Recordar é Viver | O Valência de Hector Cúper

    Acabará por ser cómico, quando olharmos para trás e vermos, na segunda década do novo milénio, as contradições existentes entre a imensa influência de Guardiola no desenvolvimento do jogo, com todas as equipas a competirem incessantemente na busca pelo mais apurado sentido estético, que de algum modo se fixou em pressupostos fáceis de entender, por muito que exista a tentação de tornar a receita complexa: o passe curto e a ocupação eficiente do espaço, e a conservação estoica dum legado anacrónico sob assinatura de Diego Simeone.

    O ‘Cholismo’, cercado pelo revivalismo holandês, sobreviveu como último reduto do anti-fútbol e sua mais avançada expressão, com todo o sucesso que se conhece, tornando e mantendo o Atlético como terceira grande potência da La Liga. Antes, já Héctor Cúper tinha sido fiel a esses ideais para levar o Valência a duas finais de Liga dos Campeões seguidas, apoiando-se nos mesmos entendimentos de como o jogo deve ser jogado – a disciplina, a agressividade e o pragmatismo enquanto pilares do sistema. Mendieta poderia elevar a nota artística e tornar o futebol mais sexy, mas Cúper é o elo anterior a Simeone na cronologia dessa tradição, como o Valência 1999-2001 o é do Atlético da década passada.

    É preciso recuar no tempo e recuperar a memória de Victorio Spinetto se quisermos uma explicação. Victorio foi quem tornou o Vélez Sarsfield o primeiro a intrometer-se na luta dos 5 Grandes (Boca, River, San Lorenzo, Racing e Independiente), fazendo o clube terminar no segundo posto em 1953, algo inédito naquele futebol. Ao longo de 14 anos como comandante das tropas, moldou o clube à sua imagem: fora um destemido defesa-central, um caudillo como só os argentinos conseguem produzir. «Um jogador que não entra em campo para defender a sua imagem da desgraça, não pode pisar o relvado. Futebol é um jogo de homens» é uma das suas convicções que a História mais gostou de registar.

    Don Victorio acreditava que o atleticismo e a motivação são tão ou mais importantes quanto o talento e formatados pela sua ideologia saíram um sem número de intérpretes mais tarde treinadores: como Bianchi, o das Intercontinentais com o Boca Juniores e melhor treinador do mundo em 2001, ou Carlos Griguol, que de 1980 a ’84 levou o Ferro Carril Oeste a dois campeonatos argentinos e dois segundos lugares. Surge aqui Héctor Cúper, puxado para a primeira equipa por Griguol e por ele ensinado. Outro dos discípulos de Don Victorio fora Osvaldo Zubeldía, o autor do famosíssimo Estudiantes de La Plata dos finais dos anos 60.

    Felizmente, as equipas de Griguol eram menos cínicas, apesar de manterem a obsessão pelo pragmatismo, pela agressividade e pela disciplina. Eram mais leais, mais moderadas. Cúper bebeu disso e pela vida fora nunca fugiu das bases. É sua a frase «Trabalho e motivação. Depois um pouco de sorte; e, finalmente, silêncio, muito silêncio» quando tentou explicar a sua visão, muitas vezes resumida pela dualidade sacríficio-solidariedade.

    O Valência

    Antes de chegar ao Mestalla, não subiu de forma gradual: impetuosamente, como as transições das suas equipas, ganha a Taça Conmebol pelo Lanús em 1996; chega a Maiorca em 1997, para logo ser finalista da Taça do Rei – perdendo para o Barcelona de Van Gaal; época seguinte, ganha a Supertaça ao mesmo emblema, alcança o terceiro lugar na La Liga (ainda hoje recorde maiorquino) e vai até à final da Taça das Taças, só perdendo para a Lazio de Eriksson. Estava apresentado e Claudio Ranieiri, preparando-se para sair de Valência, deu o seu nome como recomendação para substituto.

    Não começou bem no Mestalla. Aquelas gentes, habituadas ao sorriso incontrolável do italiano, não engraçaram com a timidez e o silêncio de Cúper. Os resultados não ajudaram – à 5.ª jornada contava quatro derrotas e um empate. O sexto jogo era uma viagem ao Bernabéu e adivinhava-se o escândalo que o despediria.

    A vitória que faltava para ajudar à transição, de personalidade, mas sobretudo tática. Cúper desfez a linha de cinco de Ranieri e fixou o seu 4-4-2 preferido, sobressaindo Mendieta na intermediária, apoiado pelos importantes Farinós, Gerard, Kily González. Na frente, a estrela, ‘Piojo’ López, goleador do conjunto com 17 tentos.

