Crise. Entre um governo e um recurso com fertilidade momentânea, a distância ainda é grande

    O futebol, como efígie híbrida de genialidade e emoção, absorve a alma mais desligada e insensível ao maior dos ajuntamentos – palavra em voga – por diversas razões que, aqui debitadas, maçavam a paciência de quem já possui só resquícios. A missiva anterior conduz à incompreensão de quem faz usufruto da palavra “indiferença” como forma de classificar ou atribuir um significado. Equivale a demonstrar um sentimento isento e desapegado perante uma crise socioeconómica por exemplo:

    (Jornalista): Portugal, depois da pandemia, irá conviver com a pior das crises. Qual a sua opinião?

    (Cidadão): Paciência! Importa saber lidar. Pessoalmente, não me faz diferença. Continuo a obter rendimentos. Crises vêm e vão!

    (Jornalista): Não desviando a rota da temática, falemos de futebol. Gosta ou não de futebol?

    (Cidadão): É-me indiferente. Mesmo que os jogadores estejam sob tutela do vírus. Continuo a ter o meu salário ao fim do mês.

    A este pequeno bloqueio mental e – de algum modo – irracional, chama-se tentar ter piada e arranjar uma forma de interligar algo grave (situação pandémica) com algo muito pior (fonte de rendimento do Sporting Clube de Portugal).

    Ora, no período que antecedeu, Bruno Fernandes era, como se brame na gíria, pau para toda a obra no universo leonino, fora dele e no limiar entre as duas fronteiras. A palavra incansável era tão frequente na associação que, por si só, o tornava cansável. Defendia, atacava, corria, passava, visionava, fintava, vestia a cartola e pegava na batuta de modo natural e sem alarido, assistia, marcava, decidia. A designação box-to-box assume uma quantidade residual de “boxes” para o distinguir como um dos melhores médios a exercer funções na Europa e o melhor, sem margem para qualquer dúvida, a atuar nos relvados portugueses durante os últimos 15 anos.

    A irreverência no sentido puro e em estado bruto. Na primeira época, o clube ainda experimentou uma réstia de “tempos de vacas gordas” e Bruno, obviamente, aproveitou as facilidades. Adaptação, ambição, afirmação. Nota A para o governo.

    A segunda época evidenciou (mais) um período de austeridade confinado aos leões, motivado e acentuado por Alcochete: Bruno era o Sporting. Ele, só ele. Guiou a equipa ao terceiro lugar e à conquista da Taça de Portugal. Um Schindler à portuguesa, adjuvado pelo ministro da Administração Defensiva Interna, Jérémy Mathieu, injetado pela bazuca financeira holandesa (um fundo europeu, ao fim e ao cabo) Marcel Keizer e protegido pelo Fado, nome tão português, incerto e quimérico, simultaneamente.

    Na terceira e corrente época, o internacional português descobriu que a injeção de capital não era a fundo perdido e ressentiu-se. Consequentemente, o país que carrega a peso bruto fá-lo cair. Seguem-se três tentativas de subverter uma crise que adensava a preocupação dos habitantes do país. Problema? O facto de serem portuguesas? Não, mas era uma boa razão. As ideias discutidas no parlamento não eram viáveis e, quando realizadas, surtiam o efeito oposto ao intencionado. Esquerda, direita e centro não resolveram nada. Bruno Fernandes demite-se com o sentimento de dever cumprido, mesmo quando antevia impossibilidade.

    A certa altura, momentos antes da propagação expansiva do vírus, surge uma outra injeção de capital de origem lusa. Rúben Amorim recebe e vence o Desportivo das Aves (2-0) e inicia o longo percurso de três meses (no futebol, a duração é longa) sem resultados negativos. Depois, o raciocínio acendeu, lentamente, as luzes destinadas ao seu funcionamento e constatou que a Primeira Liga experimentou um interregno.

    O futebol voltou em junho. Adivinhavam-se resultados miseráveis à semelhança dos anteriores. Portugal vivia uma crise, o Sporting Clube de Portugal vivia duas. É o resultado de estar colocado sempre na dianteira.

    Mas, quem seria o homem do leme? Quem iria tomar as rédeas? Melhor! Quem queria e estaria disponível a exercer a chefia de um governo com resultados desfavoráveis e a escuridão no seu trilho? A candidatura de Luciano Vietto era expetável – eu apostei e perdi – porque a odd era a de menor valor para reaver algum lucro.Foi Jovane Cabral. É Jovane Cabral!

    Diferentes maneiras de enfrentar e responder a uma crise transversal à sociedade. Jovane Cabral é díspar de Bruno Fernandes. O cabo-verdiano é a parafernália de todos os contra-ataques, as explosões de velocidade, as demonstrações de força, os índices de maturidade que atingiu em escassos meses, a atitude combativa e o espírito de solidário e de entrega total face às dificuldades que cada partida exige transpor. Grande parte do jogo leonino passa pela sua ação direta e, quando o contrário acontece, nota-se uma mudança de comportamento ofensivo abismal pela diminuição de ímpeto e da criação de jogadas com perigo para o reduto adversário.

    O processo de dilapidação urge ao cuidado. Malbaratar um recurso – no qual a balança tem pendido, na maioria das vezes, para o lucro – é o tipo de estratégia que um sportinguista consegue prever antecipadamente. Assegurar a sobrevivência através dele ainda não é algo palpável, embora se comece a percorrer esse trilho. Jovane é, assim, um artefacto que carece de contas certas, sem qualquer tipo de negociata, lavandarias de fundos ou tráfico de influências.

    As exibições entusiasmam, mas a crise não desapareceu com a senda vitoriosa. No fundo, circunscreve-nos, apenas, um aumento nas receitas do turismo.

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    Romão Rodrigues
    Romão Rodrigueshttp://www.bolanarede.pt
    Em primeira mão, a informação que considera útil: cruza pensamentos, cabeceia análises sobre futebol e tenta marcar opiniões sobre o universo que o rege. Depois, o que considera acessório: Romão Rodrigues, estudante universitário e apaixonado pelas Letras.                                                                                                                                                 O Romão escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.