho. Ao teu colega são dadas todas as ferramentas: um computador, um carro… E tu tens de ir de autocarro, não tens computador, só um bloco de notas. Agora, vira-te. Esta é a realidade. Portanto, em relação à formação temos estes problemas. Agora, toda a gente chega da formação e tem de jogar na equipa principal e se calhar tem de ser titular. É um erro crasso. E a história do futebol diz-nos isso mesmo. Olhamos para o FC Porto e a maior parte dos jogadores de top mundial saíram todos para rodar: Ricardo Carvalho, Ricardo Costa, Hélder Postiga, Bruno Alves, todos… E depois isto começa a criar um problema nos próprios miúdos, que dizem: “– Ai não jogo? Então, quero sair!”. Como fez o Jota no Benfica. E depois há ainda os empresários, porque alguns desses miúdos jogam pela força do empresário. O empresário pressiona e depois o empresário tem outros jogadores que interessam ao clube… O empresário pressiona e os seus jogadores têm mais oportunidades que outros. E os próprios miúdos já começam a ter arrogância, a achar que já têm direito a isto e mais alguma coisa, porque são craques. Lembro-me, uma vez, no centro de estágios do Chelsea, estava com o Paulo Ferreira a falar disto. E ele dava o seu exemplo aos miúdos das escolas do Chelsea. Mas como é que se explica estas coisas a um miúdo que ganha 46 mil euros à semana?

    Bola na Rede: Pois, deve ser difícil o Paulo Ferreira convencê-los a começarem pelo Estoril ou pelo Vitória de Setúbal… 

    Carlos Azenha: Se não pararmos com isto, qualquer dia o futebol não tem capacidade para tudo. E os empresários vivem a pressionar. O treinador está a treinar e eles já estão com quatro ou cinco treinadores em carteira para apresentarem aos presidentes, porque esses treinadores vão meter a jogar os jogadores deles. Portanto, o futebol tem de ser todo repensado. É claro que quem escreve não tem este problema, quem comenta não tem este problema, mas se um comentador começar a perder audiências para outro, ninguém lhe vai perguntar: “– Sente-se em condições para continuar a comentar? Não acha que é um barrrete?”. Gostava de ouvir os comentadores a responderem a isso. Resumindo, as pessoas não deixam de ser competentes só porque não vão em primeiro lugar. Se fossemos por essa lógica, todos os anos tinham de ser despedidos dois treinadores, porque só pode ganhar um. Neste caso, os treinadores dos dois grandes que perdiam tinham de ser sempre despedidos. Há quanto tempo não ganha o Guardiola em Machester, com aquela equipa fabulosa? E o Mourinho? A Liga inglesa tem o Klopp, o Guardiloa e o Mourinho no mesmo campeonato. Não podem ganhar todos.

    Bola na Rede: Mas acreditas que esta mentalidade pode ser alterada? A ditadura dos resultados sempre existiu no futebol português.

    Carlos Azenha: A massa adepta tem de ser instruída, tem de perceber a realidade. Antigamente, no futebol, ao intervalo, também íamos comer a bifana e o courato. Isso já não existe. Se evoluímos numas coisas, também temos de evoluir noutras. E temos um problema ainda mais grave que isto. Os clubes agora também já não fazem formação de base. Temos as escolas de futebol que são uma fonte de receitas para privados e clubes, com os pais a pagarem para os miúdos jogarem. Hoje, todos os pais querem que os filhos sejam o Cristiano Ronaldo. E, depois, vão aos jogos com atitudes menos correctas, capazes até de contrariar o próprio treinador que está a dar indicações no banco. Por isso, temos de começar a olhar para o futebol de forma diferente, senão corremos o sério risco de, amanhã, isto ser uma coisa de que não gostamos. Claro que isto não vai parar, vamos empurrando os problemas com a barriga para a frente. E não é por acaso que os lobbies mais poderosos estão a tentar criar uma nova Liga europeia… E se isso acontecer, achas que algum clube português vai lá estar? Não vai. O lobby financeiro é maior que o histórico dos clubes. A maior parte dos clubes que estão nessa Liga não têm metade da história de Benfica, Sporting ou FC Porto, nem são comparáveis, mas são muito mais fortes financeiramente. Difícil, é ser campeão europeu com os orçamentos das equipas portuguesas. É que em Inglaterra, o montante dos direitos televisivos do último classificado da Premier League é superior aos direitos televisivos do Benfica. Nós temos a mania de dizer que o nosso campeonato não é competitivo, mas isso é falso. O nosso campeonato é competitivo, mas está é mal estruturado. E agora ainda vamos criar uma terceira divisão profissional [a Liga 3, que arranca em 2021/2022]… Parece-me que não há condições para tal. Nós devíamos pensar era o seguinte: Ok, há formação, os miúdos de 18 anos ainda são muito novos para jogarem na equipa principal, há que criar condições para estes miúdos serem colocados noutros clubes, poderem progredir e, mais tarde, voltarem com condições para jogarem na equipa principal. Isto era o mais correto. Mas depois temos os empresários e o que acontece? Na maior parte dos casos, fica mais barato para uma equipa portuguesa pequena ir buscar um jogador ao Brasil do que ir buscar um jogador da formação de um grande. Porquê? Porque os empresários inflacionam os jogadores. Eu costumo dizer: “– No dia em que todos os miúdos começarem a jogar com botas pretas e a se distinguirem pela qualidade e não pela vaidade, tudo mudará”. Hoje, olhamos para um jogador que vai para um jogo de futebol e ele parece que vai para uma festa, para uma passagem de modelos. O penteado, o gel, o calçãozinho… Temos de estar atentos a este fenómeno. As próprias mulheres dos jogadores, a influência que elas têm hoje não tinham antigamente. São fotos, são posts, são comentários… Lembras-te do caso da festa da mulher do Uribe do FC Porto? Quer dizer, nem sequer pensou na carreira do marido… O futebol é visto de maneira diferente porque antes não havia redes sociais.

    Bola na Rede: Os grandes clubes do futebol português têm, nos últimos anos, tido muitas dificuldades para colocar alguns jogadores com que já não contam. Há o exemplo do Zivkovic e do Ferreyra no Benfica, que só agora saíram…

    Carlos Azenha: Eu, nesses casos, até chamava mais a atenção para as dezenas e dezenas de jogadores que são contratados para as equipas “B” desses clubes e, depois, desaparecem. E os grandes negócios que são feitos assim. No futebol, o critério de contratação deve ser mediado por quem tem competências para tal. Os clubes já estão, felizmente, mais bem organizados em relação a isso, mas não deixa de ser uma verdade que, cada vez há mais, existe influência externa para a contratação de jogadores. E que influencia tudo o resto. O principal fator é sempre o dinheiro. O dinheiro cria influência, a influência cria lobby, o lobby cria pressão e a pressão prejudica a decisão.

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    João Amaral Santos
    João Amaral Santoshttp://www.bolanarede.pt
    O João já nasceu apaixonado por desporto. Depois, veio a escrita – onde encontra o seu lugar feliz. Embora apaixonado por futebol, a natureza tosca dos seus pés cedo o convenceu a jogar ao teclado. Ex-jogador de andebol, é jornalista desde 2002 (de jornal e rádio) e adora (tentar) contar uma boa história envolvendo os verdadeiros protagonistas. Adora viajar, literatura e cinema. E anseia pelo regresso da Académica à 1.ª divisão..                                                                                                                                                 O João não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.