    Apesar da qualidade ao dispor, Cúper tentou sempre não depender dos egos. «O individual, seja ele quem for ou quão talentoso possa ser, deve-se sacrificar ao serviço da comunidade» disse certo dia. E para provar que não era só garganta, um dia ouviu Camarasa e Cláudio Lopez a dizer que os seus treinos eram aborrecidos. O primeiro é rebaixado para a equipa B e o segundo, pela preponderância, é só convidado a organizar ideias em casa, durante uma semana.

    O início titumbeante foi corrigido a partir da vitória em casa do Real, mas a época decorreu sempre sob debaixo de alguma contestação – que chegou quase a ser insuportável em Fevereiro, depois de cinco jogos sem vencer na Liga. Mas era uma questão de… paciência: o plano de Cúper e do seu preparador físico, Juan Manuel Alfano, resultou e a equipa acabou a época em grande estilo, impondo-se facilmente sobre uns cansados Lazio (5-2 na 1.ª mão dos Quartos da Liga dos Campeões) e Barcelona (4-1 na 1.ª mão das Meias-finais). Quando todos os outros conjuntos já sentiam o peso duma época quase completa, o Valência demonstrava saúde e vitalidade. Não chegou para bater o Real de Vicente del Bosque em Paris, mas o terceiro lugar interno garantia nova oportunidade de Champions.

    O sucesso também deu dores de cabeça. Gerard, o dínamo sidekick de Mendieta, foi pescado pelo Barcelona a troco de 21 milhões; Farinós seguiu para Milão, que o Inter desembolsara 17 milhões; e Piojo López impressionara Eriksson, que gastaria 24 milhões para o ter. Cúper não se preocupou, o conjunto valeria sempre mais que qualquer nome – para compensar as perdas apostou em Ayala para o centro da defesa, Baraja, Zahovic e a experiência de Deschamps para o miolo (investindo nos três o dinheiro de Gerard) e o gigante Carew para a frente de ataque. Em Janeiro, voltaria à sua terra para recrutar o prodigioso enganche do River Plate de Rámon Diaz, campeão do Apertura 1999 – Pablo Aimar.

    Na nova temporada, a depressão europeia moldou as prioridades de Cúper e da equipa: a La Liga nunca foi encarada com total seriedade e o quinto lugar conseguido foi até prémio injusto, dada a irregularidade exibicional (mais uma fase negativa no início do ano civil, e cinco derrotas em 19 jogos caseiros). Mas na Europa, o foco permitiu à equipa voar – primeiro lugar nas duas fases de grupos, empurrão ao Arsenal de Wenger e 3-0 ao fabuloso Leeds de David O’Leary, que no onze inicial tinha Rio Ferdinand, Dacourt, Viduka, Harry Kewell ou Alan Smith. A equipa, pujante fisicamente e compenetrada desde início na máxima glória continental, repetia a presença na derradeira decisão, uma proeza inigualável na história ‘Che’.

    A final de San Siro começou de forma impecável. A equipa beneficia dum penalty logo a abrir e Cañizares impede Mehmet Scholl de concretizar um parecido pouco depois. Parecia que a sorte estava do lado de Cúper. No seu entender, era obrigado a jogar com ela, a respeitá-la e fazer de tudo para que ela tivesse condições para actuar. A equipa recebeu as ordens e acantonou-se, dando a bola aos alemães – ao intervalo, Cúper tira Aimar e mete Albelda, na definitiva prova de que mais contente não podia estar.

    Só que a sorte é determinada por entidades com personalidade e vontade próprias, incoerentes como nós, apesar do estatuto divino que normalmente lhes reconhecemos. Talvez fartos de tanta deferência e falta de coragem, inverteram a coisa e começaram a apoiar os alemães, fazendo-se justiça à conta dos pénaltis.

    Debilitado depois de tanto azar sucessivo e nunca consensual entre as bancadas do Mestalla, mesmo apesar das caminhadas inéditas, Cúper decide não renovar contrato. Cheio de pretendentes por essa Europa fora, a sua escolha recai sobre o Inter, à altura um viveiro de trutas – nada a ver com o seu perfil, mas ele, determinado como sempre foi, tentou impor a um grupo de estrelas acomodadas os seus valores. Ronaldo, o fénomeno, não gostou de tanto trabalho, físico e tático.

    As ideias sóbrias e conservadoras de Cúper não caíriam bem naquele contexto. A um terceiro lugar na Liga, seguiu-se uma eliminação nas Meias da Liga dos Campeões aos pés do rival de sempre, o AC.

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    Pedro Cantoneiro
    Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
    Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, o Benfica como pano de fundo e a opinião de que o futebol é a arte suprema.